Desigualdades,

A vida não é útil

Antropólogo analisa por que o sistema capitalista mantém ‘bullshit jobs’, os trabalhos que não produzem nada

01fev2022

David Graeber foi um antropólogo que ensinou na London School of Economics até 2020, quando morreu inesperadamente de pancreatite necrótica aos 59 anos. Foi uma morte trágica. O mundo perdeu um pensador original e criativo, que certamente ainda tinha muito a contribuir para um debate social e econômico que parece estar cada vez mais aquém dos desafios que enfrentamos como sociedade.

Anarquista radical, foi demitido de Yale e não conseguiu trabalho em outras universidades americanas por causa de seu radicalismo político. Ele não tenta esconder suas inclinações políticas nem separá-las do seu trabalho (ou pelo menos não em Bullshit Jobs, lançado em 2018 e ainda sem tradução por aqui). Ao contrário, ele as usa para organizar o pensamento e o seguimento das ideias. Graeber também escreveu sobre a história do conceito de dívida e o póstumo The Dawn of Everything (O alvorecer de tudo), com David Wengrow, macro-história da humanidade à la Yuval Harari, autor do best-seller Sapiens.1

Bullshit Jobs, de David Graeber

Graeber é um militante anarquista e não escreve nem tenta escrever com muita objetividade. Se os antropólogos são aquelas pessoas que se despem dos seus a priori culturais (na medida do possível) para analisar os outros, então David Graeber é uma espécie de antiantropólogo. Bullshit Jobs é, do início ao fim, recheado das opiniões políticas do autor sobre financialização da economia, globalização, relações de poder… Não é mero panfleto de opinião — o autor fez o dever de casa: entrevistou muitas pessoas e fez pesquisas de opinião qualitativa. Só que o modo como apresenta é encharcado de radicalismo anarquista, a ponto de às vezes não conseguirmos distinguir se é um informante (ou entrevistado) que está falando ou se é o próprio Graeber.

‘Bullshit Jobs’ não é mero panfleto de opinião, só que é encharcado do radicalismo anarquista de David Graeber

Além disso, o autor não entende, ou mais provavelmente não quer entender, inúmeros conceitos econômicos que poderiam reduzir o impacto de seus argumentos. Por exemplo, ele parte do pressuposto de que bancos nada produzem e portanto o mero crescimento do setor financeiro seria explicação da existência dos cada vez mais numerosos bullshit jobs. Em nenhum momento considera as várias explicações para a existência do setor financeiro: como o setor que leva capital de onde está sobrando para onde é necessário, ou como o setor possibilita a atividade econômica moderna mediante sua capacidade de criar dinheiro e crédito. São muitas as omissões como essa.

Opinião do trabalhador

Mas o livro também está recheado de insights muito interessantes. E o mais interessante deles é que os bullshit jobs existem. Graeber define um bullshit job2 como um emprego que não produz nada de útil para o mundo. O seu valor agregado social é, portanto, zero (ou possivelmente negativo).

Qualquer leitor minimamente versado em economia logo vai pular dois metros e perguntar: “Como se define valor social?”. Graeber dá uma ótima definição: vale a opinião do trabalhador. O seu emprego é um bullshit job se você acha que nele você não produz nada de útil para o mundo. Não tenho certeza de que Graeber realmente ache que essa seja a melhor definição do valor social, mas tem a vantagem de ser uma definição objetiva e difícil de refutar. Em uma passagem logicamente muito bem montada, o autor cuidadosamente deixa claro que valor social e valor econômico são coisas diferentes, potencialmente muito diferentes.

Todos já entramos em contato com pessoas fazendo trabalhos inúteis. O funcionário do cartório cuja única missão na vida é olhar duas folhas de papel para depois botar um selo em uma delas, atestando que é uma fotocópia fiel (uma fotocópia fiel de algo, já que no selo não diz do que é uma fotocópia fiel); a funcionária de uma empresa aérea cuja missão é ouvir os desaforos de clientes no aeroporto que são resultado de um péssimo sistema de gestão de passagens, sendo que tanto o cliente quanto a funcionária sabem que nada será resolvido; os inúmeros questionários inúteis, realmente inúteis, na burocracia que geram dois bullshit jobs — o primeiro para quem preenche e o segundo para quem lê. Nunca paramos para pensar que isso é algo estranho. Como é que o capitalismo permite que pessoas sejam pagas — e frequentemente muito bem pagas — para não fazer nada de útil?

