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Para gostar de neurociência

Com didatismo e humor, argentino explica o estado da arte do nosso conhecimento sobre o cérebro

13nov2018 | Edição #7 nov.2017

Recém-publicado pelo neurocientista argentino (também escritor e enxadrista) Mariano Sigman, A vida secreta da mente constitui um panorama ousado, vasto e fascinante da neurociência cognitiva contemporânea, narrado através do percurso formativo e produtivo de Sigman, um dos mais originais pesquisadores da consciência em sua geração. A potência desse recurso narrativo é amplificada pela dimensão superlativa do próprio Sigman e de seus mentores e colaboradores, cujas ideias ele descreve com a familiaridade de quem testemunhou ou participou diretamente de revoluções intelectuais: neurobiólogos e psicólogos do naipe do prêmio Nobel Torsten Wiesel, Charles Gilbert, Jacques Mehler, Elizabeth Spelke, Andrew Meltzoff, Susan Goldin-Meadow, Stanislas Dehaene, Karen Wynn, John Bruer e Sidney Strauss. Pensadores praticamente inacessíveis ao público brasileiro até agora. A vida secreta da mente preenche essa lacuna com rigor e humor, visitando Sócrates, Piaget e Turing com a mesma curiosidade com que evoca o estadista Churchill, o enxadrista Capablanca, o mestre Miyagi de Karatê Kid e o herói nacional argentino Maradona, dado como exemplo triplo de talento, esforço e malandragem.

O livro é um guia de alto nível para um debate atualizado e suficientemente sofisticado sobre a mente, indo muito além do festival de neurobesteiras que assola o país. Neurociência para adultos, sem folclorotas de cartum em que as partes do cérebro são representadas como peças de uma geringonça que explica nossa vida mental pelo lado de fora: “Meu hipocampo navegou, minha amígdala desaprovou, meu córtex pré-frontal decidiu…”. A dieta aqui é bem diversa. 

O que se degusta são ideias, perguntas e sobretudo experimentos. Uns clássicos, outros prosaicos, todos interessantes — inclusive os caseiros, para que o leitor possa atestar propriedades psicológicas cotidianas que muitas vezes ignoramos, como cruzar os braços ou tocar o nariz durante uma conversa, para verificar se o interlocutor imitará involuntariamente o gesto, atributo do sistema de “neurônios espelho” no córtex cerebral.

O livro é um guia de alto nível para um debate atualizado sobre a mente, indo muito além do festival de neurobesteiras que assola o país

Despojado de afetação acadêmica, Sigman nos convida a considerar alguns dos maiores problemas da busca pela compreensão da mente humana: o que pensam os bebês? Como adquirimos a linguagem? De onde surgem a moralidade e a matemática? Nossas decisões são de fato racionais? Quais são as bases neurais da consciência? De onde vêm os sonhos? Como funcionam os psicodélicos? O que o inconsciente tem a ver com isso? De que forma se dá o aprendizado? Como fomentar nossos talentos? Qual é a escola de nossos sonhos?

O exame da evidência empírica mais robusta quase sempre resulta na quebra dos preconceitos e das expectativas construídas pelo senso comum. Sigman desconstrói, por exemplo, a noção de talento como dom inato que pode até ser desperdiçado, mas jamais é conquistado com doses adequadas de esforço. O ouvido absoluto (capacidade de identificar notas musicais sem ter um tom de referência) é uma valiosa raridade no Ocidente, mas chega a ser comum em chineses e vietnamitas. Pesquisas da neurocientista inglesa Diana Deutsch mostram que a origem dessa diferença é cultural. A maior parte das crianças pequenas tem ouvido quase absoluto, mas nas populações ocidentais essa capacidade se atrofia por falta de uso, exceto em crianças expostas à música desde muito cedo. Em vários povos orientais, as línguas codificam significados também de acordo com a prosódia, ou seja, mudam de sentido conforme o tom. Mesmo crianças chinesas e vietnamitas não expostas à música tendem a manter a capacidade de distinguir tons pela prática da linguagem, facilitando enormemente o trabalho dos caçadores de talento nos conservatórios.

Boa parte do percurso diz respeito às crianças. Bebês são capazes de formar representações abstratas a respeito dos mundos natural e social, incansáveis “máquinas de conjecturar” e de fazer julgamentos morais. No exame polêmico dos instintos humanos de cooperação e opressão, na observação da economia infantil revelada nas transações de brinquedos no recreio das escolas, na constatação de que os pronomes possessivos surgem no discurso das crianças antes mesmo que venha a palavra “eu” ou o próprio nome, Sigman adverte que a propriedade precede a identidade. Cuidar de si e dos seus, “os de dentro”, é um instinto tão comum quanto descuidar dos outros, “os de fora”.

