Ciências Sociais,

Impávidos que nem Muhammad Ali

Fora dos círculos especializados, uma bibliografia variada — fotografia, reportagem, ensaio e poesia — sobre cultura indígena ganhou corpo em 2017

01dez2017

Na rica bibliografia recente sobre a cultura indígena no Brasil, há, sem dúvida, um monumento: A queda do céu, testemunho do xamã yanomami Davi Kopenawa ao antropólogo francês Bruce Albert. Logo nas primeiras páginas, o xamã registra que aceitou fixar suas palavras no papel porque, aos Yanomami, “lhes dói o fato de os brancos serem tão ignorantes a seu respeito”. Impossível não lembrar essa advertência a cada grande livro publicado por aqui nos últimos tempos, tentando diminuir o fosso da ignorância que nos separa desse outro Brasil dos povos indígenas.

Nesse sentido, pode-se mesmo perceber que está se afirmando um novo perfil dos livros sobre os índios no Brasil, superando a forma “folclórica” como, em geral, eram apresentadas tanto a história e a cultura indígenas quanto as diversas questões atuais sobre o respeito ao território e outros direitos dos índios. Esse esforço não é, obviamente, de hoje. Vale lembrar que, já nos anos 90, o patamar do conhecimento e do debate sobre a questão indígena se elevou bastante com obras como as da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, desde o já clássico História dos índios no Brasil (1992) até outros trabalhos incontornáveis como Cultura com aspas (2009, relançado pela Ubu em 2017), Índios no Brasil: história, direitos e cidadania (2013) e a recente coletânea de artigos organizada por Pedro de Niemeyer Cesarino, Políticas culturais e povos indígenas (2016).

O que ocorreu, no entanto, de uns anos para cá, é que os desdobramentos dessas pesquisas seminais são cada vez mais evidentes, influenciando grande parte da produção intelectual sobre o tema. Livros como os das coleções Mundo Indígena, da editora Hedra, e Tembetá, da Azougue, que dão voz diretamente à cultura indígena, são ótimos exemplos da renovação que se processa na forma como sabemos dos índios até então: ao falarmos sobre eles falamos muitas vezes por (e contra) eles, interpretando-os a partir de nossos referenciais “civilizados” e, não raro, reduzindo-os a caricaturas. Ao dar voz e registrar o pensamento dos próprios índios, é de se esperar que toda a reflexão sobre os povos indígenas venha a se enriquecer também, com menos espaço para distorções que somente interessam àqueles que se empenham em destruí-los concretamente.

Essas constatações vêm à mente diante da capa de Povos indígenas no Brasil 2011/2016, publicação do Instituto Socioambiental (ISA), que traz uma foto que resume, com perfeição, o que têm enfrentado os mais de 250 povos indígenas que vivem no território brasileiro. Nela, o líder Pirakumã Yawalapiti pede calma aos policiais que o haviam agredido com spray de pimenta e golpes de cassetete, durante a Mobilização Nacional Indígena, em Brasília, em outubro de 2013. O lugar do índio no Brasil tem sido, nos últimos 517 anos, exatamente o de quem tenta conter agressões. O lugar de quem, diante daqueles que desprezam sua vida e todos os seus direitos e significados, tenta sobreviver e conviver sob ataques.

Este é, em particular, o objeto de outro importante lançamento, História da resistência indígena, de Benedito Prezia, que demonstra com didatismo que, desde a chegada dos europeus, a história dos povos originários é a história da resistência ao massacre.

De certo modo, podemos ver como complementares os livros do Instituto Socioambiental e de Benedito Prezia. Enquanto Prezia apresenta as principais lutas e personagens da história indígena desde que os portugueses chegaram ao Brasil, os pesquisadores do ISA mostram o saldo dessas lutas depois de mais de quinhentos anos, dando continuidade ao relevante trabalho de mapear, detalhadamente, variados aspectos da vida indígena no país, numa série que já se encontra em sua 12ª edição (as publicações anteriores podem ser lidas no site pib.socioambiental.org).

