Economia,

Liberalismo de esquerda

Arminio Fraga tenta persuadir tecnocratas e intelectuais de que reduzir a desigualdade é condição necessária para o crescimento

01mar2020

O espectro da desigualdade ronda o debate público brasileiro. Embora raramente ocupe o centro do palco, sua presença desconfortável é difícil de ignorar. Para desgosto de alguns, não se trata de moda passageira, balbúrdia comunista ou suposto excesso de democracia. Afinal, mesmo no início dos anos 1970, no auge da era Médici, até um entusiasta de primeira hora da ditadura como o economista e futuro ministro Mário Henrique Simonsen pontuou sua enfática defesa do modelo econômico dos militares com a admissão desenxabida de que a desigualdade de renda no Brasil “não pode deixar de nos causar certa dor de consciência”.

Apenas em períodos de crise econômica aguda nossas persistentes disparidades sociais são temporariamente varridas para as coxias. Foi assim durante o descalabro inflacionário dos anos 1980, e a história se repetiu durante o colapso político e econômico entre 2013 e 2016. Mas basta a economia se recuperar que as preocupações distributivas voltam a aflorar. Vimos isso nos anos 1990 e 2000 e estamos vivendo isso de novo agora, mesmo com taxas de crescimento econômico apenas levemente mais emocionantes que o eletrocardiograma de um morto.

O recrudescimento da pobreza e da desigualdade revelado pelas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a conjuntura política e os protestos no Chile e na América Latina aceleraram o processo. Cada vez mais políticos, jornalistas, acadêmicos e até presidenciáveis precoces têm se pronunciado sobre o tema. O último peso pesado a se juntar ao debate é o economista e ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, seja com textos na imprensa, seja com a publicação de ótimo e provocante artigo na revista acadêmica do Cebrap.

Seu ponto de partida é claro: temos no Brasil uma desigualdade de renda extrema e persistente, que melhorou em algum grau entre o final dos anos 1990 e 2015, mas piorou desde então. Tamanha desigualdade de renda traduz-se também em grande desigualdade de oportunidades e, para o economista, envenena a construção de uma agenda reformista capaz de fazer deslanchar o crescimento.

O Estado faz pouco para reverter essa situação. Arrecadamos mal, gastamos mal e não investimos o suficiente onde mais deveríamos. Arminio mostra que quase metade das transferências monetárias do governo federal vai parar nos bolsos dos 20% mais ricos, ao passo que a carga tributária é aproximadamente a mesma ao longo de toda a distribuição de renda. Em comparações internacionais, o efeito líquido de tributos e transferências sobre a desigualdade é muito menor no Brasil do que na maioria das economias avançadas. Não há dúvida de que melhoramos nas últimas décadas, mas poderíamos fazer muito mais.

Logo, não há contradição necessária entre reduzir a desigualdade e deslanchar a economia. Com efeito, “o combate à desigualdade é mais do que um imperativo moral — é condição necessária para a construção e a execução de uma agenda de crescimento sustentável e inclusivo”, escreve o economista. Esse combate, por sua vez, envolve inevitavelmente maior investimento público em áreas sociais como educação, saúde e saneamento.

Persuasão

O que fazer? — pergunta-se então Arminio, tal qual um Lênin liberal. Previsivelmente, ao contrário do revolucionário russo, ele não propõe a criação de um partido de vanguarda para mobilizar as massas para o socialismo, mas sim tenta persuadir tecnocratas e a intelligentsia de que é possível e desejável conciliar liberalismo e igualitarismo.

De onde viriam os recursos para investimentos tão ousados quanto necessários? O texto propõe um ajuste fiscal gradual, porém severo, para liberar em torno de 9 pontos percentuais do Produto Interno Bruto (pib) para recuperar as contas públicas (o autor sugere um superávit primário duradouro de 3 pontos percentuais do pib) e turbinar o gasto social. O ajuste — que seria redistributivo por si só — cobriria três pilares: previdência; funcionalismo público; e gastos tributários, subsídios e afins.

Arminio traz dados eloquentes para motivar a prioridade acordada à previdência e ao funcionalismo. O gasto primário do governo, próximo a 35% do pib, é bem superior ao de países de renda média, e similar ao de países ricos. Sua composição, entretanto, é sui generis: quase 80% das despesas primárias por aqui são com previdência e funcionalismo, valor mais alto do que nos outros 22 países analisados, o que inevitavelmente comprime despesas com outras áreas essenciais.

