Ciências Sociais,

A vez de ouvir

Traduções de feministas negras apresentam vozes diversas e necessárias para compreender as lutas contemporâneas

01nov2019

Radical é um dos termos que bell hooks usa para se definir como escritora. Professora, poeta, crítica e admiradora de Paulo Freire, hooks se apresenta como opositora de todas as formas de perpetuação do racismo e do machismo. Para a autora, adotar uma postura radical é agir contra o que define como a supremacia branca: a ideia de que o conhecimento e a produção artística dos brancos seriam universais, ou um parâmetro a ser perseguido por quem não faz parte da branquitude. 

Anseios: raça, gênero e políticas culturais, lançamento da Elefante, é a primeira antologia de ensaios de hooks dedicados à crítica cultural, e serve de apresentação ao pensamento da escritora. Os 23 textos são permeados por memórias, relatos da militância, experiências na sala de aula e análises de obras de arte com uma abordagem interdisciplinar que mistura antropologia, pensamento decolonial e teoria feminista para examinar como as representações de pessoas negras em filmes e livros reforçam estereótipos. 


bell hooks, em foto de 1996 [Magnum Photos/Fotoarena]

Para hooks, o comentário cultural é uma forma de chamar a atenção para como ideias racistas e machistas se mantêm presentes no imaginário. Recorrendo a diferentes referências teóricas, como Stuart Hall e Donna Haraway, a autora usa o feminismo como um referencial para analisar produtos culturais e provocar artistas e críticos a irem além de imagens recorrentes e análises simplistas.

hooks é especialmente crítica com seus pares, apontando a responsabilidade de artistas e intelectuais negros em combater imagens desumanizantes. Suas críticas ao cineasta Spike Lee demonstram a preocupação de que seus filmes criem experiências confortáveis para o público branco, sem despertar a consciência dos negros que ele exibe na tela. Ao refletir sobre a possibilidade de uma arte que represente a experiência negra pós-moderna, hooks rejeita o essencialismo, ideia de que existiria uma experiência autêntica, e destaca representações complexas que vão da autobiografia de Malcom X à literatura de Toni Morrison e Alice Walker. 

Teoria e experiência

Os ensaios de Anseios dialogam com o slogan feminista popular nos anos 1970: o pessoal é político. A linguagem de hooks busca uma simplicidade em que lembranças de infância se misturam com citações de livros de história e psicanálise. Colchas de retalhos servem de ponto de partida para uma reflexão de como mulheres negras faziam arte apesar das restrições, usando sobras de tecido ou encomendas de patrões, para expressar sua criatividade e visões estéticas. Evitando uma visão simpliória da arte popular, hooks analisa a “necessidade de aprender a ver” e as lições de sua avó para falar do desejo pela beleza como estratégias de resistência. 


A poeta Audre Lorde, em 1983 [Jack Mitchell/Getty Images]

Publicado pela primeira vez em 1990, Anseios é o terceiro livro de hooks lançado no Brasil em 2019 pela editora Elefante, também responsável por Olhares negros: raça e representação, de 1992, e Erguer a voz: pensando como feminista, pensando como negra, de 1989. Sua obra passou a receber mais atenção com o lançamento de O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras, no qual discorre sobre a necessidade de um feminismo antirracista, anticapitalista, solidário com a causa lgbtqi+ e que debata a reprodução de violências patriarcais e machistas nas relações familiares. 

Os livros publicados até o momento permitem que os leitores se aprofundem em questões específicas do pensamento de bell hooks. Olhares negros é dedicado a reflexões sobre a representação de pessoas negras na cultura pop e a experiência da espectadora negra no cinema. Além de analisar filmes, ela comenta a recepção de obras, mostrando como a crítica reproduz ideias coloniais e reforça a objetificação de corpos ao analisar o trabalho de cineastas e autores não brancos como produções identitárias ou exóticas. 

Para bell hooks, adotar uma postura radical é agir contra o que define como a supremacia branca

Em Erguer a voz, a experiência como feminista na academia e as leituras teóricas são articuladas mostrando como o conhecimento produzido por várias mulheres precisa ser transposto em práticas. Escrever ficção, poesia, falar em público, participar de rodas de conversa são modos de descentralizar os saberes, mas também formas de reconstituir a própria subjetividade. Mulheres negras, geralmente vistas como o Outro em sociedades racistas, são tratadas como objetos são estudadas, analisadas por quem detém autoridade e não como sujeitos com agência produzindo suas narrativas, e a escrita serve como ferramenta de autoconhecimento, definição e disparador do processo de tornar-se sujeito.

Desde a publicação de Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, em 2016, o mercado editorial brasileiro parece ter identificado um público interessado na teoria feminista negra e apostado em traduções de autoras consideradas referências, mas até então restritas a quem lê no idioma original. 

Davis, hooks e Audre Lorde estão entre as referências de feministas brasileiras como Djamila Ribeiro (Quem tem medo do feminismo negro?) e Giovanna Xavier (Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando sua própria história), que publicaram títulos voltados para o público geral, apresentando as pautas do feminismo negro e combatendo a percepção de que a defesa dos direitos das mulheres pode ser dissociada de uma luta antirracista.