Os exemplos do Graeber são muitos e bastante familiares. Além de exemplos óbvios como os que mencionei acima, existem outros que são menos visíveis, mas mais impactantes, uma vez que são muito bem pagos. Pense num vice-presidente de visão estratégica de uma grande empresa, que tem um staff de dezenas de pessoas que produzem, formatam e apresentam documentos de visão estratégica. Todas as pessoas que produzem os documentos sabem que aquilo tudo não passa de bullshit total, e essas pessoas desconfiam que os outros vps e ceos sabem que são bullshit total. Mas esses outros vice-presidentes e ceos continuam alocando fundos que somam milhões de dólares por ano para pagar por aquela inutilidade. Nada que a empresa faz tem origem nesses documentos que devem estar recheados com as frases do momento e impressos em bonito papel brilhante, mas ainda assim a empresa gasta milhares de dólares, todo ano, para fazer algo sem utilidade para ninguém.

Não concordo com as explicações de Graeber sobre por que os bullshit jobs existem nem sobre o que os impulsiona. São várias explicações, em geral tendendo para teorias algo conspiratórias ou para os “culpados de sempre”, como a globalização ou a financeirização. Mas o que não parece estar em questão é que os bullshit jobs existem, são numerosos e muitos são muito bem remunerados.

O seu emprego é um ‘bullshit job’ se você acha que nele você não produz nada de útil para o mundo

O que é curioso é por que o capitalismo deixa que existam. A visão que se tem do capitalismo é a de um sistema brutal e desumano, que persegue o lucro com determinação implacável. Normalmente quem critica o capitalismo o critica por isso — o sofrimento humano e o meio ambiente nada valem comparados ao lucro. Mas como é que o capitalismo permite que ocupações obviamente improdutivas — e volta e meia muito caras — continuem existindo? Se a empresa que financia o vice-presidente para visão estratégica não o fizesse, poderia distribuir como lucro ou reinvestir. Por que pagar? Voltarei ao tema.

Sendo Graeber antropólogo, sua maior preocupação é com os efeitos de um bullshit job sobre o trabalhador. Ele documenta com testemunhos e pesquisas qualitativas — instrumentos de trabalho do antropólogo que ele usa com habilidade — o sofrimento psicológico de pessoas que fazem algo inútil e que elas sabem ser inútil. Ele não compara o sofrimento psicológico de alguém com um bullshit job com o sofrimento psicológico de trabalhadores em shit jobs (socialmente necessários, porém mal pagos e exercidos sob condições ruins), mas as histórias do sofrimento dos trabalhadores em bullshit jobs são muito convincentes. Trabalhar em uma ocupação que você sabe ser inútil gera depressão e ansiedade. Graeber entrevista pessoas que abriram mão de empregos socialmente inúteis e foram para empregos com salários mais baixos, mas socialmente úteis, e mostra que a vida delas é melhor.

O livro também cria uma categorização dos bullshit jobs em cinco grupos. Cada um merece um longo capítulo em um livro já bem longo. Não as achei particularmente úteis. Não correspondem a outras categorizações nas ciências sociais nem categorizam tão bem assim — o próprio Graeber dá exemplos de ocupações que caem em mais de uma categoria e outras que ficam entre categorias.3

Popularidade

Bullshit Jobs é um livro que criou uma sensação mundial, com mais de oitocentas citações em publicações científicas até agora. Certamente a criatividade de Graeber em identificar o problema é uma das razões. Talvez a abordagem anarquista militante também impulsione a popularidade. Dito isso, essa mesma abordagem abre flancos para ataques à direita (esperados), mas também à esquerda, de autores acadêmicos defendem o velho conceito marxista de alienação, e não o novo conceito de bullshit job, para explicar muito daquilo que é descrito por Graeber.

Magdalena Soffia, Alex J. Wood e Brendan Burchell, no artigo “Alienation Is Not ‘Bullshit’: An Empirical Critique of Graeber’s Theory of bs Jobs in Work, Employment and Society” (Alienação não é inútil: uma crítica empírica à teoria dos trabalhos inúteis de Graeber), de junho de 2021, utilizam uma pesquisa representativa e estimam o número de bullshit jobs em 5%, muito abaixo dos 20% ou mais estimados por Graeber (que não usa pesquisas com representatividade estatística).

Existem vários exemplos de ‘bulshit jobs’ que são menos visíveis, mas mais impactantes, uma vez que são muito bem pagos

Minha visão é que David Graeber não se propôs a fazer um trabalho científico ou acadêmico, portanto dizer que o livro deixa muito a desejar (e sem dúvida deixa) nessa esfera é um pouco como criticar Star Wars por desprezar as leis da física. Como um livro que abre os nossos olhos para um problema que estava diante de nós há muitos anos, Bullshit Jobs merece toda a sua popularidade.

Não tenho certeza sobre para onde seguir. Bullshit Jobs identifica um problema real: pessoas que trabalham em ocupações que, segundo elas próprias, para nada servem. David Graeber não é muito prolixo em termos de políticas para evitar a criação desse tipo de ocupação — mas discutir políticas públicas tampouco era seu objetivo. Pode ser que esse seja um problema que merece ou não ser tratado como relevante. Para decidirmos se sim ou não, precisamos de mais investigações à la Magdalena Soffia et al. — é muito relevante saber se 20% ou 5% dos trabalhadores sentem que o que fazem não têm utilidade alguma.