Os índios não lutam só por si próprios, mas em defesa de um respeito à natureza que interessa a todos os brasileiros

Partindo dos primeiros contatos entre brancos e índios nas terras que viriam a ser o Brasil, Benedito Prezia segue o rastro de sangue deixado pelos “novos donos” dessas terras em seu projeto, ainda em curso, de instalar aqui a lógica de seus negócios. Ao fazê-lo, o autor consegue nos contar outra história do Brasil, na perspectiva dos vencidos, como é sua intenção, e o que aprendemos com ele é que, se antes algum “inocente” podia acreditar que os “conflitos” entre brancos e índios se deviam apenas a diferenças culturais profundas, é cada vez mais difícil esconder o verdadeiro objetivo da fúria da “civilização” contra aqueles que tratam como “selvagens”: a expropriação da terra dos povos originários para explorar suas riquezas, como se pode ver ainda hoje nas disputas relativas à demarcação das terras indígenas.

Daí que se possa perceber, no estágio atual desse percurso, com o auxílio incrível das pesquisas, depoimentos e reflexões enfeixados no volumoso trabalho do ISA, como a resistência indígena veio se revestindo, a cada ano, de uma importância que transcende a defesa dos povos originários, para se tornar uma causa ainda mais ampla, que envolve questões ambientais, culturais, sociais, econômicas e políticas de bem mais do que os cerca de 900 mil índios contados pelo IBGE. As lutas indígenas, a seu modo, tornaram-se lutas que os índios fazem não apenas por si próprios, mas em defesa de um respeito à natureza que interessa a todos, em especial os que são atingidos pela forma predatória como o agronegócio se alastra.

Talvez por esse reconhecimento de que, na luta indígena, há o entrelaçamento de tantas lutas importantes para o país, a começar pelo debate da sustentabilidade, a publicação de obras sobre a questão, a exemplo dos livros aqui destacados e dos demais citados, tem sido alimentada pela contribuição de estudiosos que chegam por várias frentes — antropologia, sociologia, história, direito, entre outras — e dialogam com os mais variados públicos, como se vê pelos títulos didáticos e artísticos, muitos deles voltados ao público infantil, lançados nos últimos anos.

Merece destaque, ainda, o livro Os fuzis e as flechas, investigação jornalística de Rubens Valente sobre a violência sofrida pelos índios durante o período da ditadura civil-militar de 1964-85. O livro parte da constatação de que os índios, por mais que tenham sido vítimas de ações muito específicas durante o regime militar, nunca foram objeto de relatórios oficiais sobre a violência estatal, tampouco de estudos acadêmicos detidos sobre esse período. Citados apenas de passagem, ou nem sequer citados, os índios desaparecem da história da ditadura, dando a impressão, segundo o autor, até mesmo de que nem foram atacados no período.

Rubens Valente mergulha nos arquivos e revela que o governo militar via nos índios um claro obstáculo ao “progresso” e, portanto, não hesitava em atacá-los até que “deixassem de ser índios”. É inevitável, durante a leitura, lembrar os discursos atuais sobre a questão indígena, vindos de personagens da nossa política que são muito parecidos com aqueles que se empenharam na caça aos índios do regime de 64, diante de relatos oficiais que, já àquela época, desqualificavam os territórios indígenas como “museus da selva” e acusavam as populações indígenas de ser entraves ao desenvolvimento das regiões com “imenso potencial extrativo mineral e vegetal, agropecuário, industrial, pesqueiro, turístico, energético”.

A rigor, a imagem do índio durante a ditadura coincide em grande parte com aquele que se arrasta desde a colonização e que, hoje, com outras tintas (nem tão outras assim), ainda serve para converter a ignorância sobre as populações indígenas em indiferença e até concordância com relação aos ataques que sofrem em toda a nossa história. Não é por acaso que, ainda em 2017, tenhamos um governo que, sem grande constrangimento, negocia à luz do sol medidas que sobrepõem a “segurança jurídica” dos senhores do agronegócio aos direitos fundamentais dos povos indígenas.