Previdência e funcionalismo contribuem com cerca de 40% cada um. No caso da previdência, o Brasil não destoa tanto à primeira vista, mas somos um país ainda muito jovem e que já gasta mais do que países mais ricos e mais envelhecidos do que nós. No caso do funcionalismo, perdemos apenas para a África do Sul. Mais ainda, há muitas evidências de que há um prêmio salarial significativo pelo menos para os funcionários públicos federais.

Arminio propõe reduzir, ao longo de dez anos, o peso da previdência e do funcionalismo em cerca de 3 pontos percentuais de pib cada um. Seu objetivo é mais estabelecer prioridades do que produzir propostas concretas. Por isso não há discussão sobre os detalhes dessas reformas. É uma pena, mas compreensível; certamente não há espaço para resolver todos os males que afligem o Estado brasileiro em um artigo. Ainda assim, seria bom apontar pelo menos os focos principais, dado que o sistema previdenciário e o funcionalismo público são muito heterogêneos e que políticos brasileiros são conhecidos por sua capacidade de arrochar o andar de baixo enquanto juram que estão tirando privilégios do andar de cima, como diria Elio Gaspari.

Fim da ‘Bolsa Empresário’

O terceiro pilar é menos visível e, por isso, até mais interessante. Arminio prega o fim do que se convencionou chamar de “Bolsa Empresário”, a miríade de subsídios e benesses, obtidas muitas vezes por vias tortas, que ajudam a bancar o estilo de vida e a joie de vivre de boa parte das nossas elites, grupo que abarca desde a cúpula do empresariado até estratos profissionais que teimam em se autoproclamar “classe média”, mas pagam planos de saúde e mensalidades escolares mais caros que o pib per capita do país.

O ex-presidente do bc começa atacando os subsídios diretos e indiretos, que compreendem uma combinação de crédito barato, protecionismo, regimes especiais de tributação e vícios em contratos e compras governamentais que volta e meia acaba nas páginas policiais. A discussão é sumária e deixa um gostinho de quero mais, mas não há dúvida de que se trata de pontos com consequências distributivas sérias e ainda pouco estudadas, embora por falta de dados disponíveis.

Em seguida, Arminio sugere mudanças tributárias como alíquotas marginais mais altas e eliminação de deduções para o imposto de renda de pessoas físicas, bem como a tributação de lucros e dividendos (com alguma compensação no imposto de renda de pessoas jurídicas); o fim das distorções que estimulam a chamada “pejotização” e dos regimes diferenciados de tributação; e o aumento das alíquotas marginais do imposto sobre heranças e doações, aproximando o Brasil dos moldes norte-americanos.

Em conjunto, essas medidas aumentariam a arrecadação e a progressividade da tributação no Brasil. Dá até para arriscar que se trata das sugestões menos controversas do artigo e com maior impacto sobre a distribuição de renda a curto prazo. Afinal, impostos progressivos são a melhor ferramenta à disposição dos Estados modernos para promover a redistribuição, em especial em países tão fortemente marcados pela concentração de renda nas mãos dos mais ricos, como no Brasil.

Por fim, Arminio cita genericamente políticas para reduzir a informalidade e especula sobre os impactos distributivos das taxas de juros elevadas que tivemos até recentemente no Brasil. O próprio autor admite que o primeiro tema merece mais atenção do que o texto permite e que o segundo ainda é pouco estudado. De fato, a análise é muito breve e sem propostas muito claras. Dessa forma, o terceiro pilar depende sobretudo de mudanças capazes de extinguir privilégios e tornar o sistema tributário mais progressivo.

Há muito mais no texto. Sua leitura é um alívio em meio às infantilidades que rebaixam o debate público. E é um texto corajoso: qualquer pessoa que tente unir ajuste fiscal e combate à desigualdade em um só argumento se coloca de imediato na mira para ser torpedeada à esquerda e à direita. Arminio sabe disso. Um dos seus méritos é justamente não sair à cata de controvérsias fáceis. O tom é sóbrio porque a discussão é séria. Em suas palavras, “não dá mais para tapar o sol com a peneira e postergar decisões que afetam a vida de milhões de pessoas”.

Outro mérito está no enquadramento, chamando a atenção para a ação global do Estado. Não é pouca coisa. Estudos sobre desigualdade e pobreza normalmente se dedicam a descrever os padrões e tendências gerais e a avaliar os efeitos de políticas e programas específicos. Com isso, queremos responder a perguntas como “qual o efeito do Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade?” ou “como os avanços educacionais das últimas décadas afetaram o mercado de trabalho?”.

