Divulgação Científica,

Um novo mundo para Goethe

Geógrafo percorre arquivos de Weimar para retraçar os estudos do escritor alemão sobre o Brasil

30jan2023

De todos os escritores alemães, Goethe talvez seja o que me acompanha há mais tempo. Conheci a sua obra ainda em Recife, ao cursar o ensino médio. Um dos seus livros, Os sofrimentos do jovem Werther (1774), mencionado em sala de aula, começa com a seguinte exclamação do protagonista: “Como estou feliz por ter partido!”. Para mim, naquela época, fez muito sentido — eu também ansiava por partir, ganhar o mundo e, principalmente, conhecer a Alemanha, país onde mais tarde estudaria e trabalharia acompanhando os passos do grande poeta e escritor alemão.

Na época, o que eu não poderia imaginar é que Goethe também passou boa parte da vida a querer viajar. Sua visita à Itália, entre 1786 e 1788, nos legou um precioso diário repleto de impressões sobre a natureza e a cultura daquele país e de reflexões sobre arte, filosofia e ciência.

Esta viagem foi a sua única expedição internacional de maior duração. Isso porque, além de poeta e cientista, interessado principalmente em temas como botânica, geologia e óptica, Goethe também acumulou diversas funções no governo e na administração da pequena corte de Weimar, impossibilitando-o de se ausentar da região por longos períodos. Tal limitação, no entanto, nunca o impediu de ampliar seu conhecimento sobre o mundo e a buscar inspiração além das fronteiras europeias. Assim, no começo do século 19, entusiasmado pela poesia de Hafiz (século 14), Goethe mergulhou em estudos sobre o Oriente Próximo e compôs os poemas colecionados em O divã ocidento-oriental (1819).

As Américas

Goethe também se interessou pelo Novo Mundo. Os Estados Unidos, por exemplo, são mencionados em Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister (1829). Esta menção é um dos motivos para que, no século 20, Thomas Mann passasse a acreditar que um dos grandes desejos de Goethe fosse o de viver na América. Mas o que muita gente desconhece é que Goethe também lançou um olhar em direção ao Brasil, tendo produzido, durante quase trinta anos, inúmeras pesquisas.


Viagem de Goethe ao Brasil: uma jornada imaginária, de Sylk Schneider, lançado pela editora Nave

Esse interesse é o tema de Viagem de Goethe ao Brasil: uma jornada imaginária, lançado pela editora Nave. O livro traz o estudo realizado pelo geógrafo alemão Sylk Schneider, que durante dez anos percorreu os arquivos de Weimar em busca de documentos sobre os diversos aspectos da longa e duradoura relação de Goethe com o nosso país.

Estudos sobre o Brasil

O poeta alemão começa a se interessar pelo Brasil a partir das suas leituras de Michel de Montaigne e do convívio com viajantes e naturalistas como Alexander von Humboldt, que viajou pela América do Sul e realizou importante expedição à Amazônia, havendo dedicado ao poeta a edição alemã do seu relato de viagem. Goethe também conviveu com Wilhelm Ludwig von Eschwege, considerado o pai da geologia brasileira, de quem comprou diamantes e minerais para a coleção do grão-duque de Sachsen-Weimar-Eisenach.

O interesse científico de Goethe pelo Brasil parece ter sido fortemente estimulado pelo desejo do grão-duque Karl August de ampliar as suas coleções. O que, por sua vez, também acabou transformando a pequena cidade de Weimar em um importante centro de recepção de estudos sobre o Brasil. Entre os anos de 1800 e 1832 foram publicados em Weimar mais livros sobre o Brasil do que em cidades como Viena, Hamburgo e Berlim.

Imagina-se que, na velhice, o poeta foi reconfortado pelos estudos da botânica brasileira

Nos arquivos do poeta consultados por Schneider, a palavra “pau-brasil” aparece pela primeira vez em um caderno escolar de Goethe ainda criança. Depois, em 1782, Goethe menciona a palavra “brasileiro” no título de dois poemas. Um deles, “Canção de morte de um cativo (brasileira)”, provavelmente influenciado pelo que Montaigne e o abade Raynal escreveram sobre os canibais.

A maioria dos documentos do escritor alemão sobre o Brasil, no entanto, datam de 1817 em diante, quando Karl August deixa claro o seu interesse em bancar um enviado ao país. A partir de então, Goethe passa a se corresponder assiduamente com viajantes, pesquisadores e oficiais, além de encomendar livros especializados e amostras de minerais, plantas e objetos, como uma rede de fibra de tucumã feita na Amazônia.

Além de nos contar a história de como Goethe se interessou pelo Brasil, o ensaio de Schneider também nos permite vislumbrar como, para Goethe, esses estudos podiam oferecer uma espécie de conforto em momentos difíceis. Em uma correspondência de 1829 para Carl Franz Anton Ritter von Schreibers, médico e naturalista diretor do gabinete de produtos naturais da corte austríaca, Goethe comenta a morte do grão-duque de Sachsen-Weimar-Eisenach:

Creio que posso dizer que as contemplações da natureza, às quais dediquei tantos anos da minha vida, recompensam-me apenas agora e em alto grau por serem os mais fiéis e eficazes motivos de consolo e alegria no meio de tantas coisas ruins que se colocam.

Imagina-se que, na velhice, o poeta alemão foi reconfortado pelos estudos de botânica brasileira levados adiante, provavelmente, pelo seu encontro com estudiosos como Carl Friedrich Philipp von Martius. Este, aliás, em parceria com o príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied e com o botânico Nees von Esenbeck, nomeou como Goethea cauliflora uma das duas espécies de malva que o príncipe trouxe do Brasil. Isso aconteceu em 1823, quando Goethe esteve gravemente doente.

Esses e tantos outros detalhes sobre a relação de Goethe com o nosso país, como a suposição de que há elementos desse interesse brasilianista em um dos seus poemas mais célebres, a “Elegia de Marienbad” (1823), podem ser consultados em Viagem de Goethe ao Brasil.

Repleto de fotografias e ilustrações de itens do acervo pessoal de Goethe sobre o Brasil, além de tabelas, gráficos e listas que nos ajudam a perceber a riqueza do material acessado por Schneider durante sua pesquisa, o livro conta ainda com a primorosa tradução de Daniel Martineschen, especialista na obra de Goethe e vencedor do prêmio Jabuti pelo seu trabalho em O divã ocidento-oriental (Estação Liberdade, 2020).

Viagem de Goethe ao Brasil é uma leitura essencial para qualquer pessoa interessada na biografia de Goethe e no caráter polímata de sua obra tanto pela riqueza do seu conteúdo quanto pela capacidade do geógrafo Sylk Schneider de nos transportar para um cenário de sonho, em que podemos imaginar o quanto o poeta Johann Wolfgang von Goethe teria gostado de visitar o Brasil.

Quem escreveu esse texto

Juliana de Albuquerque

Colunista do jornal Folha de S.Paulo. Doutora em Filosofia e Literatura Alemã pela University College Cork (Irlanda) e Mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv (Israel). Ela coeditou o volume Anti/Idealism: Re-interpreting a German Discourse (De Gruyter, 2019)