Biografia,

Iconoclasta de si mesma

Biografia acerta em criticar os motivos pelos quais a vida pessoal de Beauvoir tem mais visibilidade que suas contribuições filosóficas

01abr2020

Sempre me soou repugnante o modo como muitas mulheres que desafiaram seu tempo são retratadas. Muitas são apagadas pela história, outras colocadas como apêndices de homens ou, ainda, vistas como loucas, histéricas, degradantes. Em áreas majoritariamente masculinas e brancas, esses tipos de denominações são mais pungentes. Quando cursava graduação em filosofia e demonstrei interesse em estudar filósofas foi preciso lutar para que o tema fosse considerado legítimo e para criar grupos de estudos dentro da universidade. Em vez de focarem as obras das autoras, algumas discussões se resumiam a revistas de fofocas. 

Lembro-me de que, quando disse a um professor que desejava estudar o pensamento de Simone de Beauvoir, a resposta foi: “Beauvoir, a mulher do Sartre?”. Na hora me lembrei da categoria do Outro pensada por ela. Tomando como ponto de partida a dialética do senhor e do escravo de Hegel, Beauvoir cunhou o conceito de Outro, um lugar de não alteridade imposto às mulheres. Beauvoir pensa a categoria de gênero a partir de uma perspectiva existencialista. O eixo central de sua reflexão parte de uma pergunta aparentemente simples: o que é uma mulher? Sendo fiel à sua perspectiva, ela respondeu que uma mulher não nasce, ela se faz, torna-se. É um feminismo existencialista: a tomada de consciência da situação da mulher e suas possibilidades para a realização de um projeto de autoafirmação para além do gênero que a define. 

Ser inessencial é uma imposição às mulheres, mesmo para aquelas que escrevem obras monumentais sobre a condição feminina. Esse é um dos pontos desenvolvidos pela biografia Simone de Beauvoir: uma vida, de Kate Kirkpatrick, que segue sua vasta produção intelectual e expõe suas contradições e o vilipêndio que sofreu por escrever O segundo sexo. A biógrafa acerta em criticar os motivos pelos quais a vida pessoal e amorosa da filósofa francesa insistem em sobressair às suas contribuições ao pensamento filosófico, algo que raramente ocorre com homens. Pois a mulher, segundo a própria Beauvoir, não é pensada a partir de si mesma, mas em oposição ao homem, e, por isso, as fofocas sobre sua vida acabam sendo vistas como fundamentais. Os argumentos ad feminam [contra a mulher] são mostras disso — inclusive, genial a autora definir assim, em vez de ad hominem [contra o homem]. Pois para a mulher, “ser quem ela quiser é proibido”. E foi isso que aconteceu a Beauvoir quando decidiu tornar-se Beauvoir. Por outro lado, é bonito ver uma Beauvoir humanizada, com sua história familiar, seu percurso no amor e sua genialidade.

Atuação política

A aproximação de Beauvoir com o ativista negro do movimento de direitos civis Richard Wright influenciou seu pensamento para a questão racial, algo ainda pouco explorado na recepção de sua obra no Brasil. Beauvoir realizou diversas conferências pelos Estados Unidos e nem na mídia de lá escapou de ser o Outro, conforme matéria do The New York Times, que a tratou como “a existencialista mais bonita que já existiu”. Quando estive na 19ª Beauvoir Society Conference, em 2011, no Oregon, pesquisadoras apresentaram trabalhos salientando a questão racial em O segundo sexo

Na minha trajetória, contudo, foi estudando Grada Kilomba, pensadora portuguesa da diáspora, que li a categoria do Outro sob a ótica da mulher negra como o “Outro do Outro”, a dupla antítese de branquitude e masculinidade. bell hooks, admiradora do pensamento de Beauvoir, também lhe teceu críticas ao dizer que a pensadora focou muito a questão dos homens negros e não pensou a mulher negra. Para além da admiração, para hooks, Beauvoir se negou a se desvencilhar de Sartre.

