Crítica Literária,

Transfiguração em Pessoa

Estudo crítico de 1973 fez contrapontos a leituras redutoras e demonstrou organicidade da obra do poeta português

29out2018

O levantamento da bibliografia passiva de Fernando Pessoa, feito em 2001 por José Blanco, registrava 6.214 livros e artigos sobre o poeta. De lá para cá, esse número deve ter duplicado. Ora, se os amantes da obra de Pessoa tiverem de escolher um único livro sobre ele, recomenda-se este de Eduardo Lourenço. É a leitura, feita pelo maior ensaísta português vivo, do poeta maior de seu país. Publicado pela primeira vez em 1973, foi um divisor de águas na crítica pessoana. 

Desde a morte de Pessoa, em 1935, surgiram e acumularam-se comentários à sua obra, de maior ou menor relevância. Os elogios e os desapreços vinham de diferentes campos literários e políticos portugueses nos meados do século 20: a revista Presença (1927-40), que defendia uma “literatura viva” e publicava uma crítica literária baseada na estética e na psicologia, mais do que no social; a revista Vértice (1942-86), politicamente de esquerda e porta-voz do neorrealismo em arte. Os críticos da Presença foram os primeiros a valorizar a obra de Pessoa. Os autores da Vértice, pelo contrário, criticavam Pessoa por suas posições políticas, seu intelectualismo e seu “artificialismo”. 

Retrospecto

Os livros mais importantes da década de 1950 foram escritos por autores da Presença: João Gaspar Simões, Vida e obra de Fernando Pessoa (1950), inspirado num freudismo elementar contestado pelo próprio Pessoa; Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa, o insincero verídico (1954), leitura sensível de um poeta crítico. E por um autor da Vértice: Mário Sacramento, Fernando Pessoa, poeta da hora absurda (1959), censura marxista da ideologia do poeta. Em 1947, fora publicado o primeiro grande ensaio universitário: Unidade e diversidade de Fernando Pessoa, de Jacinto do Prado Coelho.

Esse retrospecto da primeira recepção de Pessoa é necessário, não somente para que se avalie o impacto do livro de Lourenço, mas porque ele foi escrito em diálogo e debate com essas obras anteriores. Sendo de formação filosófica e tendo se afastado de Portugal desde 1960, quando se radicou na França como professor universitário, Lourenço manteve sempre uma posição independente e crítica com relação aos debates portugueses. Isso lhe permitiu encarar Pessoa e seus críticos de um ponto de vista mais amplo, no contexto da literatura moderna europeia.

O objetivo do ensaísta, ao escrever esse livro em 1973, foi o de se opor às leituras redutoras de Pessoa, que o interpretavam a partir de pressupostos teóricos exteriores, e de mostrar, ao contrário, a organicidade dessa obra. Sua leitura é de fundamentação também psicanalítica, de uma psicanálise sutil que não reduz a obra a um trauma preciso na vida do poeta (a perda do pai ou o transplante cultural da África do Sul para Portugal), detectado mas respeitado em seu mistério. Ele demonstra que a obra de Pessoa emana de um fundo obscuro, de um sofrimento psicológico e ontológico: a incapacidade de amar, a experiência da inadequação do pensamento com o sentimento e da incapacidade da linguagem verbal em dizer essa experiência. 

Desde a juventude, Pessoa sentiu uma repulsa ao sexo que o fez desconfiar de ser um “invertido”. Que a pulsão homossexual habitará para sempre sua poesia está fora de dúvida. Entretanto, Lourenço aconselha que se trate com discrição a possível homossexualidade do poeta, não apenas porque não temos acesso a suas experiências vitais, mas sobretudo porque ele mesmo foi um exemplo de discrição, na vida e na obra. Nesta, o ensaísta aponta uma indefinição que se imobiliza numa “sexualidade branca”, num “Eros extático” análogo à impotência, que o leva a abdicar de qualquer atividade sexual. O tema da abdicação, com “as mais transparentes conotações eróticas”, é constante em sua obra.

Heteronímia: outros eus

Esse fundo secreto e trágico de sua personalidade, aliado a uma aguda inteligência especulativa e analítica, gera uma oscilação psíquica que o faz “navegar entre a alegria desmedida do impulso vital que nele se expande e o fantasma que desde dentro o ensombra”. A heteronímia, ou a criação de outros “eus”, ocorreu-lhe como uma saída. 

Alberto Caeiro seria uma volta à natureza, a libertação do intelectualismo e da culpabilidade ocidentais. Ricardo Reis seria uma saída filosófica, inspirada no epicurismo da Antiguidade. Álvaro de Campos seria a liberação de todas as pulsões, na estridência do mundo moderno. Entretanto, para Lourenço, “nem na ordem estética nem na ordem mais importante da existência a ficção heteronímica se revelou uma solução”.

Pessoa revisitado contesta as leituras anteriores de Pessoa. O poeta não foi um mero malabarista da linguagem, um piadista e um simulador. Sua obra expressa um drama pessoal, que é o seu, e um impasse metafísico, que é o do pensamento moderno. É preciso distinguir a “intensa negatividade” de sua obra, com relação a ele mesmo e ao mundo, de uma atitude puramente niilista. 

Ele não alcançou uma unidade em sua diversidade, mas deixou seus membros disjectos como testemunhas magníficas da dispersão do sujeito. E o que mais importa: Pessoa escreveu, a partir da ficção heteronímica, uma obra-prima da poesia moderna. Lourenço examina também as relações de Pessoa com as obras de Camões, Shakespeare, Nietzsche e Walt Whitman. 

O crítico não deixa por menos: “O autor deste ensaio toma a sério e em toda a sua extensão a ideia de que Pessoa é uma natureza genial”. Segundo ele, o poeta genial é aquele que “ilumina e transfigura a realidade, tal como ela se apresenta antes e fora dessa iluminação”. O papel do crítico é de integrar em seu horizonte a “luz nova” que o gênio representa, e seu dever é comunicá-la a outros. 

Apesar da modéstia dessa declaração, é preciso dizer que o ensaio é iluminado e luminoso, na medida em que seu autor é um crítico-escritor, capaz de formulações tão justas e belas como as dos poetas. Veja-se como exemplo este trecho sobre o final da “Ode marítima”: “Assim, num lento e doloroso refluir, apagando um a um os traços de sua aventura sentada, se termina a hora da fictícia e funda exaltação, para a qual Pessoa havia criado, em toda a sua plenitude, Álvaro de Campos. Do espasmo não ficará mais do que a ressaca, o marulhar glauco de águas represas através do qual Álvaro de Campos se sobreviverá a si mesmo como ‘um fósforo frio’. Mas é na escuta desse canto das trevas ainda banhado do vento do largo e de sua luz oceânica que se apercebe em toda a sua fascinação o negro esplendor da poesia de Fernando Pessoa”.

Quem escreveu esse texto

Leyla Perrone-Moisés

É autora de Mutações da literatura no século 21 (Companhia das Letras).