Arquitetura,

Psicanálise das fachadas

Fotografias das casas nordestinas e dos apartamentos gaúchos revelam as transformações subterrâneas da consciência coletiva

28fev2019

Não há conexão direta entre arquitetura e política: diferentemente da literatura, da pintura e do teatro, a linguagem dos edifícios é abstrata demais para comportar referências claras à história. Isso não significa que exista uma disjunção absoluta entre morador e morada: uma colmeia não se parece com uma abelha, e um formigueiro não se assemelha a uma formiga, mas eles espelham as abelhas e as formigas. Não refletem seu aspecto físico, e sim o seu modo de ser. O mesmo se passa com nossas casas. A forma expressa o conteúdo, porém nela todos os sinais estão invertidos.

Duas obras recentes iluminam os polos da arquitetura popular no Brasil. Desvios, de Gustavo Piqueira, registra casas térreas do sertão do Nordeste, e Conhecidos de vista, de Letícia Lampert, mostra apartamentos do centro de Porto Alegre. Convém lembrar que, na última eleição presidencial, o PT venceu nas casinhas, enquanto o PSL triunfou nos cubículos. Coincidência?

Ressalte-se que nenhum dos livros discute o sentido político das fachadas. Piqueira foi ao Nordeste à procura das belíssimas moradias retratadas por Anna Mariani em Pinturas e platibandas (1987). Qual não foi sua surpresa ao ver que o rigoroso minimalismo de outrora deu lugar a um kitsch esfuziante. Como avaliar essas inovações? “Devo me esforçar para achar bonita uma casa murada no interior do Piauí, totalmente revestida pela réplica em porcelanato do calçadão de Copacabana? Ao menos fingir que me agrada, só para não parecer esnobe e elitista?” E “o que eram esses azulejos de banheiro misturados uns aos outros, revestindo pesados muros de três, quatro metros de altura? O que eram? Bem, a mesma coisa das antigas casinhas pintadas a cal (…): fachadas de casas populares do sertão nordestino projetadas pelo próprio morador”.

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Dessa perspectiva teórica, não há motivo para criticar os muros espalhafatosos, já que eles provêm do mesmo grupo social do qual antes brotavam moradas prismáticas de cores puras. “Os criadores dessa forma de arquitetura são, geralmente, aqueles trabalhadores mais explorados, aos quais foi negada quase toda possibilidade de expressão cultural”, explicam Lauro Cavalcanti e Dinah Guimaraens. Daí ser fácil encontrar nessas casas um anseio de “ostentação”, visível na incorporação de traços de “camadas culturais mais elevadas”.

A feiura desses paredões se origina de sua falsidade: o morador dissimula o que ele é e simula o que não é

Mas, ainda que elas tenham a mesma origem, as casas não são iguais. Pascal já tinha apontado que todos os jogadores usam a mesma bola, “mas um a coloca melhor que o outro”. As fachadas pintadas a cal mostram corajosamente a condição social de seus moradores — trabalhadores de posses modestas, que priorizam o asseio e a funcionalidade. Em contraste, os paredões modernos revelam “um único modelo aspiracional: as ultraprotegidas casas e condomínios das classes mais altas”. Seus muros, diz Piqueira, “não são indícios de autodefesa, mas de status”. Trata-se, porém, de um status mentiroso, pois os casebres ocultos atrás dos muros são quase tão singelos quanto os de antigamente.

Muro-ostentação

É esse complexo de inferioridade que enfeia tais construções. Os revestimentos enganosos já receberam críticas demolidoras de Platão, Sêneca, Rousseau e Kant. Nicolai Hartmann resumiu bem o desconforto que suscitam: “Nos parece falso um prédio de apartamentos com muitos cubículos, pátios estreitos e escadas apertadas, mas com uma fachada de palácio e uma entrada suntuosa”. Isso “porque de fato há aqui um truque, algo que a construção não é nem deve ser”.

A feiura se origina de uma dupla falsidade: o morador dissimula o que ela é (uma casinha) e simula o que ela não é (uma mansão). O descolamento flagrante entre ser e parecer tem porém um sentido: a casa sonhada é o negativo da casa real. “Depara-se com um colosso imenso que tem pés de barro; e porque os pés são de barro é que o colosso é imenso”, dizia Montesquieu. Há uma razão para isso: Lacan observa que o homem antecipa idealmente o que deseja alcançar, e para tanto constrói uma forma que só mais tarde encontrará seu conteúdo adequado. A introjeção dos “bens simbólicos” da elite é vista como o prenúncio da vinda de seus “bens materiais”, o que explica o imenso otimismo que impregna a arquitetura kitsch. Em toda essa feiura lateja uma pulsão de vida. 

Esse pós-modernismo rude ganhou impulso durante a era Lula, quando as políticas de combate à miséria permitiram que os mais pobres ampliassem e diversificassem suas opções de consumo. A ascensão social tinha contudo seus limites. O Bolsa Família rompeu o clientelismo que prendia o subproletariado aos partidos conservadores, mas o deslizamento desse eleitorado para a esquerda se lastreava apenas em parcas vantagens econômicas, e não em um aumento de sua capacidade de organização. Como disse André Singer, o lulismo assentava num “reformismo fraco” que evitava a todo custo o enfrentamento com a burguesia. Por isso ele não mobilizava politicamente as populações empobrecidas, antes o contrário: os sindicatos e movimentos sociais foram amortecidos, como ficou claro no impeachment de Dilma, em 2016. Segundo Frei Betto, as políticas compensatórias criaram consumidores, e não cidadãos.