Artes

No campo das artes, destaca-se o catálogo mostra Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo, que esteve exposta no Sesc Ipiranga, em São Paulo, em 2015-2016, com curadoria de Eduardo Sterzi e Verônica Stigger. 

Reunindo fotografias que o destacado antropólogo tirou entre as décadas de 1970 e 90, desde seu convívio com a vanguarda das artes no Rio do início dos anos 70 — uma turma que inclui Ivan Cardoso, Hélio Oiticica e Julio Bressane — até as pesquisas etnográficas em diferentes regiões da Amazônia que faria de meados daquela década em diante, o catálogo faz um contundente retrato da vida desses povos, mas também é cruzado por uma não menos contundente denúncia do projeto de “desindianizar de modo amplo, geral e irrestrito o Brasil”, escreve o autor.

Os curadores da exposição descobriram, no conjunto das fotografias acumuladas por Viveiros de Castro durante sua carreira, uma força estética e política para além do registro o trabalho de campo. Mais do que mero acompanhante do “Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo”, um “Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo” transcende o olhar do cientista, criando reveladoras conexões poéticas com os fotografados, inacessíveis ao rigor analítico do pesquisador.

Os índios são os primeiros de uma longa série de vítimas desse projeto de pátria que atropela as diferenças indesejáveis no caminho do ‘progresso’

Trata-se, portanto, de uma complementaridade, mas não como aquela que se dá entre imagem e legenda (ou descrição textual e imagem). Observar as fotos de Viveiros de Castro tendo em mente seus textos — sua teoria do perspectivismo ameríndio, que o consagrou internacionalmente, cruza toda a exposição/catálogo, inclusive por meio de citações diretas de suas obras — enriquece mutuamente a apreensão da potência de sua antropologia e de sua fotografia, mas não porque Viveiros de Castro tenha feito antropologia ao fotografar. As fotos têm, mais do que tudo, beleza, e ensinam que a beleza também é essencial para entendermos o mundo em sua complexidade.

Numa conferência que fez em maio deste ano no Teatro Maria Matos, em Lisboa, Eduardo Viveiros de Castro começou lembrando uma frase dura de Oswald de Andrade: “O homem branco já falou demais”. Na verdade, trata-se da frase inicial da “Mensagem ao antropófago desconhecido” (1946), com uma pequena alteração (o original é “O homem europeu falou demais”), mas que conserva a força do corte empreendido pelo poeta modernista em relação aos modelos de compreensão do mundo que aceitamos da tradição intelectual europeia. Em Viveiros de Castro como em Oswald de Andrade, o que está em jogo é justamente afrontar e desmontar esses modelos e, principalmente, o que decorre deles: um discurso que reduz toda a riqueza das múltiplas culturas indígenas à caricatura, feita de acordo com a “civilização” (e no interesse dela).

A conferência de Viveiros de Castro, “Os involuntários da pátria: elogio do subdesenvolvimento”, é um libelo contra a “desindianização” dos povos originários, ou seja, o processo pelo qual as classes políticas e econômicas dominantes se empenham para retirar os índios dos seus próprios modos de vida para transformá-los em cidadãos precários e, claro, em trabalhadores pobres e potenciais desempregados.

Viveiros de Castro nos ensina que na cabeça dos índios cai a imposição da “pátria brasileira”. Por isso, são os primeiros “involuntários da pátria”, mas estão longe de ser os únicos. São os primeiros de uma longa fila de vítimas desse projeto de pátria que, sob formas e máscaras diversas, atropela as diferenças indesejáveis no caminho do “progresso”. É por essa razão que a luta indígena se soma e precisa se somar a todas as demais lutas populares no Brasil.

A nova biblioteca indígena que vem se constituindo merece toda a atenção de quem se preocupa em entender o nosso país e a forma de vida que aceitamos e tentamos impor a todos. Se não podemos desfazer os massacres do passado, é bem verdade que, sem os conhecermos a fundo, a chance de desatar os nós do presente e avançar rumo a um futuro mais justo será sempre muito tímida. Ou nula.  

Quem escreveu esse texto

Tarso de Melo

Advogado e poeta, publicou Íntimo Desabrigo (Alpharrabio/Dobradura).