Divulgação Científica,

Naturezas reinventadas

Coletânea de ensaios de Donna Haraway traz textos-chave de sua carreira cheia de viradas e novos objetos de estudo

01set2023

Símios, ciborgues e mulheres, coletânea de artigos clássicos de Donna Haraway que chega ao Brasil, reúne em quinhentas páginas os textos-chave para compreendermos a obra da intelectual estadunidense. São artigos relevantes em sua trajetória, datados de 1978 a 1989, ou seja, dos anos de formação até momentos decisivos do estudo sobre grandes primatas e o amadurecimento de suas análises feministas, sem deixar de incluir seu famoso “Um manifesto ciborgue”.

Logo na introdução, Haraway propõe que a reunião de ensaios deve ser lida como uma advertência sobre “a invenção e a reinvenção da natureza”, tema que perpassa sua obra dos anos 70 até hoje. O livro é dividido em três partes e quem acompanha a obra de Haraway talvez já tenha se deparado com alguns dos capítulos. Na primeira parte, examinam-se os olhares feministas e os estudos de grandes primatas — a bióloga especializada em hominídeos aos poucos se torna a historiadora da ciência que conhecemos. Na segunda, são tratadas as disputas de poder em teorias biológicas a partir dos ambivalentes conceitos “natureza” e “experiência”. Por fim, na terceira parte, é apresentada a noção harawaydiana de ciborgue e também o aprofundamento de suas pesquisas sobre gênero, corpo, alteridade e biopolítica.

Ler esses artigos em sequência nos permite observar dois pontos bastante evidentes da trajetória da intelectual. O primeiro é o intercâmbio de temas entre textos mais técnicos, como alguns capítulos dos estudos de primatologia, e textos mais assertivos, como “Um manifesto ciborgue”. Ao tratar da natureza humana e das teorias de produção e reprodução em estudos de primatas, a autora aponta a lógica decantada da superioridade da máquina que garantiria “a obsolescência do corpo e a legitimidade da engenharia humana”, algo que ela vai ironizar em seu manifesto.

Em um mundo acadêmico cada vez mais especializado, a amplitude da trajetória da autora é inspiradora

O que nos leva ao segundo ponto de sua trajetória: os jogos de linguagem. A ficção e a ironia têm seu lugar garantido na escrita de Haraway. Desde seu primeiro trabalho, Crystals, Fabrics, and Fields (Cristais, tecidos e campos), de 1976, ela analisa as metáforas não reducionistas, que lidam com totalidades complexas e processos emaranhados.

Em Símios, ciborgues e mulheres, para sublinhar que as narrativas da história da ciência são também fruto de políticas e ideologias — muitas vezes decorrentes da naturalização do patriarcalismo, contaminando a sociologia animal e outras áreas — a autora chama ao texto muitas outras histórias e, apoderando-se da figura do monstro, relembra: monstro está na raiz etimológica de “demonstrar”. Colocando-se ao lado dessas figuras, a autora nos convida ao abraço do monstruoso, afirmando que justamente nesse lugar híbrido e estranho há indícios de mundos possíveis.


Símios, ciborgues e mulheres, coletânea de artigos clássicos de Donna Haraway reúne em quinhentas páginas os textos-chave para compreendermos a obra da intelectual estadunidense

Ainda no tema da linguagem, é notável a articulação feita no conhecido artigo “Gênero para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra”, no qual narra as aventuras de atender a um convite, em 1983, tão delicioso quanto desafiador: escrever uma entrada para um dicionário alemão a respeito de gênero. Em um espaço de cinco laudas, a autora teria que apresentar o verbete de “sexo/gênero”.

Mostrando os desafios da empreitada, Haraway faz um exame das diferenças do vocábulo em alemão, espanhol, francês e inglês, assim como as dificuldades de descascar esse “abacaxi político” de resumir e coordenar diferentes vertentes teóricas, com detalhes. Mais que redigir uma entrada dicionarizada (a presente edição inclui o verbete final), Haraway nos apresenta perguntas e inquietações, com um convite para pensar a linguagem futura e abraçar o que nos desestabiliza.

Curiosa e corajosa

O lançamento de Símios, ciborgues e mulheres traz uma certeza: a importância do pensamento de Donna Haraway no Brasil, considerando a quantidade de lançamentos recentes por várias casas editoriais. Entre outras publicações, são exemplos O manifesto das espécies companheiras, de 2003 (Bazar do Tempo, 2021 –— a editora incluiu “Um manifesto ciborgue” em Pensamento feminista: conceitos fundamentais, organizado por Heloisa Buarque de Holanda); Quando as espécies se encontram, de 2007 (Ubu, 2022); e o artigo “Ficar com o problema: Antropoceno, Capitaloceno, Chthuluceno” de 2015, incluído na antologia de ensaios de Jason Moore, Antropoceno ou Capitaloceno? (Elefante, 2022) e convertido pela autora em um capítulo de Ficar com o problema, de 2021, cuja tradução acaba de ser publicada pela N-1.

Em um mundo acadêmico cada vez mais especializado, a amplitude da trajetória intelectual de Haraway é inspiradora. A coletânea de ensaios é uma amostra de sua carreira original e corajosa, cheia de viradas e novos objetos de estudo, embora também muito coesa em seus valores quando analisada com quase quarenta anos de distância. Algo que podemos aprender com Haraway é a importância da curiosidade, aliada à leitura vasta e heterogênea. Por exemplo, ela parte de Sigmund Freud e Michel Foucault em análises nas quais integra argumentos de bell hooks, Gloria Anzaldúa, Joan Scott, Judith Butler, entre outras teóricas; nas ciências naturais, vai de Charles Darwin a Scott Gilbert; sem esquecer a ficção científica de Marge Piercy, Octavia Butler e Ursula K. Le Guin, entre outros nomes. Haraway se dedica hoje a incursões críticas no universo da ecologia, sendo uma das vozes fundamentais no estudo do Antropoceno.

Diante da trajetória extensa da autora, é uma excelente notícia a publicação de Símios, ciborgues e mulheres, com textos que pavimentam outras pesquisas e nos trazem boas perguntas.

Quem escreveu esse texto

Ana Rüsche

Publicou A telepatia são os outros (Monomito).