Educação, Literatura, Poesia,

Lirismo engajado

Incompreendida pela crítica de seu tempo e de hoje, Cecília Meireles abriu caminhos que precisamos conhecer melhor

20nov2018

Podemos designar uma infinidade de adjetivos para Cecília Meireles. O mais frequente é lhe atribuir o título de uma das maiores poetisas da língua portuguesa. Motivos não faltam. Cecília revolveu o lirismo dos antepassados para impor com seus versos visões de um mundo em movimento constante. Produziu imagens líricas que vão do ínfimo gesto de uma abelha ao vaivém compassivo do mar absoluto de vagas humanas. Suas imagens poéticas trouxeram estados de melancolia e inquietações sobre a permanência no tempo presente: 

O rumor do mundo vai perdendo a força
e os rostos e as falas são falsos e avulsos.
O tempo versátil foge por esquinas
de vidro, de seda, de abraços difusos. 

Como separar sua poesia da prosa, quando todas as bordas da ficção (Rancière) foram atenuadas, e a obra, com isso, surge única em sua diversidade? Há mais de vinte anos, escrevi o artigo “Cecília concreta” para a Folha de S.Paulo, que descolava a escritora, e sobretudo sua obra, do estigma de ser distante do drama social de sua época. “Falta-lhe densidade dramática, de sentido coletivo”, escreveu Mário da Silva Brito. Esse artigo mostrava a face combativa da autora.

Contra o Vargas de 1930, empenhada na divulgação de uma educação libertadora, democrática e mista a partir de suas crônicas na “Página de Educação” (1930 a 1933) do jornal carioca A Manhã, a poetisa defendia os conceitos da Escola Nova, de John Dewey (1859-1952). As propostas vinham de encontro ao perfil conservador e religioso adotado pelo novo regime. E se há uma palavra que permeou toda a obra de Cecília Meireles — desde as crônicas de educação, reeditadas, este ano, com projeto gráfico diferente, porém com a mesma organização deficiente da primeira edição de 2001, até Romanceiro da inconfidência (1953) — é “liberdade”.

Não podemos aceitar que, nos dias atuais, essa leitura se perpetue em textos canhestros

Em seus artigos de 1930, Cecília escrevia frases impactantes, como “o Brasil tem como grande desgraça a ser combatida a pseudoautoridade do medalhão”, ou “religião é catequese, subordinação do homem ao interesse de um indivíduo. Nem sequer de Deus”. Afora sua compreensão política do momento, a poetisa lutava por uma educação para além da “órbita nacional”, irmanada com o espírito da fraternidade universal e, sobretudo, com a Escola Nova, de Dewey. Autor de Democracia e educação (1916), o norte-americano lançou a ideia de educação progressiva, em que o desenvolvimento físico, emocional, intelectual e artístico faz parte de um todo. 

Em seus artigos, quase diários, Cecília mostrava a importância desses preceitos e de sua aplicação por meio de uma escola que tratasse o aluno como indivíduo. Dentro do espírito escolanovista, discutia a inserção de aulas de filosofia, música e educação artística, dialogando sempre com educadores da América Latina e com seus pares, Fernando de Azevedo (1894-1974) e Anísio Teixeira (1900-1971).

Educação 

Nos anos 1990, quando, pela primeira vez, se soube das crônicas de educação, a crítica apressada e definidora da história da literatura desconhecia grande parte de sua obra em prosa. Entre os anos 60 e 80, essa mesma crítica não entendeu os motivos de a poesia de Cecília não ter sido aparentemente influenciada pelo drama social e político. Mas como negar o lirismo potente de Mar absoluto, de 1945?

Foi desde sempre o mar.
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.
Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.
[…]

Então, é comigo que falam,
sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém,
não, não haverá mais ninguém,
tão decidido a amar e a obedecer a seus 
mortos. 

Ou ainda os versos pungentes de Romanceiro da Inconfidência, de 1953:

Eles eram muitos cavalos:
e uns viram correntes e algemas,
outros, o sangue sobre a forca,
outros, o crime e as recompensas.

Para determinadas gerações, o lirismo, mesmo sendo combativo, crítico ou revolucionário, foi problematizado e recusado. Cecília Meireles, no entanto, mostrou-nos que o lirismo pode ser levado às últimas instâncias, dentro de um projeto literário coerente, extenso e potente. “Se o projeto lírico é bem-sucedido, sentimento e razão trabalham de pleno acordo, são eles que se criam um ao outro”, define Brecht. A poetisa, como vimos, usou outros meios para se engajar na luta e na revolução silenciosa que estava em curso na década de 1930. Novos sujeitos, principalmente femininos, se moviam na sociedade brasileira naqueles anos de conflitos permanentes.

Podemos atribuir ao machismo da crítica — que até a década de 1980 foi basicamente representada por autores homens e brancos, para ficarmos no clichê do momento — a leitura enviesada de Cecília. Mas não podemos aceitar que, nos dias atuais, essa leitura se perpetue em textos canhestros, no quais o autor se rejubila por não conhecer sua obra, mergulhando em um simplório estigma para desenhar um falso e preguiçoso retrato da poeta. Ou poetisa? Pergunta-se hoje.

