Flip, Reportagem,

Como se o mundo se desintegrasse

Entre vidas perdidas, danos ambientais, responsabilizações e reparos, a jornalista Cristina Serra narra a tragédia de Mariana

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

Demorou três dias para que a lama se soltasse da pele de Romeu. O gosto da terra com rejeitos de mineração permaneceu em sua boca por três meses. O terror ainda ronda seu sono: vez ou outra ele acorda sobressaltado, sem saber se está vivo. 

Romeu Arlindo dos Anjos, funcionário da Samarco, é um dos sobreviventes da tragédia que soterrou Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, na região de Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015. Trabalhava havia dez anos na empresa, no setor de geotecnia, justamente a área responsável pelo controle do solo, qualidade da água e monitoramento da disposição dos rejeitos na barragem do Fundão. Nos relatórios de fiscalização, porém, nada apontava para a iminência daquela catástrofe. 

A barragem era uma estrutura gigantesca e complexa: com 106 metros de altura (o que equivale a um prédio de 35 andares) e 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos armazenados, seu conteúdo poderia encher 21 mil piscinas olímpicas. Romeu viu quando a barragem se rompeu. Pulou do caminhão que dirigia e correu. Mas foi engolido pela onda de lama e entulho, em um rodamoinho no meio dos troncos e pedaços de tudo o que fora levado por aquele fluxo espesso e viscoso. 

Quando a força dessa maré diminuiu, ele conseguiu se salvar. Foi o único sobrevivente entre os quinze trabalhadores arrastados pela avalanche vermelha daquela tarde. Estava consumada uma das maiores calamidades sociais e ambientais que já aconteceram no país. A lama de rejeitos levou a vida de dezenove pessoas, destruiu o rio Doce — fonte de sobrevivência de diversas comunidades ribeirinhas, incluindo índios Krenak, que estão morrendo de tristeza —, envenenou a água dos municípios ao redor e contaminou até o mar do Espírito Santo. Ninguém sabe quanto tempo levará até que a fauna e a flora possam se recuperar. Se é que isso vai ser possível… 

Ninguém sabe quanto tempo levará para a fauna e a flora se recuperarem. Se isso for possível

Destacada para cobrir a catástrofe pela TV Globo, a jornalista Cristina Serra chegou a Mariana alguns dias depois. Foi preciso botar os pés naquele solo para entender a dimensão daquilo. Era uma tragédia enorme. “Só compreendi, de fato, o que acontecera quando vi com meus próprios olhos o que a lama grossa e escura de rejeitos havia feito com casas, escolas, lojas e igrejas”, conta Serra, na introdução de seu livro Tragédia em Mariana — a história do maior desastre ambiental do país.

Com larga experiência em reportar situações de grande comoção, como o atentado às torres gêmeas em Nova York, em 2001, o terremoto no Haiti, em 2010, e o deslizamento de terra na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, o desastre de Mariana a chocou. “Cada vez que retornava às ruínas, o assombro se fazia maior. Nas primeiras vezes, pela voracidade da lama e sua capacidade de destruição. Nas últimas, já para este livro, pela tenacidade dos antigos moradores em encontrar formas de manter a ocupação de um território que lhes pertence há gerações.” Serra entendeu que as reportagens não seriam suficientes para dar conta de todos os lados desse drama: as vidas perdidas, as responsabilidades, os danos sociais e ambientais, a destruição, o papel do poder público e das empresas que exploravam minério de ferro na região, a reparação. Minas Gerais tem tantas mineradoras que seu terreno lembra um queijo suíço. Estão presentes em mais de 250 municípios do estado.

Escuta e silêncio

Serra quis mostrar os rostos, as identidades de quem viveu a tragédia. Escolheu oferecer escuta, e se deixou envolver pelas histórias. Contatou cada uma das dezenove famílias que perderam entes queridos (entre eles, duas crianças e três idosos). Perguntou sobre quem eram, como chegaram ali, quis saber quais eram seus projetos de vida. Sete viúvas não quiseram dar entrevistas. A jornalista respeitou esse silêncio e buscou os parentes das vítimas que concordaram em falar. O objetivo era não deixar cair no esquecimento um desastre de tamanha envergadura. 

Jornalista competente, com mais de trinta anos de carreira, ela apurou também negligências que podem ter levado àquela situação. Encontrou problemas na origem da barragem, já em seu processo de licenciamento. Com pouco monitoramento e fiscalização, a autorização para a construção da barragem do Fundão foi obtida com demasiada rapidez, o que levou a um histórico longo de falhas, erros e omissões. 

Minas Gerais tem tantas mineradoras que seu terreno lembra um queijo suíço. Estão presentes em mais de 250 municípios do estado

Ela mostra também como os executivos da Samarco, Vale e BHP Billiton (as duas últimas controlam a primeira) se comportaram depois da tragédia. Fizeram declarações genéricas e evasivas sem se desculparem pelas mortes decorrentes do rompimento da barragem e da exploração de minério de ferro. Cada um empurrava a responsabilidade para o outro. No livro, Serra conta que as empresas pareciam querer ganhar tempo e que reagiam de maneira errática às demandas de comunicação. A primeira entrevista coletiva aconteceu — inacreditavelmente — seis dias após o ocorrido. Naquele momento, oito corpos tinham sido resgatados e os outros permaneciam desaparecidos. Poder público e empresas batiam cabeça enquanto moradores corriam atrás de água potável, em uma espiral de desespero. 

Assim que o vagalhão de lama tóxica passou levando gente, animais, árvores, escolas, igrejas e casas, houve silêncio, conforme relataram os bombeiros. Segundos depois, vieram os gritos. Foi possível reconstituir passagens como essa porque Serra fez um minucioso trabalho de reportagem. Analisou documentos, investigou operações, entrevistou bombeiros, funcionários, políticos e vítimas. Descobriu informações e dados, mas se moveu principalmente pelo drama humano. 

Para entrar nesse tipo de cobertura e fazer um trabalho competente, capaz de tocar o leitor e registrar o ocorrido na memória da história, não basta ser um ótimo repórter. É preciso ter sensibilidade, sentir a dor de quem viveu a tristeza de perder tudo, entender a revolta e a profundidade do desalento. 

Essa capacidade Serra tem de sobra. Soube colher com cuidado os detalhes no olhar aflito de quem se machucou, as feridas na alma de quem ficou, as inquietações de parentes e os vazios. Teve a delicadeza de escutar quem testemunhou e quem trabalhou para salvar vidas. Logrou percorrer o caminho do rio Doce, um doente terminal, e visitou as comunidades ao longo do trajeto. Com a passagem do tempo, conseguiu também captar a vida atual de quem ficou. Descobriu que os funcionários e ex-funcionários presentes naquele dia são olhados com desprezo pela população, que não achou a quem culpar.  

Conseguiu, com seu detalhado livro, criar um marco que deveria servir para alertar autoridades e empresas dos perigos das barragens. Sua obra se torna hoje ainda mais importante: passados três anos da tragédia em Mariana, o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), região metropolitana de Belo Horizonte, aniquilou pelo menos 246 vidas. Tragédia em Mariana é, agora, também, o grito entalado na garganta.                      

Quem escreveu esse texto

Maria Carolina Trevisan

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.