O “reformismo fraco” do lulismo suscitou porém uma intensa rejeição na classe média. Como ensina Étienne de La Boétie, o poder nasce da diferença: os homens aceitam a desigualdade, desde que ela opere para cima e para baixo. A classe média se conforma em ocupar uma posição subalterna em relação à elite porque sabe que a maioria está numa situação bem pior. Sua autoestima se baseia nesse complexo de superioridade. Foi esse sentimento que a redistribuição da renda colocou em xeque, quando parcelas da classe trabalhadora começaram a frequentar shoppings, aeroportos e universidades. A amargura advinda dessa “perda de privilégios” não foi compensada por uma redução proporcional da distância que a separava da elite empresarial, visto que os governos Lula/Dilma não tomaram qualquer medida para taxar os mais ricos. Daí o seu ódio ao petismo.

Arquitetura do ressentimento

A arquitetura escancara os afetos coletivos: enquanto o subproletariado ostenta seu otimismo pelas melhorias em suas condições de vida, a classe média sente medo da decadência, tem pavor de se igualar à massa que ela despreza. É esse pessimismo que transparece na obra de Letícia Lampert. Ela visitou mais de cinquenta apartamentos no centro de Porto Alegre, todos eles em ruas muito estreitas. Uma primeira série de fotos mostra o exterior dos prédios, com variados graus de deterioração (buracos, rachaduras, infiltrações, descascamento). Numa segunda série ela revela o interior dos aposentos: eletrodomésticos antigos, móveis gastos e mofados, paredes rabiscadas.

A falta de privacidade é a condição comum: “Ficam reparando em tudo o que a gente faz dentro de casa, sabe? Tem que fechar! Se você está na cozinha, eles te enxergam. Se está no banheiro, te enxergam. No quarto, te enxergam. Na sala, te enxergam. Enxergam em tudo que é lugar! É muito ruim isso!”. A intimidade gera medo, “porque nunca se sabe quem está do lado de lá. Uma vez tinha um ladrão escondido lá em cima, no terraço”.

Segundo Bachelard, todo edifício se funda no esmagamento da individualidade, que “faz com que nos enganemos de porta, de andar”. Nesses prédios a dor é uma coisa concreta — “está nas paredes, nos pátios”, dizia Aldo Rossi. O sofrimento é amplificado pela comparação com um passado idealizado: “Você tem certeza que quer fotografar daqui? Eu nem tenho vista! Aqui só tem esse prédio feio na frente. Antigamente é que era bonito”. 

Os casebres nordestinos e os cubículos gaúchos encerram afetos antagônicos: os primeiros exalam otimismo, os últimos, sofrimento

Os casebres nordestinos e os apartamentos gaúchos encerram complexos afetivos antagônicos. Apesar de sua precariedade, os primeiros expressam sentimentos de liberdade, alegria e prazer. Já nos apartamentos a liberdade está excluída de princípio, pois os moradores não escolheram aquelas fachadas e plantas (se eles tivessem escolha, teriam adquirido apartamentos maiores e mais bonitos). O apartamento minúsculo e devassado exprime a necessidade, e não a liberdade. Tamanha humilhação, contudo, é suportada em nome do “status” de se viver num edifício, e não num cortiço ou numa favela.

Esteticamente, as casinhas e os cubículos encarnam duas categorias distintas: “Havendo dois gêneros de beleza, em um reside a graça, e no outro, a dignidade. O primeiro é mais próprio da mulher; o segundo, do homem”, dizia Cícero. Schiller esclareceu bem essa contraposição entre a doçura feminina e a gravidade masculina: a graciosidade é a expressão da liberdade, enquanto a dignidade provém do sofrimento conscientemente suportado. Por isso a graciosidade se manifesta como leveza, e a dignidade, como esforço. A primeira é alegre e otimista, a última, trágica e soturna.

Não é casual que o apartamento queira tirar esse sorriso do caminho, para que o subproletariado volte a fornecer porteiros e domésticas — de preferência sem carteira. A classe média quer arrasar o casebre, mesmo que isso leve a construção civil à falência, afunde o país na crise e, no fim das contas, arruíne a própria classe média. A pulsão de morte não visa apenas a destruição do outro: é um desejo dirigido contra si mesmo, contra suas próprias culpas. É por isso que “à crista das revoluções caminha o Exterminador”, escreveu Lúcio Cardoso. É ele quem comandará o calendário do terror e das sevícias. E “o povo o engendrará com amor porque necessita sofrer, e tudo o que no povo é instinto clama pela necessidade do castigo”.

Quem escreveu esse texto

Mauricio Puls

É autor de Arquitetura e filosofia (Annablume) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva), e editor-assistente da Quatro Cinco Um.