Educação formal

O ponto de chegada da viagem proposta por Sigman é a educação formal, talvez o maior experimento da espécie, que na maior parte do globo ainda não superou a dinâmica de repetição e repressão que define a escola desde o tempo das edubas sumérias de cinco mil anos atrás. Instituição civilizatória, mas carente de uma ciência do aprendizado, que Sigman, entre outros, tem procurado construir com sucesso. Pesquisas demonstram que o melhor aprendizado vem da motivação intrínseca que permite “elevar a barra” progressivamente, impedindo que o aluno estacione na zona de conforto ou que a frustração o faça desistir da tarefa. 

“Ninguém ensina nada, as pessoas é que aprendem”, no entanto, a intencionalidade e a empatia do mentor fazem a diferença. Sobretudo quando o mentor é outra criança, pois ensinar é um dos mais transformadores instintos humanos. Os resultados experimentais dialogam com o conceito de “zona de desenvolvimento proximal” do psicólogo soviético Lev Vygotsky: é no âmbito das relações que mais aprendemos.

E nos sonhos! Sigman nos conta dos fabulosos experimentos de Jack Gallant e Yukiyasu Kamitani, que demonstraram ser possível decodificar padrões de atividade cerebral mapeada por ressonância magnética funcional, a ponto de descobrir o que uma pessoa viu (Gallant) ou mesmo sonhou (Kamitani). O livro visita a fábrica noturna de imagens e desejos para nos lembrar que os sonhos são fonte de aprendizado e ideias, como a incrível canção “Yesterday”, que Paul McCartney sonhou na íntegra.

Um dos pontos altos do livro é a explicação da diferença entre perceptos conscientes e inconscientes como resultado de maior ou menor espalhamento cortical da atividade elétrica, isto é, a percepção consciente está associada a uma ativação muito mais ampla do córtex cerebral do que a percepção inconsciente. A discussão desemboca no “potencial de prontidão”, fenômeno explorado no clássico experimento do neurocientista norte-americano Benjamin Libet: qualquer ato motor consciente, iniciado por livre e espontânea vontade do indivíduo, é precedido pelo aumento da amplitude das ondas cerebrais centenas de milissegundos antes de haver uma decisão consciente de agir. 

Eduardo Giannetti, em A ilusão da alma (2010), exprimiu assim sua perplexidade: “É possível termos acreditado falsamente durante milênios que a vontade consciente rege nossos músculos quando, na verdade, ela é o subproduto inócuo de uma cadeia de eventos eletroquímicos no cérebro?”. Sua angústia vem da interpretação do experimento de Libet como negação empírica do livre-arbítrio. Se há sinais do ato motor antes mesmo de que este se torne consciente, então a consciência não tem nenhum poder de causar nossas ações? A tomada de decisão, portanto, não passa de uma ilusão de controle da nossa própria mente? Nas palavras de José Saramago em Todos os nomes (1997): “Em rigor não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós”. Uma solidão profunda de si mesmo, o eu à deriva no mundo amplo, estranho e alheio das moléculas sem alma…

O livre-arbítrio transcorre em duas etapas: primeiro liberdade, depois arbítrio. Se no início existe a liberdade das inúmeras possibilidades, no fim se dá a escolha de apenas uma

A resposta a Giannetti e Saramago se dá em dois planos, ambos bem demarcados por Sigman. Em primeiro lugar, como defendeu o próprio Libet, a volição (vontade) consciente se exerce como poder de veto imediatamente antes da realização do ato. O livre-arbítrio transcorre no tempo em duas etapas distintas: primeiro liberdade, depois arbítrio. Se no início existe a liberdade das inúmeras possibilidades, ao final se dá a escolha de apenas uma delas, que exclui todas as outras. Como se o potencial de prontidão fosse o som captado por um microfone dentro de um estádio de futebol lotado, instantes antes do chute a gol. O som vai crescendo à medida que o craque dribla um zagueiro atrás do outro, em progressão dramática de possibilidades que se afunilam rumo à pequena área. O som tonitruante precede e anuncia, mas não se confunde com o gol que está por ser marcado — e que até o último instante pode ser parado, defendido, interrompido, vetado. Através dos circuitos pré-frontais, capazes de inibir comportamentos, a última palavra é da consciência.

Em segundo lugar, é preciso ter clareza da maravilhosa incompletude da neurociência, conhecimento jovem, que ainda tateia. Sigman compara nosso entendimento da relação cérebro-mente ao que se sabia sobre o calor à época de Lavoisier e Carnot, que investigaram o hipotético fluido denominado “calórico” por desconhecerem que o calor não é uma substância, mas uma propriedade da matéria. Esse erro fundamental não impediu a teoria do calórico de prestar ótimos serviços à revolução industrial, que se apoiava na máquina a vapor, mas foram necessárias décadas de pesquisa até que cientistas como Joule, Kelvin, Maxwell e Boltzmann transformassem as intuições dos primórdios da termodinâmica em ciência exata.

