Cultura Digital,

A violência nasce antes das telas

Livro mostra que os games violentos não criam assassinos seriais, ao contrário do que dizem os “empreendedores morais” da atualidade

01ago2018

Passar horas diárias jogando games violentos, como os de tiro em primeira pessoa, pode reduzir a sensibilidade de um indivíduo à violência e aumentar a sua agressividade? A pergunta, como vemos neste livro do criminologista Salah H. Khaled Jr., está no cerne do debate sobre os supostos perigos do consumo de jogos eletrônicos violentos. Para o cidadão que acompanha o assunto apenas no noticiário ocasional, pode parecer que a resposta já foi alcançada pela ciência: jornalistas, políticos e especialistas de plantão afirmam que os games violentos levam à perda de vidas humanas. Khaled Jr. se dedica, em um texto enfático e minucioso, a demonstrar que não é bem assim.

O autor deixa claro, já na apresentação, que é um gamer dedicado há trinta anos, e que portanto sua abordagem é tendenciosa. Mas o esforço para derrubar a hipótese da causação — segundo a qual jogar games violentos aumenta a chance da ocorrência de atos violentos na vida real — é sólido e persuasivo o suficiente para reverter convicções sobre o assunto.

O livro interessará também ao leitor que, como eu, jogou videogames a vida inteira e jamais detectou nem em si mesmo nem em seus amigos gamers qualquer elevação da agressividade ou do impulso de cometer massacres. Pelo contrário: a concentração de ternura e benevolência na índole dos gamers que conheço só não é maior que na dos metaleiros, outro grupo injustamente demonizado. Esse é um aspecto curioso do debate, que ganha contornos de delírio coletivo: se as pesquisas alarmistas estão corretas, e se bilhões de pessoas jogam videogames, por que episódios violentos comprovadamente relacionados a jogos eletrônicos são tão raros?

Como apontado por Khaled Jr., o jogo Carmageddon, no qual o jogador, dirigindo automóveis, atropela figuras humanas, nunca foi ligado a nenhum atropelamento na vida real. Mesmo assim, foi alvo de campanhas de pânico no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde foi proibido em 1997 pelo Ministério da Justiça, após uma ação movida pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). O livro narra dúzias de casos semelhantes e mostra como as evidências de causação, salvo pouquíssimas exceções, são inexistentes ou questionáveis.

O autor faz uma análise extensa das origens e mecanismos de propagação dessa imagem social negativa, ou “criminalização cultural”, atribuída aos games. Toda nova mídia, argumenta, enfrenta um rito de passagem, sendo considerada moralmente perigosa em alguma medida. No caso dos videogames, é como se o rito de passagem nunca houvesse terminado.

Death Race

Khaled Jr. localiza o primeiro precedente no jogo Death Race, em 1976, quando a censura da sociedade norte-americana ao ambiente dos fliperamas se deslocou para um jogo específico, inaugurando um padrão que ressurgiria ao longo das décadas: um problema social ou uma tragédia violenta de múltiplas e complexas causas é associado a um ou mais games, que se tornam bodes expiatórios. A mídia aborda o caso com sensacionalismo, especialistas e grupos de pressão da sociedade civil reforçam o discurso acusador, iniciando o pânico moral e fornecendo publicidade gratuita aos jogos, que têm incrementadas as vendas e a disseminação de cópias piratas.

Foi em 1999, com o massacre de Columbine, que a ideia de que games podem transformar adolescentes em assassinos se enraizou no imaginário

Nas décadas seguintes, jogos violentos com gráficos cada vez mais realistas, tais como Mortal Kombat, detonariam muitas controvérsias e tentativas de censura. Mas foi em 1999, com o massacre de Columbine, que a ideia de que games podem transformar adolescentes em assassinos se enraizou no imaginário. Meses depois, em São Paulo, o estudante Mateus da Costa Meira abriu fogo contra os espectadores de uma sala de cinema do Morumbi Shopping, matando três pessoas e ferindo outras cinco. A imprensa divulgou que ele teria se inspirado em uma sequência presente no jogo Duke Nukem 3D. Desde então, muitas tragédias semelhantes são irresponsavelmente associadas ao consumo de videogames.

