Divulgação Científica,

Inteligência submarina

O que um professor de filosofia tem a dizer sobre os polvos e outros moluscos sapientes

01mar2019

Se existe algo que deveríamos conhecer bem é aquilo que se passa em nossa cabeça. Afinal, nossas sensações, sentimentos, memórias e pensamentos são a maior parte do que identificamos como “eu”. Sabemos que sensações podem ser falsas, sentimentos confusos, memórias corrompidas e pensamentos delirantes. Mas é o que temos e, queiramos ou não, passamos a vida tentando entender como opera nossa mente. O que, então, podemos dizer das outras que existem por aí?

Uma das características de nossa inteligência é a capacidade de imaginar o que se passa na cabeça de outras pessoas com base em pouquíssima informação. Quanto mais próxima a pessoa, mais fácil: basta um olhar torto de alguém querido para lermos desaprovação. Com pessoas de outras culturas é mais difícil. E quando se trata de outros mamíferos, é quase impossível saber. Apesar disso, ainda acreditamos saber o que pensam nossos animais de estimação. Provavelmente é uma ilusão.

Os polvos são a forma de vida mais distante dos mamíferos que manifesta sinais claros de inteligência

No caso dos humanos, a conexão entre mentes é feita sobretudo através da linguagem. Ela permite que o conteúdo mental de uma pessoa seja codificado em sons e imagens, saia de um corpo e atravesse em direção a outro. São essa troca e decodificação que nos permitem viver em sociedade e acumular conhecimento. Só na ficção científica é possível vivenciarmos a mente de outra pessoa; temos que nos contentar com a imagem mental que construímos delas. 

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Para investigar animais que não compartilham nossa linguagem, usamos uma infinidade de métodos indiretos que vão dos eletroencefalogramas até experimentos comportamentais. Acumulamos uma enorme quantidade de informação sobre inúmeras mentes. O problema é que praticamente toda ela provém de mamíferos, com uma contribuição menor de outros vertebrados, como aves e peixes. 

Não temos praticamente nenhum material sobre a mente de formas de vida mais distantes. De uma minhoca, por exemplo. É por isso que, quando autores de ficção científica imaginam a mente de seres extraterrestres, suas criações — Chewbacca, Spock etc. — não passam de versões rasteiras da mente humana.

Em Outras mentes, Peter Godfrey-Smith tenta romper essa barreira. Além de ser professor de filosofia da ciência na Universidade de Sydney, o autor é um apaixonado por lulas, polvos e seus parentes. São animais que possuem um sistema nervoso e sensorial muito sofisticado — com neurônios espalhados pelo corpo, grande parte deles nos tentáculos —, um cérebro bem desenvolvido e um sistema visual aparentemente similar ao nosso. Comunicam-se mudando de cor. Nesse aspecto, são muito mais sofisticados que nós — que no máximo ficamos brancos de medo ou vermelhos de vergonha. Tudo indica que possuem uma linda mente.

O livro nos faz imaginar como pensam os polvos. Seu maior mérito é unir a experiência que o autor teve mergulhando com os animais a uma ótima introdução aos problemas relacionados à natureza da mente. Alterna capítulos sobre aspectos filosóficos, psicológicos e neurofisiológicos com outros sobre a biologia dos moluscos. 

Os polvos são a forma de vida mais distante dos mamíferos que manifesta sinais claros de inteligência. É provável que, dentro daquele corpo sem esqueleto, exista alguma espécie de mente — e quem sabe até de consciência. Caminhando em direção ao passado, o ancestral comum mais recente entre mamíferos e polvos habitou a Terra 400 milhões de anos atrás. Para se ter uma ideia de quão longe isso está no passado, basta lembrar que o ancestral comum que deu origem aos pássaros e mamíferos viveu há 320 milhões de anos, que os dinossauros desapareceram há 200 milhões de anos, e a linhagem que deu origem aos seres humanos surgiu faz menos de 10 milhões. A mente de macacos ou ratos tem estruturas muito semelhantes à nossa, que se originaram de um ancestral comum que habitou a Terra há apenas dezenas de milhões de anos. 

Telefone, minha casa

Quando a linhagem que deu origem aos polvos se separou dos vertebrados, os animais que habitavam o planeta ainda não tinham nada parecido com um cérebro. Como conclui Godfrey-Smith, a mente de um polvo é tão diferente de uma mente humana quanto seria da mente de um et.

Ao encararmos um polvo no fundo do oceano, estamos em contato com algo totalmente diferente e desconhecido. Mas isso não impede que o autor dê sua mão para um deles, que a segura com seu tentáculo e o leva para conhecer seu abrigo, numa das cenas mais impressionantes que o livro descreve. Lembra um extraterrestre conduzindo um humano para sua nave.

Lendo Outras mentes, percebemos que, se encontrarmos essas formas de vida inteligentes, elas seguramente serão muito mais estranhas que tudo que qualquer coisa que já vimos em filmes. Se um polvo — que divide um ancestral em comum  conosco de 400 milhões de anos atrás — tem a mente que aparenta ter, difícil imaginar a de um extraterrestre.

Terminei a leitura com a sensação de que há algo muito sofisticado que ainda se oculta na mente desses animais. Mas temos que correr se quisermos interagir com essa outra inteligência. No ritmo em que estamos destruindo os oceanos, talvez a única outra mente sofisticada do planeta desapareça. Nesse caso, para encontrar outras mentes, só mesmo passeando pela galáxia.  

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Fernando Reinach

Biólogo, escreveu Folha de Lótus, escorregador de mosquito (Companhia das Letras).