Ciências Sociais,

Umbanda são todas as bandas

Em novo livro, Luiz Antonio Simas aborda a diversidade da religião que acolhe todas as manifestações do sagrado

24fev2022 | Edição #56

Luiz Antonio Simas acertou em cheio no nome do livro. Sim, a umbanda são umbandas, uma religião pra lá de plural, cada terreiro tem um jeito. E ela conta uma história do Brasil.

Pra quem não conhece ainda o autor, ele é poeta, compositor, mestre em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor de magistério — que é, segundo o próprio, sua grande vocação. Sua obra é jorro, com mais de vinte livros nos últimos quinze anos, canções, palestras, artigos, três anos de coluna no jornal O Dia, postagens em redes sociais, além da cocuradoria da ótima mostra “Crônicas Cariocas”, em cartaz no Museu de Arte do Rio. Seu próximo livro, um ensaio sobre a devoção a santos católicos no Brasil, deve sair este ano. Desconfio, a princípio, de quem escreve demais. No entanto, o tipo de produção de Simas, muito chegada a ensaiões e crônicas sobre o cotidiano e a cultura, explica essa quantidade. E ele escreve sobre o que conhece bem: a macumba, o futebol e o samba, ou simplesmente sobre o Rio de Janeiro, que ele diz ser sua especialidade. 

Em Umbandas, há um diálogo entre a historiografia acadêmica e a sua experiência no sagrado que é da vida toda. Ele se iniciou no candomblé aos dois anos no terreiro de Xambá da avó em Duque de Caxias (RJ) e depois, como muita gente do povo de santo (o povo que cultua os espíritos dos antepassados, os orixás, entre outras divindades), circulou por vários outros terreiros. Essa circulação, afinal, o torna macumbeiro, palavra  muitas vezes pejorativa transformada numa certa identidade religiosa dele e de muita gente no Brasil.

É macumba?

Mas vamos lá! Umbanda é macumba? Tem umbandista que até se ofende, e muitos outros — como eu, que me identifico como umbandista e macumbeira — vão responder: claro! Uma das origem etimológicas da palavra, segundo Nei Lopes, é kumba, “feiticeiro” na língua banto quicongo. Sendo o prefixo “ma”, plural. E Simas ora chama de umbanda, ora chama de macumba as práticas descritas no livro.

O livro segue inicialmente o tempo cronológico e os espaços de colonização do território que se tornaria o Brasil, país que uma vez independente seguiria pejado de colonialidades. Mas como diz José Carlos Gomes dos Anjos, estudioso das religiões, o terreiro é o espaço do fracasso do colonialismo. Ou da história a contrapelo, como professa Simas seguindo o filósofo Walter Benjamin, um de seus mestres.


Simas tocando tambor no terreiro da avó em Duque de Caxias (Arquivo pessoal/Divulgação)

Assim, as santidades indígenas que misturam pajelanças com cristianismo dos primeiros aldeamentos do litoral, os calundus mineiros que contêm a incorporação, as bolsas de mandiga e seus amuletos, catimbós e encantarias nordestinas, jongos do Sudeste, o culto dos orixás iorubanos, catolicismo popular e tantas religiosidades desse território são permeáveis entre si, criando um circuito de religiosidade que no espalhar desses “cruzos” formam as umbandas, no entender de Simas. E cruzo, conceito do autor, é o “acúmulo de força vital a partir da alteridade”. Mas dentro de toda essa abertura e diversidade as umbandas têm algo em comum: “Na interação entre o visível e o invisível, busca-se o equilíbrio entre o humano e a natureza, o vivo e o morto, aquilo que se toca e aquilo que se intui, o sagrado e o profano”. 

A umbanda mostra que os vencidos, sob um ponto de vista subversivo, se tornam os vencedores

Pode-se aprender sobre a umbanda ouvindo Pixinguinha, Martinho da Vila, Bezerra da Silva, Clara Nunes, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Maria Bethânia, Rita Beneditto e sambas-enredo. No livro há uma excelente lista de músicas com temas religiosos desde 1909 até a atualidade para quem quiser aprender ouvindo. Como, por exemplo, com Martinho da Vila em “Casa de bamba”: “macumba lá na minha casa tem galinha preta, azeite de dendê” e que se tem alguém aflito “logo se reza pra São Benedito, pra Nossa Senhora e pra Santo Onofre”. Gilberto Gil, comentando o álbum Um banda um, faz uma definição da religião: “umbanda são todas as bandas”.

No Rio de Janeiro, a umbanda é tributária especialmente das chamadas genericamente macumbas desde o século 19. É uma confluência da multiculturalidade e multirreligiosidade da cidade e do fato de o Rio de Janeiro, como outras capitais brasileiras, ser o destino de brasileiros e estrangeiros de todos os cantos e, sobretudo, ser a cidade onde mais desembarcaram africanos escravizados. Assim, ela acolhe quem vier de boa vontade e incorpora não só as divindades e os ancestrais africanos e indígenas, mas de outras procedências, como da Europa, de origem cigana e até de religiões do Extremo Oriente. Em São Paulo, outro dia, um antropólogo me disse, estupefato, que viu sushi no ebó (oferenda de comida para os santos). Eu não me espantei. Frequentei um terreiro onde prestávamos reverência a uma santa xintoísta depois de conversarmos com os pretos velhos. Isso é um bom exemplo de como as umbandas acolhem. 