Propomos aqui, por isso, um “Decálogo para Cecília”. Novos leitores e comentaristas apressados terão, dessa forma, uma boa ferramenta para auxiliar suas leituras e remover alguns preconceitos.

 

Um decálogo para Cecília Meireles

1. Na iconografia oficial, vemos um bebê sério, pulseirinha de contas claras no braço direito que se une ao esquerdo por mãozinhas titubeantes. Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro, no Estácio, em 7 de novembro de 1901, e morreu na mesma cidade, no bairro do Humaitá, em 9 de novembro de 1964. Atordoado, Heitor Grilo, seu marido, escreve aos amigos: “Parece que ela ainda voltará para consolar-me dessa ausência atroz”.

2. A casa de infância e adolescência ficava próximo ao morro de São Carlos, no Estácio. No sopé de escadarias emolduradas por prédios coloniais, viu surgir a primeira Escola de Samba. Com vívido encantamento pela vida e pela cultura popular, registra, a partir dos 25 anos, em textos e desenhos a nanquim e aquarela, os ritmos, os bambas e as baianas cariocas. Completou a série anos mais tarde e inaugurou, em 1933, a exposição “Ritmos e indumentárias do samba”. Sorriso discreto, olhos baixos e, por cima da cabeça, um casquete escuro. Um colar de pérolas contorna seu pescoço. Naquela noite de festa, ritmistas da Portela tocaram “Alegria, tu terás”, de Antonio Caetano, e “Se passar da hora”, de Boaventura dos Santos. Foram servidos begerecum e lelecum (favas usadas em cerimônias religiosas), amendoim, castanha-do-norte, pimenta-da-costa, angu de milho e vatapá.

3. Passou a maior parte de sua vida diante de uma máquina de escrever. De 1920 a 1964, compôs mais de 2 mil crônicas. Enxergava com dificuldade, mas não gostava de usar óculos (“Uns óculos”); tinha compulsão por guardar papéis (“Recordações do papel”); e retirou o “l” duplo de Meirelles não por causa da mudança ortográfica de 1943, mas por superstição (“A história de uma letra”). Além do tripé educação–folclore–literatura, escreveu sobre viagens, poetas e jardineiros, plantas e animais, invenções, alimentação, artistas e amigos. As mais variadas experiências pessoais são temas de Cecília, que dedicou crônicas a Gabriela Mistral e Vieira da Silva, duas mulheres que, durante os críticos anos 1940, recebeu com calorosa amizade.

4. Provavelmente, é a escritora brasileira que não fez parte do corpo diplomático do Itamaraty com mais carimbos no passaporte. Em setembro de 1934, a bordo do navio Cuyabá, de sandálias altas e meias grossas no tornozelo, faz sua primeira viagem a Portugal. O auge das viagens, no entanto, acontece entre 1953 e 1958, e os destinos, Roma, Bombaim, Nova Delhi, Calcutá, Puri, Bangalore, Haiderabad, as extraordinárias Grutas de Ajanta, Goa, Paquistão, Lisboa, Porto, Roma, Florença, Nova York, Cidade do México, Washington, Nápoles, Florença, Veneza, Holanda, Jerusalém…

5. A Semana de 22 era uma ideia vaga quando, em março de 1920, uma moça morena, usando chapéu de abas largas, proferiu no salão da Associação dos Empregados no Comércio a frase: “Eu sou livre-pensadora”. Nesse dia, participava como secretária da reunião de fundação da Legião da Mulher Brasileira. O monsenhor da cidade e um padre, convidados pelo grupo de católicas, enumeraram em seus discursos as penas do inferno que seriam impostas às ímpias. Houve tumulto. Da mesa, Cecília, dezenove anos, recupera a palavra e afirma: “A Legião será uma instituição leiga, acolherá pessoas de todos os credos religiosos”.

6. A Índia esteve presente em sua obra da maturidade, embora o Oriente estivesse desde a juventude. A orientação metafísica e a “ciclicidade” em seus poemas são constantes. Ao país dedicou Poemas escritos na Índia. Traduziu Tagore e Sarojini Naidu, e escreveu sobre Gandhi e Vinoba Bhave.

7. Fernando Pessoa anota, em 1923, suas próximas leituras. Entre os nomes, o de certa “Cecília Meyrelles”. Foi considerada pelos portugueses muito mais europeia do que brasileira. O crítico Casais Monteiro, embebido de um nacionalismo anacrônico, escreve que “nem era necessário o Romanceiro da Inconfidência (1953) para garantir sua identidade de brasileira, porém sem brasilidade”. E mais: “A sua poesia é feminina e profundamente intelectual, coisa que constitui um fenômeno inédito”.

8. A luta pela laicidade do ensino e da sociedade marcou sua atuação na educação nos anos 1930.

9. Seu lirismo puro,  potente, metafísico e transfigurador está presente em quatro de seus grandes livros: Viagem, Vaga música, Mar absoluto e Retrato natural.

10. Poeta ou poetisa? Carpeaux afirmou que “não é poetisa, é poeta. E das grandes”. A própria, no entanto, se autodenominava poetisa em suas crônicas. Mas no poema “Motivo”, profissão de fé, adota a imagem do “poeta”.

Quem escreveu esse texto

Valéria Lamego

Crítica literária, escreveu A farpa na lira: Cecilia Meireles na Revolução de 30 (Record).