Sobre seu posicionamento em relação à independência da Argélia e contra a colonização francesa no país, foi considerada uma “traidora da raça” ao questionar a indiferença dos franceses ao horror e sofrimento impostos ao povo argelino. Ela e Sartre fizeram dura oposição à guerra na Argélia. Beauvoir, por exemplo, foi procurada pela advogada tunisiana Gisèle Halimi, que atuava nos tribunais em favor dos combatentes da Frente de Libertação Nacional (FLN). Gisèle lhe contou a história de Djamila Boupacha, minha xará. Djamila havia se aproveitado da visão patriarcal dos soldados franceses de que as mulheres do norte da África não ofereceriam qualquer risco e plantou bombas por Argel contra os colonizadores. Ela foi capturada, presa, torturada, estuprada, viu mulheres sendo estupradas na sua frente e, no julgamento, contestou a legitimidade do tribunal. Beauvoir escreveu uma série de artigos no Le Monde e criou um comitê para defendê-la. 

Sua atuação ajudou a internacionalizar Djamila, símbolo da resistência argelina. “Seu objetivo era divulgar o caso, e com isso, revelar o comportamento vergonhoso dos franceses durante a guerra. No Le Monde, Beauvoir escreveu que a coisa mais escandalosa nesse escândalo era que as pessoas haviam se acostumado a isso”, descreve Kirkpatrick. Djamila Boupacha foi sentenciada à morte, mas recebeu anistia no acordo de independência da Argélia e até hoje é ativista no país. 

Quem já teve a oportunidade de ler Cartas a Nelson Algren, livro que reúne as correspondências enviadas por Beauvoir ao escritor estadunidense, já conhece a Beauvoir que amou visceralmente. O romance que percorre décadas termina em rompimento por parte do escritor que, a meu ver, se ressentiu do avassalador sucesso dela contraposto à sua decadência, ao lado da sua incapacidade de entender a complexidade dessa grande mulher. As cartas, desconhecidas do público até 1997, que são sarcásticas, sinceras e românticas, desafiam quem está fixado na dualidade Beauvoir e Sartre. Outros amantes atravessaram sua vida: Algren, Claude Lanzmann, Sylvie Le Bon. 

Sua individualidade em relação a Sartre transbordou não apenas pelas distâncias amorosas, mas também políticas. A partir de maio de 1968, quando Sartre se aproximou do maoismo, Beauvoir não partilhou de seu entusiasmo. “Enquanto o maoismo de Sartre o marginalizou da corrente intelectual, o feminismo de Beauvoir deu-lhe um papel de liderança no movimento internacional das mulheres. Somente em 1969, a edição em brochura de O segundo sexo havia vendido 750 mil cópias”, descreve Kirpatrick. Ou seja, se em 1949, quando publicou a obra, Beauvoir não se identificava como feminista — mas como alguém que se propôs a refletir sobre a condição da mulher —, com o passar do tempo reconheceu-se politicamente com forte atuação na luta contra o sistema patriarcal. Beauvoir, inclusive, organizou um manifesto de 343 mulheres que afirmavam ter feito aborto, uma palavra jamais dita na rádio ou tv francesas.

Se em 1949 ela não se identificava como feminista, com o passar do tempo reconheceu-se com forte atuação na luta contra o sistema patriarcal

A biografia dá outro significado à escrita de si. Para Beauvoir, não havia dicotomia entre sua vida e sua filosofia. Nesse sentido, o trabalho de Kirkpatrick é feliz em ressignificar a posição dos ad feminam sobre a filósofa, a quem chamavam de “mulher devassa e sem coração que rejeitava a maternidade”. A biógrafa conta os detalhes íntimos de Beauvoir sem a malícia dos seus detratores, mas com a própria dialética que a autora colocou em seu trabalho. Ao mesmo tempo, quebra com a visão de “rainha do feminismo” e foge da desumanização que a própria Beauvoir criticou. Ao ler o livro, tem-se a impressão de que Beauvoir não desejava ser ícone; ela própria demonstrou ser iconoclasta de si mesma ao romper com aquilo que se esperava dela. Não é incomum ouvir pessoas se dizendo decepcionadas com sua relação com Sartre, julgando-a “desconstruída”, sem reconhecer como sua vida e obra foram fundamentais para o pensamento filosófico. Há uma uma bruta flor do querer nela.  Não se nasce Beauvoir, torna-se.

Quem escreveu esse texto

Djamila Ribeiro

Filósofa, escreveu Quem tem medo do feminismo negro? (Companhia das Letras).