Mas pode ser que Bullshit Jobs seja também um aviso sobre uma disfunção mais profunda no capitalismo moderno. Talvez a existência de empregos que nada produzem não seja apenas um problema para os 5% ou 20% dos trabalhadores que neles estão empregados, e sim um aviso de um problema mais profundo no capitalismo moderno. Voltemos à pergunta de por que o capitalismo permite ocupações que nada produzem.

Ketchup

A existência de corporate raiders ou recompra de ações são coisas que colocam em xeque o modelo concorrencial do capitalismo moderno. O nome corporate raider é feio, mas eu não tenho nenhuma simpatia pelas suas vítimas. Para usar um exemplo perto de casa, o economista e empresário Jorge Paulo Lemann procura empresas com modelo de negócios sólido, mas cujos executivos têm um padrão de vida tão ostentatório que as ações perdem valor. Ele toma o controle da empresa, demite todos os executivos Marie Antoinette, não toca na linha de produção e fica rico quando as ações sobem. Brahma, Antarctica, Anheuser-Busch, Burger King e Heinz Ketchup não parecem ter nada de inovador e, em termos de produto, não têm mesmo. É claro que essa descrição é uma simplificação, mas a fonte da riqueza do homem mais rico do Brasil se deve à existência de imensas rendas schumpeterianas4 no sistema capitalista moderno.

A recompra de ações é um dos principais instrumentos que os dirigentes têm para manter controle das empresas. Os controladores usam os próprios recursos da empresa, ou pior, fazem empréstimos bancários em nome da empresa para recomprar as ações da própria empresa, aumentando assim o preço das ações e impedindo o corporate raider de controlá-la. Usar o caixa da empresa ou um empréstimo bancário para recomprar ações e não investir no negócio nem distribuir lucros é destinar recursos que poderiam aumentar a produtividade e lucratividade de uma empresa para garantir o seu controle e os privilégios que vêm com esse controle. Seria o equivalente corporativo de um político destinar recursos do erário para sua campanha de reeleição.

Talvez a existência de empregos que nada produzem seja o aviso de um problema mais profundo no capitalismo moderno

Qual é a relação entre corporate raiders, recompra de ações e os bullshit jobs? Uma possibilidade é que as funções de produção em muitos setores tenham ganhos de escala gigantes. Não só coisas óbvias como YouTube ou a Eletrobras, mas também mercados que “parecem” competitivos, como de cerveja ou ketchup.

Seja no tamanho ótimo das fábricas, seja nas redes de distribuição, em algum lugar os ganhos de escala devem existir. Se assim for, uma boa parte (tipo 80%) da economia é feita por empresas grandes com rendas schumpeterianas grandes, e quem controla o conglomerado controla essas rendas. A maior parte da sua apropriação vai para imensas remunerações de executivos à la Piketty, mas essas rendas são tão altas que também permitem a existência de um exército de pessoas improdutivas que são pagas para fazer bullshit jobs, o que explica a existência do vice-presidente de visão estratégica e de todos que trabalham para ele.

A história está repleta de políticas distributivas estúpidas, que só fazem matar as gansas dos ovos de ouro, mas também está cheia de políticas distributivas que foram objeto de imensa campanha de “vai matar a gansa dos ovos de ouro”, mas que depois não fizeram nada disso — imposto de renda progressivo e alto é um bom exemplo.

Não sei se a conclusão é mais imposto ou mais concorrência, mas acho que principalmente não se deve ter o modelo de economia concorrencial como o default ao lidar com o capitalismo de hoje. Se ressaltar isso foi um dos objetivos de David Graeber, ele certamente me convenceu.

Nota do editor
1. Dívida: os primeiros 5 mil anos, única obra de Graeber traduzida no Brasil, foi publicada pela extinta editora Três Estrelas e não tem previsão de retorno ao mercado. The Dawn of Everything está previsto para sair neste ano, pela Companhia das Letras.
2. A palavra bullshit em inglês se refere a algo que é falso ou enganoso. Stop bullshitting! equivale a “pare de me enrolar!” em português.  Portanto, um bullshit job seria um trabalho caracterizado pela enrolação ou mentira. Não há uma tradução perfeita.
3. Flunkies, cuja função é fazer os outros sentirem-se importantes; goons, que machucam ou enganam terceiros a mando de seus empregadores; duct tapers, que procuram soluções a problemas desnecessários que de fato não resolvem o problema; box tickers, cuja função é criar a aparência de que algo útil está sendo feito quando não está; e os taskmasters, que criam trabalho inútil para os demais.
4. Renda auferida por alguém além da remuneração normal dos fatores de produção. Schumpeter usava o termo para descrever as rendas que um inovador teria até que sua inovação fosse copiada, mas eu uso para descrever qualquer renda além da remuneração normal dos fatores de produção que advém das estruturas industriais de um dado setor.