Cruzadas moralistas

A noção de que os autores de crimes terríveis como esses possam ter se inspirado diretamente em jogos eletrônicos é cultivada por indivíduos que Khaled Jr. chama de “empreendedores morais”, que transformam o seu sentimento de ofensa em cruzadas públicas, movidas por princípios e interesses pessoais. Mas, também para os fãs de games, trata-se de uma questão da mais alta seriedade. Em minha trajetória como adepto dos jogos eletrônicos, muitas vezes me perguntei se o contato com a violência interativa na tela poderia alterar o meu comportamento. Uma vez provada, uma conexão muito significativa entre games e violência seria motivo para rever os meus hábitos e tolerar formas de controle mais severas que as classificações indicativas já existentes (no Brasil, estatais; nos EUA, estabelecidas pela própria indústria).

Boa parte do livro é dedicada a mostrar como as investigações de casos semelhantes jamais encontraram conexão significativa entre ações de criminosos e seu hábito de jogar games. Em alguns poucos casos, há indícios de que os games podem ter influenciado o estilo das ações, mas não as motivado. Entre eles está a chacina ocorrida em Brasilândia em 2013, conhecida como caso Pesseghini, associada, na época, ao game Assassin’s Creed. Khaled Jr. mostra interesse especial pelos contornos polêmicos e até hoje mal resolvidos do caso, dedicando-lhe uma longa seção no último capítulo.

O foco da obra não está nos motivos da existência dos jogos violentos ou em seu imenso poder de atração, mas Khaled Jr. também ataca brevemente a questão no segundo capítulo, propondo que jogos violentos de temática criminal, tais como a série Grand Theft Auto, oferecem uma transgressão prazerosa do tédio da vida contemporânea, por meio do exercício de uma liberdade inconsequente. Embora não seja de todo falsa, considero essa explicação insuficiente.

Outra possível explicação é de matiz evolucionista e tem a ver com a violência inerente ao instinto animal de brincar (em português precisamos de pelo menos dois termos, jogar e brincar, para dar conta do termo em inglês play, muito mais rico em acepções). É fácil perder de vista que os jogos eletrônicos, centrados em conjuntos de regras, procedimentos, pontuações e objetivos, têm parentesco mais profundo com jogos e brincadeiras tradicionais que com mídias modernas como o cinema e os quadrinhos.

Acredito que games violentos como GTA derivam tanto das lutinhas juvenis e brincadeiras de mocinho e bandido quanto dos filmes de Scorsese e Tarantino. De acordo com essa explicação, cães se mordendo, pirralhos trocando socos de mentirinha e gamers metralhando nazistas mutantes na tela da TV estão simulando violência em contexto lúdico, pois isso é uma tática de sobrevivência herdada.

Outra explicação deriva dos universos lúdico e computacional e tem a ver com as chamadas mecânicas de jogo. Eliminar oponentes em troca de pontuação ou vantagem é uma mecânica de jogo básica, e de eficiência mais do que testada no universo dos jogos em geral. É o que fazemos ao comer uma peça do oponente numa partida de damas, ou ao acertar um headshot em uma partida de Call of Duty

O poder de processamento e o realismo audiovisual crescentes dos videogames se combinaram com fatores culturais (a representação chocante da violência é um fenômeno presente em todas as artes nas décadas de 1980 e 1990, por razões que eu não saberia — nem caberia — desenvolver aqui), e a sinergia resultante foram os games de luta, de tiro em primeira pessoa e outros gêneros populares em que a “eliminação de peças do adversário” se traduziu em tiros, espadadas e socos contra figuras humanoides cada vez mais fotorrealistas.

