Arte e fotografia,

Um outro mundo possível

Fruto de mais de três décadas de trabalho, livro de Claudia Andujar nos aproxima do modo de vida dos Yanomami

01abr2019 | Edição #21 abr.2019

“Não era só bater fotos, era uma questão de entender quem as pessoas são”, afirmou Claudia Andujar, 87, no IMS Paulista, momentos antes de autografar o catálogo A luta Yanomami. O volume documenta de modo abrangente a produção da fotógrafa junto a esse povo desde 1971 e conta a história de um convívio que dura até hoje.

Andujar atribui à sua vivência a predisposição para um envolvimento digno dos mais dedicados etnógrafos. Cresceu na Transilvânia húngara, mas perdeu toda a família paterna, de judeus eslovacos, deportados para campos de concentração. Regressou com a mãe à sua cidade natal, Neuchâtel, na Suíça, mas decidiu morar com um tio em Nova York. Em 1955, visitou o Brasil e sentiu forte identificação. 

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Interessou-se pela fotografia para documentar suas viagens e aproximou-se do antropólogo Darcy Ribeiro e do fotógrafo Marcel Gautherot. Lutando para se estabelecer como fotojornalista, visitou diversos povos indígenas e produziu ensaios para a revista Realidade até sentir a necessidade de se concentrar num só povo. Isso ocorreu com os Yanomami, que habitam o território entre Amazonas, Roraima e Venezuela, um povo recentemente contatado pelos “brancos” — ou “Povo das Mercadorias”, como eles chamavam garimpeiros, militares, missionários e pesquisadores.

Andujar foi aceita e, em lugar de passar “um ou dois meses”, como fizera em meio aos Xikrin, Bororo, Caiapó e Carajá, os acompanhava por “um ou dois anos”. Embora trabalhos anteriores já apresentassem um olhar etnográfico, suas fotos dos Yanomami são muito diferentes das imagens tradicionais dos habitantes das terras baixas da América do Sul, produzidas desde os primeiros viajantes até o fotojornalismo e a antropologia visual dos anos 1960. 

Os retratos nos interiores das casas coletivas apresentam pessoas dotadas de subjetividade, o que até então era vedado à representação do “índio” que posava na floresta como selvagem. Os rituais religiosos são vistos por dentro, em meio a aparições fantasmáticas que vibram e perfazem rastros de luz. As paisagens mostram florestas transfiguradas por estranhas cores que imprimem uma atmosfera onírica.

Nos textos, intercalados com as imagens, lê-se que o “fotômetro parou de funcionar por causa da umidade”. Andujar então reveste a lente com vaselina para criar zonas desfocadas na imagem, provoca distorções por meio da agitação da câmera, varia a velocidade do obturador para obter uma “sensação de vertigem” e usa filmes infravermelhos para mostrar uma floresta diferente daquela que conhecemos por fotografias documentais e turísticas. 

Segundo os seus habitantes, que a veem de acordo com seu próprio sistema de crenças, o território de floresta tropical é urihi a, uma “terra-floresta”, indissociável dos acontecimentos biográficos e da memória coletiva de comunidades que vivem em trânsito, como explica Bruce Albert. O conhecimento antropológico contido nessa noção, entre outras, encontra uma surpreendente tradução visual na obra de Andujar, uma vez que as “aberrações ópticas” produzidas intencionalmente pelas experimentações revelam que é possível perceber o mundo de maneiras diversas. 

A obra da fotógrafa, assim como o relato produzido por Davi Kopenawa e Albert em A queda do céu (Companhia das Letras), é capaz de nos aproximar dessa visão de mundo tão diversa que talvez nem mesmo muitas décadas de observação possam explicá-la completamente. Porém esse contato abala as estruturas epistemológicas da nossa visão, ao mostrar que os conhecimentos que acumulamos sobre nossas relações com os outros e com o que chamamos de natureza tampouco passam de mais um sistema de crenças.

O conjunto de acasos e procedimentos que capacita Andujar a registrar esse outro mundo possível tem ainda uma característica inesperada para quem nunca conheceu ou se desacostumou à fotografia anterior à instantaneidade do digital. Embora mantivesse um apartamento em Roraima, Andujar só revelava suas fotos em São Paulo, onde fazia experimentos preparatórios durante os intervalos entre viagens. Passava, então, um ou dois anos sem ver o que fotografava.

As paisagens mostram florestas transfiguradas por estranhas cores que imprimem uma atmosfera onírica

Além das fotografias de Andujar, o catálogo contém desenhos dos Yanomami, produzidos com canetas hidrográficas, de “personagens que considerassem importantes por qualquer razão”. O resultado fornece vislumbres tão desconcertantes do imaginário Yanomami quanto as fotografias. Entre os povos indígenas, a falta de imagens duráveis reafirma a força das imagens mentais. Enquanto nos inundamos com imagens exteriores e enxergamos cada vez pior nossa memória e nossos sonhos, esses desenhos revelam as visões em torno das quais todo um povo se organiza.

Exames e vacinas

O catálogo recompõe a expografia, dividida em duas partes. Nas séries produzidas em meio às comunidades que vivem ao longo do rio Catrimani, retratos e desenhos reconstituem a imersão no modo de vida e nos ritos do povo. Na segunda parte, registra “consequências do contato”, com imagens dos exames médicos a que foram submetidos os Yanomami por causa das doenças trazidas pela política de ocupação durante a ditadura civil-militar, sobretudo por causa da construção da Perimetral Norte, rodovia que ligaria o Amapá à fronteira com a Colômbia e que nunca foi concluída. Embora esses registros tenham  atmosfera menos onírica e mais realista, certos procedimentos, como o aparecimento de flares (manchas de luz), ressaltam a estranheza de exames, letreiros e outros elementos que invadem a terra-floresta, causam mortes, doenças e que, com o fracionamento do território indígena, ameaçam destruir o modo de vida desse povo.

Vale mencionar também a série Marcados (1981-84), que encerra o catálogo e que foi produzida para a confecção de carteiras de vacinação. Uma vez que o conceito Yanomami de identidade pessoal é diferente daquele que o Estado exige, as pessoas foram fotografadas com números. Um complexo de equívocos transparece nessas imagens, desde o desconforto risonho das pessoas diante da operação oficial de registro até a aterradora memória dos números tatuados nos prisioneiros dos campos de concentração nazistas. 

As “aberrações ópticas” que Andujar transformara em procedimentos artísticos para revelar uma dimensão até então desconhecida da realidade ressurgem nessa parte da obra com um outro sentido, a dimensão trágica do desentendimento entre o Povo das Mercadorias, para o qual todo recurso natural e humano deve ser explorado em nome do desenvolvimento econômico, e o Povo da Terra-floresta, para quem todo ser natural tem no âmago a imagem de um espírito ancestral e não há separação real entre nós, seres humanos, e o ambiente que nos cerca.

Quem escreveu esse texto

José Bento Ferreira

É crítico de arte e professor de filosofia.

Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.