Feminismo, História,

Making Rome great again

A historiadora e ativista Mary Beard busca na Antiguidade clássica as forças para combater na arena do século 21

05nov2018 | Edição #1 mai.2017

A história de Roma todos conhecemos, ou pensamos conhecer, pelo que aprendemos no cinema (useiro e vezeiro em falsificá-la) e nos livros que lemos ou de que ouvimos falar. 

De Tito Lívio e Júlio César a Suetônio, cuja A vida dos doze Césares só não era mais disputada pela garotada que os “catecismos” de Carlos Zéfiro. Afora best-sellers como Quo Vadis (1895), de Henryk Sienkiewicz, e Memórias de Adriano (1951), de Marguerite Yourcenar. Vinicius de Moraes foi batizado Marcus Vinicius em homenagem ao herói de Quo Vadis? (1913), que meses antes do nascimento do poeta tivera sua adaptação para o cinema lançada no Brasil. 

A televisão também colaborou para a difusão e a diluição das glórias e atrocidades dos romanos, frequentemente com insípidos épicos de perfil hollywoodiano, vez por outra com documentários de caráter didático ancorados por arqueólogos e historiadores. Antes de ganhar os seus 3,5 cm de lombada, SPQR: Uma história da Roma antiga foi uma exitosa série da BBC2, ciceroneada pela autora, Mary Beard. 

Ninguém parece entender mais do mundo clássico do que ela, nem ser capaz de passar adiante tamanho conhecimento sobre Roma e Grécia com igual espontaneidade. Professora de Clássicos em Cambridge, Beard dedicou mais da metade de seus 62 anos a estudar os romanos e discorrer a seu respeito em livros, jornais, publicações do nível da New York Review of Books e num blog (A Don’s Life) do Times Literary Supplement. Dissipar mitos e lendas sobre os romanos é uma de suas especialidades. A propósito, eles não eram mais baixos que os italianos de hoje. Nem tinham o hábito de sacrificar cristãos no Coliseu. 

Até hoje nenhuma autoridade acadêmica atreveu-se a subestimá-la por sua eclética atividade extracurricular. Ela não só tirou o mofo dos estudos clássicos como tornou-os, mais que acessíveis, apetecíveis a uma vasta camada de leitores — e telespectadores. Há dois anos, a universitária Megan Beech fez na internet uma ode à historiadora. Título: “Quero ser Mary Beard quando crescer”. A mensagem teve milhares de compartilhamentos. 

“Só podemos explorar Roma de perto por meio do olhar contemporâneo”, afirma Beard 

Beard é idolatrada e odiada por suas posições políticas progressistas. A defesa que fez dos trabalhadores imigrantes no Reino Unido rendeu-lhe um vendaval de ameaças e impropérios. Também choveram comentários virulentos e machistas em reação à transmissão pela BBC de uma conferência dela, no Museu Britânico, sobre o silenciamento da palavra da mulher desde a Antiguidade (releiam a Odisseia). Ao resenhar um estudo histórico sobre o estupro, tornou público o abuso sexual que sofrera, aos 23 anos, numa viagem de trem pela Itália. 

No Brasil, antes de SPQR (Senatus Populus-Que Romanus — O  Senado e o Povo Romano, acrônimo até hoje gravado nos bueiros da capital italiana), Beard teve sua história de Pompeia traduzida pela Record, e uma brevíssima introdução à Antiguidade clássica, em parceria com John Henderson, pela Zahar. É pouco. Se pudesse, acrescentaria mais um título: Laughter in Ancient Rome, delicioso ensaio sobre como os romanos riam, contavam piadas e gozavam uns aos outros. 

Para narrar a decadência e a queda do império, o também britânico Edward Gibbon (1737-94) espalhou-se por seis volumes, reduzidos a um só para consumo popular (no Brasil, ganhou tradução impecável de José Paulo Paes pela Companhia das Letras). Desde sua publicação, em 1776, documentos e descobertas arqueológicas alteraram ou até desmentiram certas convicções. A história, como já disse alguém do ramo, é e nunca deixará de ser um work in progress

Ela reverencia a obra de Gibbon, mas a considera “um experimento histórico idiossincrático”, desgastado por “novas maneiras de interpretar os dados antigos”.  

Além de recursos tecnológicos inimagináveis ao tempo de Gibbon, Beard contou ainda com sua extraordinária capacidade narrativa, seu talento para a concisão, seu permanente senso de humor. E, acima de tudo, sua lucidez e seu obsessivo empenho “em chegar à história de Roma” com outras prioridades e indagações. 

Como os romanos lidavam com a sexualidade, a identidade de gênero, o suprimento de comida, as desavenças conjugais, os problemas financeiros, a cidadania? Questões que “fazem o passado falar conosco num outro idioma”. Nesse idioma, as invasões por hordas ditas bárbaras podem ser vistas como movimentos de massas de migrantes econômicos ou refugiados políticos do norte europeu. Beard assim as vê. “Só podemos começar a explorar Roma de perto e com pormenores eloquentes por meio do olhar contemporâneo.” 

Embora concentre um milênio em 560 páginas, SPQR dá conta da ascensão do império, de parte do seu apogeu, mas não de sua queda. O relato começa em 63 a.C. e vai até 212 d.C., com intermitentes alusões às míticas e contraditórias narrativas da fundação da cidade, por Rômulo e Remo (ou por Eneias, na versão de Virgílio), oito séculos antes de Cristo. E também à conquista da península Itálica, nos séculos 4 e 3 a.C., a derrota dos grande rivais mediterrâneos Cartago e Grécia, no século 2 a.C., e o avanço sobre Gália, Espanha, norte da África e terras do Oriente. 

