Filosofia,

Manifesto cyberpunk

Veterano de Maio de 68 explica por que é impossível imaginar o futuro

31maio2019

Existe um lugar no inferno reservado para quem quer ver o futuro. Se a Divina comédia servir de mapa, o local de punição de profetas, adivinhos e áugures fica no oitavo círculo. De tanto perscrutar o que vem adiante, Tirésias, Cassandra e outros — conforme narra Dante no canto 20 do Inferno — tiveram o pescoço torcido: os pés andam para a frente, mas os seus rostos olham permanentemente para trás. Em uma das imagens mais desconcertantes do poema, o autor diz que as lágrimas dos pecadores banham as suas costas e nádegas.   

Desencorajar a análise do futuro é próprio da Antiguidade e da Idade Média. A modernidade tratou de subverter essa atitude refratária. O terror do futuro -— lembra Franco Berardi — “é substituído pela espera, pela esperança, pela certeza de que a acumulação de saber produz progresso”.   

Essa confiança no futuro não resistiria por muito tempo. A trajetória de encantamento por um futuro gerado pelo progresso tecnológico, típico do século 20, e a sua transformação em distopia são os temas do recém-lançado Depois do futuro, do filósofo e ativista Franco “Bifo” Berardi. 

A tradução para o português chega dez anos depois da publicação do original. Essa década que separa a edição italiana da brasileira apenas torna as mensagens do livro mais poderosas. Sem ter visto a epidemia de desinformação e a ascensão da chamada economia do compartilhamento nos anos 2010, as conclusões de Berardi parecem ser clarividentes. Além de não acreditar no futuro, esperamos que o autor também não acredite no inferno.

Bifo afirma que o século 20 marca justamente o momento em que deixamos de acreditar no futuro. Mas o que significaria acreditar? Para o autor, acreditar pode se referir tanto à existência de alguma coisa como ao ato de se confiar em algo ou em alguém. Nesse sentido, “eu acredito em Deus” afirma a crença na sua existência. Por outro lado, “eu acredito em você” não é uma confirmação de que você existe, mas sim de que é digno de confiança.   

É nesse segundo sentido que se pode afirmar que não confiamos mais no futuro. Segundo Berardi, não se está querendo dizer que não haverá amanhã, ou que o futuro foi cancelado, mas apenas que com as ferramentas que temos hoje não conseguimos imaginá-lo — nem supor que ele nos levará para um lugar melhor.

Para expor sua tese, o autor parte de 1909, quando foi publicado o Manifesto futurista. Nele, Filippo Marinetti expressa uma adoração da velocidade, da força e da guerra. Havia algo de fascinante na construção de máquinas que propiciavam ao homem ir além de suas capacidades individuais. O carro, por exemplo, representava uma vitória do humano sobre o natural. Dizia-se então que o automóvel, ferro torcido e posto em movimento, era mais belo do que a Vitória de Samotrácia porque expandia as capacidades humanas. 

Ao final do século 20, e depois das conquistas artísticas das vanguardas europeias, muita coisa mudou. O automóvel deixou de ser o símbolo de velocidade e passou a ser o casulo no qual o condutor se prostra solitário por horas no trânsito das grandes cidades. A reprodução em massa do objeto de desejo desvirtuou a sua simbologia. Carro virou sinônimo de atraso, de poluição, de estresse e de calendário do ipva.

Se a velocidade não está mais nos automóveis, essas máquinas externas, para onde ela foi? Berardi argumenta que a incorporamos: hoje as máquinas de aceleração somos nós mesmos, infomáquinas processando a todo momento uma infinidade de dados que nosso cérebro não é capaz de compreender.

Nasce então uma importante dicotomia entre um ciberespaço infinito, repleto de informações, e o tempo que temos para processá-las. Não sabemos ainda qual o efeito da disponibilidade de informação em larga escala, a qualquer momento, para qualquer pessoa com acesso à internet. A rede continua a se expandir. Em sentindo contrário, parece que nosso cérebro está se contraindo, ficando relapso ao perceber que jamais vai alcançar o volume informacional à disposição.

Bill Gates e Foucault

Um tema constante na obra de Franco Berardi é o futuro do trabalho. Neste livro, o autor constrói a sua visão de tempo fragmentado e como ele revoluciona a dinâmica laboral. A partir do modelo fordista de produção, o empregador já não precisava mais contar com todo o saber do funcionário. Na linha de montagem, cada um tinha uma função específica e apenas se exigia o domínio sobre ela. 

Hoje, conectado por meio dos celulares, os empregados já nem mesmo precisam estar confinados em fábricas ou em escritórios. O empregador não precisa mais manter seus corpos em um mesmo lugar. Ele precisa apenas de frações de tempo, de um par de horas de atividades que podem ser recombinadas entre os empregados dispersos no espaço. E tudo isso não se dá mais na linha de montagem, mas sim por meio do celular, que aciona os empregados quando se quiser. Berardi percebe uma natural precarização na figura do trabalhador que, se por um lado parece estar liberto do rígido expediente, por outro vê uma redução nos seus direitos.

Viramos infomáquinas de aceleração, processando a todo momento uma infinidade de dados que nosso cérebro não é capaz de compreender

Resta saber como as relações de poder se transformam nesse cenário. Em 1992 Bill Gates publicou uma carta em que dizia que “poder é fazer as coisas simples”. Visto dessa forma, tornar tudo mais fácil e natural é a chave para controlar comportamentos. Berardi indica então que Gates estaria mais perto de Foucault do que de Hobbes ou de Maquiavel. Sai de cena a força, entra a invisibilidade do que é natural. Não custa lembrar que Mark Zuckerberg já disse que gostaria que em sua rede social o compartilhamento fosse sempre feito “sem fricção”.

Essa dinâmica está gerando novos comportamentos que tornam ainda mais concretas as visões distópicas sobre as tecnologias. A promessa da conexão se transformou em ameaça, lembra Berardi. Se toda utopia é um não lugar, a internet e a virtualização de tudo pareciam oferecer as condições ideais para o pensamento utópico. Ao contrário do que se esperava, gerações cresceram com o cyberpunk e se acostumaram a ver em filmes e séries perspectivas sombrias de um futuro de alta tecnologia. Depois do futuro serve como um manual para entender como estamos mudando. Isso é muito Black Mirror.  

Quem escreveu esse texto

Carlos Affonso Souza

É diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade (itsrio.org) e professor de história do direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.