Divulgação Científica,

Piada de cientista

Com bom humor, dupla explica e atualiza a teoria da evolução

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

É quase uma piada: um zoólogo e um jornalista entram num bar. Um é ateu; o outro, católico. O que eles fazem? Resposta: escrevem um livro. Que é, de fato, engraçado. E sério também. Na vida real, esses personagens são encarnados por dois autores que fazem divulgação científica da melhor qualidade. Pirula é biólogo, doutor em zoologia, especialista em répteis pré-históricos e youtuber. Reinaldo José Lopes é jornalista, editor, doutor em literatura e especialista na obra de J.R.R. Tolkien, autor da trilogia Senhor dos anéis

Darwin sem frescura é um livro irreverente, com conteúdo apurado e discussões relevantes para a convivência num mundo cada vez mais saturado de gente e dados. Não faltam as controvérsias prometidas no título, bem como explicações minuciosas capazes de provocar nos adultos flashbacks das aulas do Ensino Médio. Os conceitos são difíceis, muitos deles contraintuitivos, mas a linguagem é descontraída, com trocadilhos e gagues no texto e nas imagens.

Conversa afiada

Os autores recomendam que Darwin sem frescura funcione como uma porta de entrada para a leitura de obras mais complexas. Darwin e os cientistas que o seguiram, como o biólogo britânico Richard Dawkins, estudaram e descreveram processos evolutivos em certos contextos; não é comum que essas obras sejam adaptadas para as realidades onde são publicadas. Por isso, o livro busca ancorar nas nossas vidas cotidianas os achados científicos sobre evolução e comentá-los a partir da biodiversidade brasileira. É o caso da discussão sobre “elos perdidos”: foram encontrados fósseis de dinossauros no Rio Grande do Sul e na Argentina que são “elos não mais perdidos”.

A interdisciplinaridade — marca da pesquisa científica contemporânea — aparece em capítulos com nomes engraçadinhos, como “Homossexualidade é natural, viada” e “Troca de casais na pré-história”. Esses debates guardam conexões entre áreas diversas, como antropologia, psicologia, economia, matemática e ciências da computação, e explicam biologicamente certos comportamentos animais. Sabe-se, por exemplo, que algumas condutas de espécies sociais com cérebro complexo (como humanos e outros primatas) podem ser herdadas. E mais: tendem a ser favorecidas pela seleção natural quando fortalecem a coesão e a estabilidade do grupo. É o que acontece na “aversão à inequidade”, uma reação negativa a tratamentos desiguais recebidos por indivíduos da mesma espécie e de comportamento idêntico. Em um estudo clássico, um grupo de macacos-prego literalmente jogou na cara dos cientistas os pepinos sem graça que ganhou por executar as mesmas tarefas de outro grupo recompensado com uvas.

Uma variedade de argumentos cientificamente embasados são usados no livro para desconstruir ideias equivocadas sobre ciência e evolução. A própria noção de teoria científica, muitas vezes confundida com hipótese científica — suposição que ainda não foi submetida a validação —, é esclarecida nesse processo. Em outro capítulo, Pirula e Lopes desmentem a ideia de que a evolução seria a luta pela sobrevivência — hoje sabemos que ela tem muito mais a ver com a busca por sucesso reprodutivo. Esclarecem ainda, em outro momento, que, nas “preferências” sexuais, a genética tem mais influência que o livre-arbítrio. 

Conversa paralela

Ilustrações e gráficos explicativos complementam os conteúdos e lhes dão concretude, amenizando a densidade dos parágrafos longos e coalhados de termos difíceis. O projeto gráfico é também um componente essencial, criando uma narrativa que atua paralelamente ao texto. Nesse sentido, Darwin sem frescura é herdeiro de um modelo de livro conhecido como iconográfico, muito difundido a partir dos anos 1990 e 2000, e caracterizado por uma forte relação texto-imagem. A atmosfera aqui é análoga à de um museu de história natural, com gravuras e desenhos que lembram pranchas de botânica e zoologia. O modo como essas imagens são exploradas procura se aproximar do público jovem. A capa e a abertura usam sobreposições em uma espécie de colagem, jogo entre ilustrações de figuras já conhecidas e uma tipografia contemporânea.

Outro elemento visual lúdico são as sequências que mostram os seres vivos mencionados ao longo dos textos. O efeito é parecido com o dos flip books, livretos com imagens encadeadas que produzem a sensação de movimento ao serem folheadas rapidamente, como num filme de animação. No capítulo sobre a homossexualidade, um leão e uma leoa namoram, depois o casal aparece com filhotes, em seguida o leão afugenta a fêmea, que some. Outro macho aparece, faz uma gracinha e os dois leões saem de cena juntinhos. A brincadeira se repete a cada capítulo e quem percebe o truque fica à espera da próxima peripécia.

Intercalados nas páginas, gráficos e esquemas ajudam na compreensão das informações. A maior parte resume passagens do texto principal e apresenta os mesmos dados em versão visual. Alguns, mais próximos do formato acadêmico, em que o gráfico é seguido de um texto que o descreve, talvez fossem mais atraentes e fáceis de ler com uma integração maior entre títulos, legendas e ilustrações. Além disso, uma linha do tempo geral teria trazido um ganho e seria uma ótima fonte de consulta.

Assim como Darwin sem frescura, são bem-vindos todos os livros de divulgação científica que exploram recursos de linguagem em um esforço de comunicação com as novas gerações, instigando o pensamento crítico e o interesse pelas ciências. Conscientes de que a “embalagem” molda e ajuda a acessar os conteúdos teóricos, seja para os mais nerds ou para quem simplesmente quer entender melhor por que o seu corpo é como é, autores e equipes editoriais se empenham na construção de textos, gráficos, infográficos, fotos, ilustrações e capas. Neste momento do Brasil, em que teorias “terraplanistas” e criacionistas ganham ares de ciência contemporânea, uma publicação como essa é um alento e uma esperança.  

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Ana Paula Campos

Designer, é autora de Inventório, mestrado pela fau-uspsobre design e livros informativos para crianças.

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.