Não são marcos casuais nem gratuitos — nem  idiossincráticos. Foi no século 1 a.C., com sua abundância de palavras, cartas privadas, discursos, filosofia e poesia (épica, erótica, erudita e popular), que os escritores romanos começaram a estudar sistematicamente a cidade nos séculos anteriores e o império que a partir dela expandiu-se mundo afora, antes mesmo que nele houvesse imperadores. Roma foi primeiro um reinado (sete reis entre 753 e 509 a.C.), depois uma República (por mais de quatrocentos anos), uma ditadura cesarista e, a partir da morte de Júlio César (44 a.C.), com Augusto, um Império.

Nenhum período anterior da história do Ocidente pode ser estudado e conhecido com tamanha intimidade. “Não temos nada próximo dessa rica e variada evidência a respeito da Atenas clássica”, assegura Beard. 

O ponto de partida é a rivalidade entre o orador, filósofo, político e poeta Marco Túlio Cícero, e o renegado e falido aristocrata Lúcio Sérgio Catilina. Vinte anos antes do assassinato de Júlio César, Catilina, derrotado numa eleição, meteu-se num complô terrorista para derrubar o governo, liquidar políticos e destruir a cidade e as provas de quem devia ao fisco. Marcado para morrer, Cícero denunciou a trama em plenário, num discurso (sim, aquele da legendária cobrança “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra”), até hoje considerado o suprassumo da eloquência.

Catilina deu no pé, mas os demais conspiradores foram sumariamente executados em nome da segurança nacional. Para Beard, a dura reação de Cícero formulou de maneira cabal questões que nos preocupam ainda hoje. Uma: será legítimo eliminar “terroristas” à margem do processo legal? Outra: os direitos civis devem ser sacrificados em nome dos interesses da segurança interna de um país?

Os romanos não eram por natureza mais beligerantes do que seus vizinhos. Mas foram competentes na lida diplomática, alternando os imperialismos “hard” e “soft”

Por que SPQR só vai até 212 d.C. e não até 312 d.C., ano da conversão do imperador Constantino ao cristianismo, ponto final da Antiguidade pagã? Ou até 410 d.C., quando os visigodos de Alarico saquearam Roma, como de praxe nas histórias convencionais do Império? Porque ao olhar nada convencional de Beard a decisão de (Marco Aurélio Antonino) Caracala de transformar todo habitante livre do Império em cidadão romano de pleno direito, em 212 d.C., ressoa com mais força no mundo em que vivemos. 

Ao corroer a distinção entre conquistador e conquistados, Caracala levou a cabo um processo de expansão dos direitos e privilégios da cidadania romana iniciado quase mil anos antes, quando os habitantes das províncias conquistadas foram aos poucos obtendo a cidadania romana e os respectivos direitos e proteções legais. Ganharam dupla nacionalidade. Com uma única obrigação: integrar-se, se necessário, ao exército do Império. 

Como uma pequena cidade à beira do Tibre, fundada sobre um fratricídio (Rômulo matou o irmão gêmeo Remo), povoada de início por criminosos, fugitivos e violadores de mulheres (raptaram as Sabinas, estupraram Lucrécia e tentaram o mesmo com Virgínia, que morreu antes), acabou dominando o mundo? 

Historiadores tradicionalistas atribuem a longa supremacia romana à têmpera guerreira e à disciplina de seus soldados, recrutados aos milhares por toda parte. Dois séculos antes de Catilina azucrinar a paciência de Cícero, Roma já dispunha de um efetivo poderoso: pouco menos de 500 mil soldados, quase dez vezes o contingente de Alexandre nas campanhas no Oriente e cinco vezes o dos persas quando invadiram a Grécia em 481 a.C. 

Beard considera essa tese insuficiente e simplista. Os romanos não eram por natureza mais beligerantes do que os seus vizinhos e contemporâneos, nem mais destemidos e sanguinários. Embora dependessem de pilhagens e tributos cobrados às tribos e cidades que subjugavam, e do trabalho manual e doméstico provido pelos escravos adventícios, eram superiores na construção de estradas, pontes e aquedutos. Também foram competentes na lida diplomática, alternando um imperialismo hard e um imperialismo soft.

A rápida expansão deveu-se em parte ao desinteresse em anexar territórios ultramarinos e em impor controles territoriais padronizados, implantando uma estrutura administrativa custosa e pesada. Preferiam as relações mutáveis com os povos conquistados, desfrutando das benesses da miscigenação racial e cultural. 

Muitas de nossas noções fundamentais sobre poder, cidadania, responsabilidade, violência política, império, luxo, beleza e até humor foram formadas e testadas em diálogo com os romanos. Seus debates públicos nos deram um modelo e uma linguagem que definem o modo como entendemos o mundo e discutimos política. Se a palavra democracia veio da Grécia, senado, ditador, candidato, fisco, proletário, plebe, sufrágio, comício e centenas de outras brotaram em Roma. Candidatus, por exemplo, significa “branqueado”, alvo como as togas que os romanos usavam em campanhas, para impressionar os eleitores com uma falsa ideia de pureza. SPQR também é um almanaque de curiosidades sobre nuanças linguísticas, costumes, gafes, anedotas e erros interpretativos.

E traz uma lição sobre a milenar persistência da desigualdade social e do desequilíbrio representativo. 

Em Roma, o povo era e não era soberano; o voto decidia as eleições, mas as pessoas comuns jamais detinham a iniciativa política, pois lhes faltavam os meios financeiros para concorrer com os ricos e privilegiados. Nas palavras da professora de Cambridge, “o sucesso dos ricos era uma dádiva concedida pelos pobres”.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Augusto

Jornalista, reuniu seus textos sobre cinema em O colecionador de sombras (e-galáxia).

Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.