É provável que muitos dos paradoxos levantados pela neurociência atual sejam ilusão, mera medida de nossa ignorância. Isso fica tanto mais claro quanto mais perto se está da bancada experimental do laboratório. Nas palavras de Sigman: “Hoje, a neurociência está entre Lavoisier e Carnot. Somos capazes de detectar a consciência, de manipulá-la, de adivinhar seus traços e suas assinaturas. Hoje, como antes com o calor, a ciência tem que dar prontas respostas sobre o problema da consciência, de cujo substrato fundamental ainda não sabemos nada. Mas, tal como naquele momento, isso não nos impede de fazer ciência”.

Sabemos desde Freud — não por acaso defendido ardorosamente por Sigman — que é necessário e saudável duvidar da perfeita causalidade das intenções conscientes. Mas daí a negar a eficácia das ideias ou rechaçar o poder causal das crenças vai uma distância enorme, que nenhum saber autoriza percorrer. A despeito da neuromoda que satura o início do milênio, as ciências humanas têm ótimas razões para confiar no próprio taco. Ainda que sejamos compostos por redes moleculares e fisiológicas, a gigantesca escala dessas redes e suas complexas dinâmicas reverberantes — que mal começamos a compreender — cria um mosaico de propriedades emergentes que não se reduzem, de modo algum, a processos exclusivamente inconscientes, automaticamente gerados “de baixo para cima”. 

Ao contrário, a chave para decifrar o enigma de Libet é a circularidade entre os processos intracorpo e suas repercussões reais e simbólicas no mundo extracorpo. Não somos meros fantoches movidos por íons, proteínas e genes. Evidentemente também somos causados por nossos amores, medos, convicções e preconceitos. Por livros e canções. E o cérebro na rua, no meio do redemoinho…

O reconhecimento dessa circularidade exige uma mudança epistemológica. Muito além do paradigma neurofisiológico tradicional, que separa estimulação sensorial (luz, som, toque na pele, odor, sabor) da resposta cerebral a esses estímulos, cabe hoje à neurociência dar transparência à causalidade de mão dupla entre processos conscientes e inconscientes. Para superar a separação sujeito-objeto se faz necessária a autopesquisa, é preciso observar a mente que observa a si mesma: a representação da representação da representação. 

Neurojedi

A tensão intelectual e visceral dessa proposta aparece, despretensiosa, na descrição que Sigman faz de um experimento informal, realizado em seu doutorado, cujo objetivo era controlar voluntariamente a temperatura da ponta dos dedos. Sigman relata que em pouco tempo se tornou capaz dessa proeza. Outros doutorandos — o neurocientista norte-americano Timothy Gardner e eu — e o então professor da Universidade Rockefeller, Claudio Mello, passamos pela mesma experiência de “neurojedi”, sugerida pelo analista jungiano Francis Clifton, psicoterapeuta de um de nós.

Descobrimos que o sucesso do experimento dependia da observação, em tempo real, das mais mínimas variações de temperatura detectadas por um termopar (um termômetro supersensível). Curiosamente, descobrimos também que a capacidade de executar a tarefa era muito dependente da crença na possibilidade de gerar o efeito. Inicialmente, um de nós conseguiu dominar a tarefa e os outros pareceram conseguir, mas depois “perderam” a capacidade de fazê-lo. Por longos minutos, ninguém mais parecia capaz de replicar o fenômeno. Mello continuou tentando até que finalmente conseguiu adentrar novamente o incrível estado mental em que somos capazes de subir e baixar a temperatura dos dedos com a força do pensamento. Depois que ele conseguiu, todos conseguimos. Restabeleceu-se a completa confiança no que havíamos observado inicialmente. Foi como se o exemplo firme do fenômeno tivesse criado um “imperativo coletivo” que alavancou a crença e o efeito em si.

Por muito tempo, os autoexperimentos foram evitados pelo conservadorismo acadêmico, que insiste em reduzir a riqueza multicausal da realidade para gerar modelos simples, mas falsos. A única maneira de realmente conhecer um fenômeno mental é em primeira pessoa. Somos, tanto dentro do cérebro quanto socialmente, redes complexas em interação. O pensamento emerge da dinâmica circular do funcionamento dessas redes, em incessante retroalimentação, gerando um universo interior de simulações incorporadas, embarcadas num corpo que sente, respira e se aproxima de outros corpos. Tema essencial dos neurobiólogos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana, sujeitos ocultos transandinos desse livro fascinante, cujo propósito Sigman resume na frase final: “Para que o mundo seja menos amplo e alheio”.

Quem escreveu esse texto

Sidarta Ribeiro

Neurocientista do Instituto do Cérebro da UFRN, escreveu Limiar: uma década entre o cérebro e a mente (Vieira & Lent).

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.