Percursos

Não que em sua história não caiba racismo. Sim, há racismo na história das umbandas. Certas vertentes, apesar de admitir suas matrizes africanas e indígenas, tentaram banir práticas ditas primitivas desses povos, ou entendem os Exus e outros guias como entidades menores que precisam evoluir. Porque Exu na umbanda, além de orixá, é também uma linha de espíritos: Seu Tiriri, Seu Tranca-Rua, Seu Arranca-Toco e outros que vêm no terreiro junto com as Pombagiras. 

Aliás, sobre a Pombagira Maria Padilha, uma das mais cultuadas, Marlise Meyer realizou há décadas um estudo exemplar (Maria Padilha e toda a sua quadrilha: de amante de um rei de Castela a pomba-gira de umbanda, Duas Cidades, 1993), mostrando suas viagens no tempo e no espaço até o terreiro. Maria Padilha, conhecida como amante de um rei de Castela no século 13, atravessou o tempo e o espaço tornando-se uma entidade feiticeira, evocada por sacerdotisas ibéricas queimadas na Inquisição até se tornar Pombagira de umbanda. Pombagira que contracena muitas vezes com seu Zé Pelintra, entidade do catimbó alagoano que no Rio virou malandro de Umbanda. O livrinho de Meyer, precioso e raro hoje em dia, dialoga com Umbandas de Simas. Meyer pisou devagar nesse chão, sem querer sistematizar como tentaram outros intelectuais. Ela chama a Umbanda de “culto vivo, em contínua invenção e reelaboração […] Onde há tantos não ditos, e tantos ditos… conforme a cara do freguês”.

Hoje é a intolerância que destrói terreiros, chuta santas e mata mães de santo do coração

Mas dentro dessa abertura toda, Simas chama a religião de afro-ameríndia. Lembra que não é só de matriz africana, mas também indígena, como se pode observar em tantas religiões ou religiosidades afins como Catimbó, Jurema, Torés, que se interpenetram com a Umbanda. As matrizes indígenas são resultado da contribuição de povos variados que precisamos conhecer melhor. Simas menciona, por exemplo, o caboclo Tupinambá, derrotado pelos portugueses no século 16, tempo de fundação da cidade do Rio de Janeiro. Ele desce no terreiro no dia do aniversário da cidade, dia de São Sebastião, relacionado ao orixá Oxóssi, mostrando que os vencidos, sob um ponto de vista subversivo, se tornam os vencedores que, séculos depois, ainda dançam sobre o chão onde viviam.

Dentre os africanos, a umbanda é de raiz banto, ainda que abrace os orixás de origem iorubá. Banto é o nome de uma família linguística que abrange grande parte da África central, aquela que inclui a maioria dos escravizados que vieram para o Brasil, a região Congo/Angola (e também a região do atual Moçambique). Se nos deslocarmos um pouco para o samba, irmão da umbanda, Bezerra da Silva usa a expressão “língua de Congo”, que é a língua pra se proteger da polícia e demais repressores, que tantas vezes esculhambaram as macumbas e os batuques porque, afinal, eram ilegais, eram proibidos. As Umbandas, os Candomblés e outras religiões afins ainda não se livraram desses ataques. Hoje é a intolerância de outras religiões que destrói terreiros, chuta santas e mata mães de santo do coração. Quem morreu do coração foi a baiana Mãe Gilda de Ogum, depois de ter o seu terreiro de candomblé depredado e sua foto publicada na capa do jornal de uma igreja neopentecostal, em 1999, em que se lia a seguinte manchete: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida de seus clientes”. O dia de sua morte, 21 de janeiro, é o dia nacional de combate à intolerância religiosa. 

A cosmovisão Congo/Angola, um dos pilares da religião, é ligada à ancestralidade e à comunicação com os mortos. Assim, na Umbanda são os chamados guias, das suas tantas linhas (pretos velhos, caboclos, exus/pombagiras, malandros, marinheiros, boiadeiros, baianos etc.) que regem muitos terreiros. Os gongás (altares), no mais das vezes, contêm a representação dessas entidades junto a santos católicos e orixás. Simas evoca um ponto (canção) de preta velha pra explicar a força dessa espiritualidade diante da opressão: “Segura o touro Cambinda/ Amarra no mourão/ Que o touro é brabo, Cambinda”.

A Umbanda é sobre resistência, uma vovó que segura o touro bravo da colonização, do racismo, da violência. Em dia de gira (culto), os guias, espíritos, encantados, incorporam nos sacerdotes e filhos de cada terreiro para o “atendimento”. Conversam com aqueles que buscam ajuda, amparo, acolhimento. Essas linhas, ou falanges, como são conhecidas, representam todos os oprimidos da história do Brasil. Todo mundo que sofreu, encantou-se e volta para acolher quem está sofrendo. É esse o fundamento das Umbandas que Simas apresenta neste livro de história, beleza, magia e cultura. 

Quem escreveu esse texto

Silvana Jeha

É autora de História da tatuagem no Brasil, publicado pela Veneta.

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.