Crítica Literária,

Uma noite além de mil

Fiel ao espírito de Sherazade, estudo analisa as origens e as traduções do clássico ‘As mil e uma noites’

01dez2021 | Edição #52

Numa passagem de Relato de um certo Oriente (Companhia das Letras, 1989), de Milton Hatoum, um personagem — fotógrafo e alemão — atesta: “O convívio com teu pai me instigou a ler As mil e uma noites, na tradução de Henning. A leitura cuidadosa e morosa desse livro tornou nossa amizade mais íntima; por muito tempo acreditei no que ele me contava, mas aos poucos constatei que havia uma certa alusão àquele livro, e que os episódios de sua vida eram transcrições adulteradas de algumas noites, como se a voz da narradora ecoasse na fala do meu amigo. No início de nossa amizade ele se mostrara circunspecto e reservado, mas ao concluir a leitura da milésima noite ele se tornara um exímio falador. Às vezes, a leitura de um livro desvela uma pessoa”.

É essa a impressão que O livro das noites: memória, escritura, melancolia, que chega à sua versão impressa agora pela Educ, editora da puc-sp (ano passado só o e-book estava disponível) — cuja leitura deve igualmente ser cuidadosa e morosa —, deixa no leitor: a de um desvelamento. Mas o que é possível desvelar de um livro milenar, que se cerca de mistérios e neles se enreda?

O estudo divide-se nas três partes indicadas no subtítulo, e estas se desdobram em dezesseis capítulos, compondo uma teia que, segundo a autora, se origina em leituras infantis e arrasta-se pela vida adentro: teia de percepções distintas do mesmo texto, de consciência das suas variações, de compreensão de que um texto, o mesmo, jamais é uno, sempre é outro.

A seção “Memória” nos fala da miragem do livro absoluto que foi perdido, fragmentado ou que se dispersou — tema recorrente desde o Medievo — e de uma metáfora poderosa: a da própria literatura no seu ponto inicial, narrativa que precisa ser recriada para sobreviver, ficcionalização como princípio da vida.

As questões em jogo, se pensarmos em As mil e uma noites, remetem à origem dos relatos e à maneira como circularam. Eles vêm de fonte única, um manuscrito perdido de autor desconhecido, ou plural — tradições orais com suas respectivas mutações e o exercício ininterrupto de ressituar-se e recombinar-se no tempo? Vêm da Índia, da Pérsia ou do multifacetado mundo árabe? Mariza Werneck, professora da puc-sp, investiga os registros mais antigos das histórias, coteja possibilidades, sonda hipóteses que envolvem a diversa nomeação do livro: de Mil contos para Mil noites e, afinal, Mil e uma noites. Uma noite além de mil: estratégia para expurgar o sentido de completude e o medo que os números redondos podem provocar; é número que pleiteia o infinito e coloca em cena o movimento central da obra: sempre é possível contar uma história a mais.

Mil leituras

Quem acrescenta um novo fio à trama de contos encadeados torna-se também narrador e, como tantos narradores que se espalharam pelos séculos, conhece sua limitação: é outra voz na algaravia das noites, personagem obscuro. Porque todos os narradores que algum dia criaram as histórias incorporadas ao repertório do imenso livro — lista que inclui boa parte dos tradutores e alguns estudiosos da obra — falam, nele, apenas pela voz feminina da princesa que atravessa noites em claro e condiciona a própria vida à arte de narrar.

Sherazade surge, no livro de Mariza Werneck, como uma “senhora das lendas”, capaz de colecionar histórias e, ao contá-las, compassar o ritmo e a dicção para ultrapassar a limitação da experiência vivida e alcançar outro infinito, o da memória. Há muito de torpor e magia na memória e na narração de Sherazade, observa Werneck; é assim que ela desenha passado, presente e futuro — as dimensões mais vistosas do tempo domado — e as temporalidades sobrepõem-se, recriam-se. Desse diálogo não resultam verdades, nem se completa o que se tem a dizer; ao contrário: resta sempre algo oculto, aquilo que não foi nem pode ser dito — de novo é possível traçar a analogia com o fazer literário, que tanto diz quanto silencia e se constrói justamente na fronteira porosa do dizível e do indizível.