Uma terceira explicação é o apelo estético que as representações da violência exercem sobre muitas pessoas, variando o gosto aqui e ali. Esse apelo é tão óbvio quanto misterioso, e não é o caso de desenvolver o assunto agora. Só não se pode discutir o tema da violência dos videogames negando hipocritamente que essa atração existe, e que ela não faz parte apenas da psique de psicopatas e desajustados. A beleza sublime das boas cenas sangrentas é apreciada também por pacifistas e pacatos pais e mães de família. E o videogame, apesar de interativo, é representação, não ação. O pânico moral a ele associado não é diferente do que vem se manifestando no Brasil recente em relação a outras artes, enraizado em puritanismo e ignorância.

Nos artigos reunidos no livro Extra Lives: Why Video Games Matter (2010), Tom Bissell traz bons insights sobre a violência contida nos jogos eletrônicos que mais marcaram sua vida. Seus relatos apresentam a rara virtude de dar vida à experiência íntima de jogar. É essa experiência o que mais falta no debate sobre o tema. O livro de Khaled Jr. teria se beneficiado de descrições mais generosas dos jogos e das emoções que eles lhe causaram, embora ele faça, sim, menções ocasionais ao incômodo moral e visceral que experimentou jogando certos títulos polêmicos.

Já joguei centenas de jogos violentos e jamais senti despertar sentimentos sádicos em mim. Algumas cenas reforçaram minha repulsão pela violência

Bissell menciona o êxtase que sentiu ao travar contato pela primeira vez com o sistema de combate do jogo Fallout 3, no qual podemos congelar a ação e mirar em partes específicas do corpo do inimigo, para então, ao toque de um botão, desencadear a ação programada e ver os disparos arrebentando membros e cabeças. A estética, cartunesca e semelhante à existente nos filmes de Sam Peckinpah, é “revoltante e estranhamente bela”.

Bissell também narra uma brincadeira de colégio chamada Quem Consegue Morrer Melhor?, na qual vence o garoto que encena a melhor simulação de morte violenta por bazuca, raio congelante etcetera, estrebuchando dramaticamente no chão. Ele se pergunta: haveria uma ligação entre aquelas simulações infantis e o fascínio pelos games violentos?

Em seu conhecido artigo sobre Grand Theft Auto IV, Bissell disserta sobre a diferença entre assistir a uma cena violenta no cinema, como a do esfaqueamento no porta-malas do carro em Os bons companheiros, e protagonizar uma cena semelhante, em GTAIV, que consistia em dirigir um automóvel com cadáveres no porta-malas pelas ruas engarrafadas de uma Nova York fictícia. No primeiro caso, temos uma fruição passiva, enquanto no segundo de certa forma participamos da ação, e a dilatação do tempo modifica a experiência. Nessa passagem, Bissell ilumina o que as narrativas proporcionadas pelos videogames têm de mais especial: o seu caráter participativo e procedimental, capaz de gerar emoções e significados complexos.

Já joguei centenas de jogos violentos e jamais senti despertar sentimentos sádicos em mim. Pelo contrário, algumas cenas fortes reforçaram minha repulsão pela violência. Uma delas foi em um dos games da série God of War, quando tive que apertar um botão repetidamente para que Kratos socasse um inimigo até esmagar sua face. Outra foi em GTAV, uma sequência não interativa em que o personagem Trevor pisoteia um sujeito na cabeça até matá-lo. Nada que eu já não tivesse encontrado no cinema: lembro, por exemplo, da sequência de Amor à queima-roupa em que James Gandolfini arrebenta a cara de Patricia Arquette. Nada, em nenhum videogame, jamais me causou mal-estar tão forte e duradouro.

O distanciamento que parece existir entre a violência dos games e o jogador não se deve a algum processo de dessensibilização moral, e sim ao fato de que tal violência, mais do que no cinema, é automaticamente percebida como irreal no contexto da narrativa. O prazer de acertar um disparo bem na cabeça de um inimigo não é o prazer de matar alguém, e sim um resultado da sensação de agência do jogador sobre o mundo virtual. Algo semelhante, arrisco dizer, a assistir a esses vídeos de ASMR (sigla para Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano, procurem na internet) com pessoas sussurrando e manipulando materiais que dão aquela coceirinha agradável no cérebro.