O problema é que Estados modernos são complexos e pouco transparentes. Medidas muito visíveis que beneficiam os mais pobres muitas vezes são contrabalançadas ou anuladas por outras, em geral mais opacas e com verniz técnico ou embaladas na retórica grandiloquente do “desenvolvimento nacional”, que beneficiam as elites econômicas. Discutir o orçamento e as prioridades em termos claros e globais é uma das poucas saídas de que dispomos para escapar desse ciclo vicioso.

Ousado demais (e de menos)

Não obstante tantos méritos, a contribuição de Arminio é passível de dois tipos de crítica só aparentemente antitéticos. O texto é simultaneamente ousado de menos e ousado demais.

Comecemos pela primeira crítica. Como dito, o texto prefere articular prioridades a entrar em detalhes, de modo que nenhum esforço é feito para quantificar os efeitos das propostas sobre a desigualdade. E aí está o problema: é muito provável que essas reformas, aliadas a mais e melhores investimentos sociais, reduzam a desigualdade no Brasil, mas será que isso basta para mudar para valer nossa distribuição de renda?

Meu palpite é que melhoraríamos, mas permaneceríamos muito longe de padrões aceitáveis em boa parte do mundo. Simulações recentes de mudanças tributárias e educacionais apontam nessa direção. A própria magnitude da nossa desigualdade recomenda cautela. Não podemos nunca esquecer que o 1% mais rico dos brasileiros fica com algo próximo a 25% da renda nacional. Só perdemos para o Catar. É um número astronômico. Na Europa, por exemplo, o 1% mais rico fica em média com 10% da renda.

Seria excelente se conseguíssemos reduzir esses 25% para algo em torno de 20%, mas será que isso é tudo que podemos almejar? Mais ainda: se a desigualdade for de fato o veneno que Arminio diz ser — e eu concordo que seja —, é pouco provável que mudanças na margem, ainda que positivas, consigam sejam capazes de viabilizar um ciclo virtuoso de reformas e um crescimento pró-pobre duradouro.

Por sinal, Arminio fala pouco sobre a concentração de renda no topo, que me parece nossa questão distributiva central. Nada é dito sobre questões mais amplas como a secular concentração fundiária brasileira e outras assimetrias de poder de longa data. Também seria interessante pensar em sugestões de reforma do Estado para torná-lo mais democrático, menos suscetível à captura por lobbies e pelo capital econômico e mais permeável às demandas da massa pobre da população. Respeitar de fato os direitos civis de toda a população, e não circunstancialmente apenas dos mais abastados, já seria um grande passo.

Seria impossível tratar de todos esses temas em um único artigo — e, em vários casos, o autor já se manifestou de forma contundente em suas intervenções na imprensa —, mas o próprio foco do texto na ação global do Estado desperta essas inquietações.

Ao mesmo tempo, o texto de Arminio também pode ser criticado por ser ousado demais. Um ajuste fiscal redistributivo com tamanha magnitude não tem precedentes. O texto admite isso candidamente: qualquer proposta do tipo vai despertar a reação imediata de setores eternamente protegidos do empresariado, da elite do funcionalismo público que não sente vergonha de chamar de “miserê” salários de mais de R$ 30 mil, de fatias enormes da classe média que usufruem das deduções de saúde e educação no imposto de renda como se fossem direitos divinos, e assim por diante.

Quem fará as reformas?

Que coalizão política teria coragem e peso para sustentar tais reformas? A resposta é mais um conjunto vazio que qualquer outra coisa. Foi precisamente a falta dessa coalizão que nos afundou nesse lamaçal em que tentamos acomodar todo mundo ao mesmo tempo, pulando de uma crise fiscal para outra enquanto reduzimos a desigualdade em velocidade glacial.

Pior ainda, a perspectiva de que isso ocorra no futuro próximo é desoladora. Mundo afora o momento é, no mínimo, pouco propício para o reformismo tecnocrático preconizado por Arminio — que pessoalmente me atrai muito. Do Chile ao Brexit, passando pelo circo das primárias americanas, o apetite eleitoral por mudanças incrementais parece bem pequeno, e pelo menos em parte justificado pelo abismo entre as promessas edênicas de outrora e os resultados anêmicos vividos aqui e alhures.

Nenhuma dessas críticas diminui a contribuição de Arminio Fraga. Não se resolve um país em 22 páginas e quinze gráficos, e uma qualidade inegável do texto é oferecer um ponto de partida para debates mais profícuos. Debates que se beneficiariam mais ainda se o ex-presidente do bc nos desse o prazer de ampliar a discussão em um livro para o público geral.

Quem escreveu esse texto

Pedro H. G. Ferreira de Souza

É pesquisador do Ipea e autor de Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013), pela editora Hucitec.