Ciência, História,

Duas ou três coisas que eu sei dele

Em suas memórias de Maio de 68, atriz Anne Wiazemsky retrata com ironia o instante decisivo do engajamento político de Godard

23nov2018 | Edição #14 ago.2018

Maio de 68 não mudou o mundo, mas transformou a vida do diretor Jean-Luc Godard. Antes de maio, ele era um artista inovador, iconoclasta e irônico, um ídolo tão pop na França quanto os Beatles na Inglaterra — a ponto de ser chamado para filmar a banda de Lennon & McCartney. 

Beirando os quarenta anos, casara-se com a musa da nova geração do cinema de arte, a atriz Anne Wiazemsky, duas décadas mais jovem. Seus filmes atraíam atores consagrados, críticas generosas e prêmios internacionais. Jean-Luc era, ao lado de François Truffaut, uma das grifes centrais da Nouvelle Vague, a “bossa nova” que revolucionou o cinema francês.

Depois de maio, Jean-Luc jogou tudo isso para o alto e decidiu se tornar um cineasta militante, a bordo do Coletivo Dziga Vertov. Parou de assinar os próprios filmes com a grife “Godard”. Brigou com Truffaut, com Bernardo Bertolucci e Marco Ferreri, jovens diretores italianos que o admiravam, atirando todos na lata de lixo dos “vendidos ao sistema”. Seu nome deixou de piscar nos cartazes de festivais como Cannes e Veneza. Os filmes do Coletivo Dziga Vertov só passavam em mostras de cinema engajado.

A transformação radical de um artista, ou de um artista em radical, é o tema do livro Um ano depois, de Anne Wiazemsky, com quem Godard se casou em 1967. Quando Anne e Jean-Luc se conheceram, o cineasta era o diretor de obras-primas como Acossado, Alphaville e O demônio das onze horas. Anne era uma estudante da Sorbonne que frequentava círculos de esquerda; estreara como atriz no filme A grande testemunha, de Robert Bresson.

Jean-Luc, então com 37 anos, fascinou-se pelo universo da política estudantil no qual Anne se movia, e o retratou num de seus melhores filmes, A chinesa — um olhar ao mesmo tempo afetuoso e irônico sobre o espírito que desembocaria em maio de 68. A personagem central, Veronique, interpretada pela própria Anne, vive numa república de estudantes em Paris, em meio a discussões intermináveis sobre marxismo e maoísmo. Percebe-se a ironia de Jean-Luc em cenas cômicas como a dos estudantes acordando ao som da “Internacional”, o hino comunista; no pop-chiclete “Maô Maô”, tema do filme e da famosa cena em que Veronique, com seu inconfundível tique de morder o lápis, estuda o Livro vermelho do líder chinês; e na sequência, igualmente famosa, em que os estudantes maoístas organizam um atentado contra um embaixador, mas confundem o número do quarto do hotel e matam o cara errado.

Inversão de papéis

Aos poucos, os papéis se invertem. No começo, Jean-Luc era o irônico e Anne, a militante. Em Um ano depois, é Anne a dona da ironia, a narrar a transformação do marido em cineasta engajado. O pano de fundo é justamente Maio de 68, que Jean-Luc havia antecipado em A chinesa. A princípio, tanto Anne como Jean-Luc estavam distantes do movimento. Anne, que havia sido colega de escola de Daniel Cohn-Bendit, um dos líderes da rebelião estudantil, se cansara dos intermináveis discursos panfletários dos jovens com quem convivera na faculdade. 

Jean-Luc era de uma geração anterior à dos que erguiam barricadas e desconfiavam de todo mundo com quase quarenta anos — como ele. Mas queria se juntar à turma. Até quebra os óculos num confronto com policiais (Anne, a irônica, faz questão de lembrar que ele não apanhou; apenas tropeçou e caiu de cara na calçada.) 

Lennon e Godard chegaram a brigar num restaurante, enquanto Anne e Paul McCartney se escondiam embaixo da mesa

O descompasso do casal, nas ruas, na cama e na vida, era total. A atriz buscava a convivência com artistas mais velhos que admirava — além de Godard, Bertolucci e Ferreri, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini e o filósofo francês Gilles Deleuze. Jean-Luc trocara os amigos de sua geração por jovens militantes da idade de Anne. Não raro algum aparecia para dormir no apartamento dos dois — e Anne o expulsava aos gritos do sofá da sala.

A narrativa é vibrante e tem dois momentos especialmente felizes. O primeiro são as descrições de Maio de 68, que se dá nas ruas enquanto Anne e Jean-Luc se refugiam em bares, cafés ou no apartamento deles — Jean-Luc sempre a ponto de se juntar à multidão, Anne sempre tentando escapar. 

Rock 

O outro grande momento do livro são as idas do casal a Londres para o último compromisso de Jean-Luc com o cinema comercial: a filmagem de uma banda de rock. Num primeiro momento, seriam os Beatles, mas os egos de John Lennon e Jean-Luc colidiram — os dois chegaram a brigar num restaurante, enquanto Anne e Paul McCartney se escondiam embaixo da mesa, a tomar chá inglês.

A produtora então chamou os Rolling Stones, personagens do documentário-problema One Plus One. Lançado no final de 1968, o filme é conduzido por imagens da criação coletiva do clássico “Sympathy For The Devil”, num estúdio onde baseados circulavam livremente e Keith Richards interrompia seus solos para transar com a namorada, a modelo Anita Pallemberg. Mas nem tudo é verdade no filme: entre um riff e outro aparecem encenações de protestos, além de sequências algo surrealistas de Anne fugindo de repórteres.

O filme, que junta militância política, cultura pop e cinema experimental, pode ser visto como um réquiem para a década de 1960. Depois dele, o casal Anne e Jean-Luc entra em crise, que culminaria com a separação em 1970. No mesmo ano, com o fim do sonho e dos Beatles, os Rolling Stones se tornam a principal banda de rock do planeta — enquanto Jean-Luc rompe com o cinema comercial e mergulha em sua fase de ostracismo militante.

Maio de 68 mudou Godard, mas não o mundo. Na França, os conservadores dão novo fôlego nas urnas ao velho líder Charles de Gaulle. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, ganham força os movimentos que realmente mudariam tudo: o das mulheres, o dos negros e o dos direitos civis. Nasce uma nova revolução, totalmente diferente da imaginada por Jean-Luc e os estudantes de Maio de 68.  

Quem escreveu esse texto

João Gabriel de Lima

Coordenador do Programa de Jornalismo do Insper, prepara um livro sobre a esquerda brasileira.

Matéria publicada na edição impressa #14 ago.2018 em agosto de 2018.