Retórica policial 

É chocante a ausência de familiaridade com a experiência do jogo eletrônico na voz dos empreendedores morais, autoridades policiais e pesquisadores que desfilam por essa história. Policiais alegando que um shooter transforma adolescentes em máquinas de matar e cientistas empregando metodologia questionável para concluir que há acréscimo de 0,5% de “agressividade” (conceito jamais definido com precisão) após sessões de jogos violentos são personagens típicos.

É instrutivo conhecer a fundo o embate entre os pesquisadores Craig Anderson (para quem os games causam violência) e Christopher Ferguson (nega que haja evidências disso), no qual se verifica facilmente que o segundo sabe melhor do que está falando. O melhor capítulo do livro é o quinto, quando Khaled Jr. enfim mergulha nas metodologias dos estudos sobre o tema e desmonta com volúpia a hipótese da causação com base nas pesquisas acadêmicas existentes.

O tipo de exposição mais técnica apresentado nesse capítulo faz falta ao restante do livro. E o envolvimento pessoal do autor com o assunto, em vez de render narrativas mais ricas sobre a experiência de jogar, se traduz numa retórica enfática, na qual abundam expressões como “absolutamente desastroso” e “por incrível que pareça”. Talvez alguns leitores se divirtam com o tom sanguíneo do texto, que às vezes parece mais adequado a um post em rede social. O tom com certeza não interfere na abrangência da pesquisa e na clareza da argumentação. Eu mesmo me diverti, até certo ponto. Mas os exageros retóricos e reiterações podem tornar o texto cansativo.

A ressalva é pouco importante diante do resultado alcançado por Khaled Jr. O livro deveria ser leitura obrigatória não só para quem estuda os games ou os comenta na imprensa, mas sobretudo a quem investiga e julga casos em que há uma suposta ligação entre games e violência. A criminalização cultural a que games e gamers estão sujeitos pode até ter diminuído, conforme as primeiras gerações que desfrutaram de jogos eletrônicos envelhecem e influenciam a sociedade com o respaldo de suas experiências.

No Brasil e no resto do mundo, entretanto, projetos de proibição dos jogos violentos continuam a ser concebidos ou desengavetados, e o pânico moral ressurge aqui e ali na voz de jornalistas e políticos. Videogames, como qualquer outra mídia, podem causar vício (distúrbio reconhecido pela Organização Mundial de Saúde), carregar mensagens de ódio e trazer experiências perturbadoras. A atenção dos pais aos hábitos dos filhos e classificações indicativas seguem sendo necessárias. Mas não há evidência, Khaled Jr. nos mostra, de que jogar games violentos aumente a agressividade ou motive assassinos.

É possível que a lógica de funcionamento dos videogames se revele mais perigosa fora do contexto dos jogos eletrônicos propriamente ditos. A “gamificação” é um termo da moda que se refere a otimizar aspectos da vida como a saúde, a produtividade no trabalho e até mesmo a administração pública através dos mecanismos de incentivo psicológico proporcionados pelos games. O exército americano, nos mostra Khaled Jr., aderiu aos games como estratégia de alistamento e treinamento de soldados, ao mesmo tempo que tecnologias de guerra, tais como drones, vão aos poucos transformando os combates reais em algo que parece inspirado nos games.

A visão da vida como um jogo a ser jogado faz parte da crescente quantificação da experiência humana nesse milênio, o que pode trazer novas formas de dessensibilização. E ainda não sabemos bem o que os avanços da realidade virtual trarão ao cenário. Não há motivo para pânico em torno dos games. Mas convém estarmos atentos e conscientes nas próximas fases.

Quem escreveu esse texto

Daniel Galera

É autor de Barba ensopada de sangue e Meia-noite e vinte, ambos pela Companhia das Letras.