De certa forma, é também disto que trata a segunda parte, “Escritura”: como o Ocidente conheceu As mil e uma noites e tentou, ocasionalmente em vão, compreendê-lo. De Antoine Galland — que na corte de Luís 14 concebeu a primeira versão francesa e ocidentalizada — ao britânico e puritano Edward Lane, que expurgou todo erotismo que encontrou nas noites e destacou o exotismo oriental. De John Payne, que produziu uma restritíssima e respeitada versão, ao aventureiro Richard Burton, que preferiu carregar nas tintas da obscenidade e fez proliferar as notas de tradução. De Joseph Mardrus, que não hesitou em expor a própria fabulação, a Rafael Cansinos Assens, que cobrou dos antecessores a indicação rigorosa das fontes que baseiam suas versões da obra. De Georges May, que atribuiu ao setecentista Galland a autoria das noites e o equiparou a Perrault ou Grimm, a René Khawam, que acreditou ter sintetizado, na sua edição de 1986, todos os manuscritos e obtido a versão definitiva — supostamente total e autêntica — da obra.

Werneck reúne essas figuras célebres (e muitas outras) no mesmo espaço narrativo e as transforma em personagens da trajetória do livro, do comércio intelectual de edições e de uma longa história de conflagração entre tradutores e entre críticos. Mais do que isso, mostra como cada um deles faz sua versão particular da grande obra árabe: por exemplo, se Galland lê As mil e uma noites como um cortesão de Versalhes, Lane explicita o pudor vitoriano. Tradutores e críticos, afinal, são primordialmente leitores e a leitura, muito mais do que a escrita que dela deriva, radiografa a consciência de cada tempo, o contexto cognitivo. Além disso, enfatiza a autora, ao produzirem versões tão divergentes, acabaram, por gosto ou a contragosto, endossando a incompletude e a infinitude da obra, sua maleabilidade e capacidade de adaptar-se a cenários distintos — sua historicidade, que contradiz a percepção inicial do leitor de As mil e uma noites de que está diante de relatos de um tempo imóvel e (paradoxalmente) imemorial.

Universo labiríntico

Essa é a matéria de “Melancolia” — a terceira, última e mais bela seção do livro. Por ela circulam personagens insones, califas que se impõem sobre pessoas mutiladas, tormentos advindos de lugares encantados, príncipes lançados no turbilhão da tragédia, atos e gestos destituídos de sentido ou objetivo, registros da história árabe. Em “Melancolia”, exploram-se dicotomias: medo e fascínio, Ocidente e Oriente, real e falso, tradição e ruptura, lembrança e esquecimento, erudito e popular, súditos e tiranos, epopeia e cotidiano, deuses e humanos, raiva e humor, ficção e história.

Dicotomias, felizmente, que não se resolvem: é melhor que os sentidos se multipliquem, que sejamos capazes de penetrar no universo labiríntico das tensões e, depois do caminhar errático, chegar afinal à compreensão de que com frequência atingimos o real por meio do falso — já disse Antonio Tabucchi que a mentira desvela os confins da verdade — e que, por vezes, é na crença da ação de destinos sobre-humanos e poderes astrais que fazemos nossa história íntima e comezinha. História também bela e profunda, história sobretudo humana.

Um dos grandes êxitos do livro de Mariza Werneck — antropóloga e contadora de histórias — é exatamente não pretender apresentar soluções definitivas ou constatações categóricas sobre As mil e uma noites. Fiel ao espírito de Sherazade, ela sugere relações, levanta dúvidas, fabula aqui e ali: transcreve, adulterando, as histórias das mil (mais uma) noites para outras épocas e vidas, deixa a voz da narradora ecoar na sua fala. Elabora um estudo erudito, mas preza a leitura ágil e prazerosa e sabe que os leitores são múltiplos e penetram surdamente no reino de quaisquer palavras por portas diversas; entram com a chave de que dispõem e podem preferir a reflexão de cunho acadêmico ou a digressão que salta de um assunto a outro, de uma anedota a uma consideração sobre a vida cotidiana; optam ora pela atenção ao rigor da pesquisa, ora pelo lirismo desmedido de tantas passagens do texto.

O número pleiteia o infinito e coloca em cena o movimento central da obra: sempre é possível contar uma história a mais

Resta percorrer as páginas e escolher uma das camadas de compreensão e desfrute que ele oferece. Melhor: fazer como o fotógrafo alemão de Hatoum e descobrir que o melhor que um livro pode fazer por nós é inverter a lógica e invadir nossa vida, participar de nossas histórias, aproximar gentes e tempos, facilitar nossa compreensão do outro, do diferente, nos desvelar para nós mesmos.

Borges afirmou, num texto que depois preferiu esquecer, que deveríamos trocar a estética passiva dos espelhos pela estética ativa dos prismas. É isto que O livro das noites oferece: uma visão prismática — cheia de luzes e refrações, maravilhas e vazios — de uma obra tão célebre quanto polêmica, tão improvável quanto inevitável e necessária.

Quem escreveu esse texto

Julio Pimentel Pinto

Professor de história da USP, é autor de A pista & a razão: uma história fragmentária da narrativa policial (Peixe-elétrico Ensaios).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.