Em um país onde 55,8% da população se autodeclara preta e parda, o debate sobre negritude, racismo estrutural e a interseção entre opressões de raça e classe é fundamental para entender a realidade brasileira. Embora autoras como hooks e Patricia Hill Collins deixem claro o quanto suas análises estão centradas nos Estados Unidos, seus conceitos são úteis e podem ser aplicados, de forma crítica, à nossa realidade. 

Tornar-se sujeito

Em Pensamento feminista negro, publicado pela Boitempo, Hill Collins faz uma análise extensa de questões que permeiam a produção de intelectuais negras, ressaltando que o feminismo negro é um movimento pela justiça social. Com a escravidão, pessoas negras foram reduzidas a força de trabalho e capacidade de reprodução de corpos, contudo, o pensamento das mulheres negras se opõe a essa desumanização, analisando as desigualdades estruturais e contestando estereótipos atualizados no imaginário para responsabilizar as pessoas negras por suas opressões as imagens de controle. 

Hill Collins analisa figuras facilmente identificáveis com personagens do cinema e de séries de TV. A mammy, a mãe negra que realiza trabalhos domésticos e cuida das crianças brancas como se fossem suas e é assexuada e quase da família; a jezebel ou a hoochie, a mulher sensual interesseira, dona de um apetite sexual incontrolável; a dama negra, a profissional competente que se apresenta de modo impecável de acordo com os padrões brancos; e a matriarca, a mãe solo que sustenta a família e por isso é associada a atributos masculinos. Essas figuras são usadas para restringir as formas como mulheres negras são vistas, e assim culpá-las por suas realidades e ignorar todo um histórico de uso de seus corpos. 

As imagens de controle examinadas por Hill Collins mostram como a sociedade racista define e reforça um imaginário que limita as mulheres negras à servidão, à força de trabalho ou ao exercício da sexualidade. Além disso, essas representações afetam a subjetividade, pois quando a mulher não se identifica com uma imagem de controle, isso não garante que uma mulher negra não será tratada como mammy ou jezebel, ou ainda que não será rejeitada de alguma forma por se recusar a desempenhar um desses papéis.   

A leitura dessas autoras também revela como as obras das feministas negras são elaboradas a partir de leituras, críticas e atualizações de conceitos umas das outras. A norte-americana Audre Lorde, que será publicada pela editora Autêntica, é uma referência para hooks e Hill Collins. Feminista, lésbica, mãe e poeta, Lorde fala da autodefinição como forma de autoconhecimento e de afirmar sua identidade fora dos estereótipos: “Aprendi que se eu não definisse quem sou com minhas próprias palavras, seria devorada pelas fantasias das outras pessoas e comida viva”. Para hooks, o processo de deixar de ser objeto e tornar-se sujeito envolve a capacidade de se autodefinir. Hill Collins analisa a autodefinição como parte do processo criativo de artistas negras, cuja produção pode oferecer representações complexas, criando a possibilidade de seu público elaborar sua subjetividade fora das imagens de controle.   

Angela Davis também é uma referência para hooks, que em Olhares negros analisa sua Autobiografia, lançada pela Boitempo, como um relato capaz de articular aspectos biográficos e questões estruturais, explicando como uma mulher pode tomar parte na luta contra opressões. 

Lorde fala da autodefinição como forma de autoconhecimento e de afirmar sua identidade

A infância de Davis no Alabama durante a segregação, a efervescência do movimento pelos direitos civis em sua adolescência, sua inquietação intelectual e sua atuação política demonstram como a escritora elaborou sua produção teórica e seu engajamento político a partir de sua trajetória e dos valores transmitidos por seus pais. Davis afirma que relutou em escrever sobre sua vida, embora reconheça a importância de toda uma tradição de relatos autobiográficos de mulheres negras, justamente por temer que, ao falar de si, corresse o risco de ser colocada como uma figura extraordinária, uma exceção entre as militantes feministas.

No entanto, o detalhamento com que Davis descreve o sistema prisional, a burocracia do Judiciário e as violações de direitos, sem destacar seu sofrimento individual, observando as dinâmicas de poder e de controle na prisão, mostra como a experiência do encarceramento tornou o abolicionismo penal um aspecto ainda mais importante em sua luta antirracista.

A chegada desses livros clássicos do pensamento feminista negro e interseccional contribui para a popularização de obras até então restritas a um público acadêmico e estimula a publicação e o resgate de autoras nacionais. A editora Bazar do Tempo lançou recentemente a antologia Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto, organizada por Heloísa Buarque de Holanda, que traz ensaios de Maria Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, e Tornar-se negro, de Neusa Santos Souza, está disponível novamente em formato digital. Não se trata mais de uma questão de se mulheres negras podem falar e a respeito do quê, mas de quem se dispõe a conhecer essa variedade de vozes e de ideias.

Quem escreveu esse texto

Stephanie Borges

Jornalista, ganhou o prêmio Cepe de poesia com Talvez precisemos de um nome pra isso (no prelo).