Economia,

Questão de fé

Crítico de Adam Smith, Keynes e Marx, sociólogo francês afirma em livro de 1934 que toda moeda é uma crença social

01maio2019

Como destacou o economista venezuelano Carlos Hernández em artigo de fevereiro no jornal The New York Times, a Venezuela já é o segundo mercado no mundo em volume transacionado em criptomoedas: um total de us$ 6,9 milhões em operações foi registrado no país entre os dias 10 e 16 daquele mês, ante US$ 13,8 milhões na Rússia — cujo PIB é dezessete vezes maior.

Basta ter vivido no Brasil durante a década de 1980 para conhecer aquela que talvez seja a melhor definição de hiperinflação: quando a população se precipita para alocar toda a sua riqueza em uma moeda estável de outro país ou em ativos financeiros não monetários, evitando a todo custo reter a moeda nacional. 

A novidade é que, dada a existência de controles de capitais que limitam a compra de moeda estrangeira na Venezuela, as criptomoedas — digitais, fora da alçada dos bancos centrais — acabaram se tornando uma alternativa. Ainda assim, explica Hernández, é necessário trocar bitcoins por bolívares para (tentar) comprar mercadorias nos supermercados do país.

Em A moeda, realidade social, obra originalmente publicada em 1934, o sociólogo econômico francês François Simiand revela ser antiga a controvérsia sobre o que pode ou não ser considerado moeda, e o que se faz necessário para que uma moeda continue sendo aceita em suas diversas funções. 

Crítico das teorias monetárias desenvolvidas por Adam Smith, Karl Marx e John Maynard Keynes, entre outros, Simiand bebe na fonte do pensamento durkheimiano sobre o fenômeno religioso para formular sua ideia de moeda enquanto “uma crença e uma fé social”. 

Destoando da visão que entende a origem da moeda com base na distinção entre as chamadas moedas-mercadoria, como o ouro e a prata, e as moedas ditas fiduciárias — baseadas na confiança e conversíveis ou não em moedas-mercadoria —, Simiand é taxativo: “Toda moeda é ‘fiduciária’. O ouro, hoje em dia, é apenas a primeira das moedas fiduciárias: nada mais do que isso, mas também nada menos”.

Tal qual enfatiza o autor — acompanhado recentemente pelo antropólogo David Graeber com seu Dívida (Três Estrelas) —, os metais preciosos não passaram a desempenhar o papel de moeda para se evitar as inúmeras razões bilaterais de troca exigidas nas economias baseadas no escambo — caso da dupla coincidência, a necessidade de o ofertante de uma mercadoria desejar trocá-la pelo produto ofertado pelo potencial comprador.

Primeiro, como aponta Graeber, não há sequer evidência da existência de sociedades em que o mercado se organizou a partir do escambo antes do advento da moeda. Segundo, como aponta Simiand em um dos trechos mais interessantes de seu livro, os metais preciosos não assumiram o papel de moeda por serem escassos, divisíveis e fáceis de transportar, tampouco por seu valor de uso enquanto mercadoria — teses até hoje presentes em muitos manuais de economia. O prestígio do ouro e da prata no Peru, no México, na China e na Grécia viria de sua natureza divina e de seu uso religioso, assim como os enfeites e ornamentos utilizados como moeda pelos índios da América.

A Venezuela lançou uma criptomoeda, fixou seu preço e passou a aceitá-la para recolher impostos

Ao tratar da confiança na moeda a partir da crença social, que Simiand chega a associar a uma crença no próprio progresso econômico futuro, o sociólogo se aproxima da ideia proposta por Keynes na conhecida metáfora do concurso de beleza na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Keynes imagina um jogo em que os leitores devem apontar a mulher mais bonita nas fotografias de um jornal, mas não por sua beleza em si: é preciso acertar qual será a escolha dos demais leitores.  Da mesma forma, o valor dos ativos financeiros derivaria de um jogo em que todos os agentes tentam avaliar o que os demais agentes vão avaliar e assim por diante, descolando-se de qualquer fundamento real.

Simiand compreendeu também que a sua existência enquanto realidade social não impede a moeda de se constituir como um fato econômico: “Não é a representação monetária que é um véu diante dos verdadeiros fenômenos econômicos; é o esforço para se liberar e prescindir da representação monetária que erige um véu que obscurece, de modo irremediável, a visão e a compreensão desses fenômenos econômicos verdadeiros”. 

Assim, tal como na macroeconomia keynesiana, a moeda e as finanças não são neutras em relação às variáveis reais do sistema econômico, pois afetam as próprias quantidades transacionadas de bens e serviços.

Simiand parece não ter percebido, no entanto, o papel crucial do Estado na formação dessa crença coletiva, que é na verdade o que estabelece a diferença entre a moeda — que tem também a função de meio de troca e unidade de conta — de ativos financeiros não monetários, que podem adquirir a função de reserva de valor.

Da Teoria estatal da moeda de Georg Knapp (1905) ao neocartalismo de Abba Lerner — que em 1947 compreendeu a importância da tributação como forma de garantir a aceitação universal da moeda soberana —, passando por Keynes no Tratado sobre a moeda e pela teoria monetária moderna, endossada atualmente por Stephanie Kelton (assessora econômica de Bernie Sanders) e por André Lara Resende, em polêmico artigo publicado no Valor Econômico, a confiança na moeda tem sido mais bem compreendida a partir do papel do Estado na sua criação.

Petro

Voltando ao tema da introdução, Nicolás Maduro lançou em fevereiro de 2018 a sua própria moeda digital lastreada em reservas de petróleo, o petro, que pode ser comprado por cidadãos venezuelanos por meio de bolívares ou de outras criptomoedas (bitcoins e litecoins core). Formou-se um nó na cabeça de analistas e investidores: embora de futuro incerto em meio ao colapso econômico do país, um Estado soberano lançou uma criptomoeda e, além de fixar o seu preço, passou a aceitá-la como forma de pagamento de impostos.

Se, de um lado, esses ativos foram desenhados justamente para ultrapassar fronteiras e sair da alçada das autoridades, de outro, o petro teria o potencial de se tornar a primeira criptomoeda aceita não apenas como um ativo financeiro capaz de guardar valor, mas também como meio de troca. Afinal, apesar da crença quase religiosa no valor das criptos, nem tudo que reluz — ou é chamado como tal — é moeda.  

Quem escreveu esse texto

Laura Carvalho

Professora do Departamento de Economia da FEA-USP, escreveu Valsa brasileira: do boom ao caos econômico (Todavia).