Arte,

Como se fosse a primeira vez

Historiador da arte questiona nossos hábitos de percepção e pensamento diante de uma obra artística

01out2019 | Edição #27 out.2019

“Ver com olhos livres.” “A alegria é a prova dos nove.” Essas duas frases célebres de Oswald de Andrade — escritor que provavelmente Daniel Arasse (1944-2003) nunca leu — sintetizam bem o modo como o autor de Nada se vê escolheu abordar sua matéria, a pintura. No primeiro texto do livro, que assume a forma de uma carta endereçada a Giulia, uma pesquisadora italiana, Arasse, um dos mais brilhantes historiadores da arte contemporâneos, espanta-se com uma certa cegueira que parece acometer sua interlocutora: “Não consigo entender como acontece de às vezes você olhar a pintura de modo a não ver o que o pintor e o quadro lhe mostram”. 


Detalhe

Essa espécie de cegueira que, segundo Arasse, turvaria a visão de sua colega teria uma explicação simples: antes de ela ver de fato a pintura, reconhece nela aspectos já levantados por estudos anteriores. “O que me preocupa é mais o tipo de filtro (feito de textos, citações e referências externas) que, em alguns momentos, você parece a todo custo querer interpor entre você e a obra, uma espécie de protetor solar que a protegeria do brilho da obra e preservaria os hábitos adquiridos nos quais a nossa comunidade acadêmica se baseia e se reconhece.” 

Implicado nessa observação está o princípio fundamental do método de leitura e interpretação das obras empregado por Arasse, que poderia, como sugeri anteriormente, ser resumido numa frase de Oswald: ver com olhos livres. Em certa medida, foi esse modo de observar as obras que fez com que Arasse chegasse a tentar espantar uma mosca que, horrorizado, achou ter visto sobre uma pintura de Carlo Crivelli no Metropolitan Museum. “Me senti um pouco besta: deveria ter me lembrado de que Crivelli gostava muito de pintar moscas em seus quadros”, conta-nos. E complementa: “É o tipo de desventura que não aconteceria com você, que nunca esquece daquilo que sabe”. 

Para Arasse, é preferível “cair nesse tipo de jogo [o trompe-l’oeil] e continuar sendo surpreendido pela pintura e sua presença” a, diante de uma obra, apenas confirmar o que já sabia. Está embutida nessa atitude, portanto, também uma crítica aos procedimentos analíticos tradicionais da história da arte, como a iconografia, ramo da disciplina que, segundo Erwin Panofsky, trata do tema ou da mensagem da obra de arte. 

Essa crítica se torna mais clara e direta no segundo texto do livro, “O olhar do caracol”, sobre a Anunciação de Francesco del Cossa. O que de imediato chama a atenção do crítico é o imenso caracol que se encontra representado na base da pintura, entre o anjo Gabriel e a Virgem Maria. Aparentemente, esse caracol — que tem, na pintura, as mesmas dimensões do Deus que aparece no alto, no céu — não tem nada a ver com a cena sacra apresentada, embora esteja num lugar de destaque. E é isso o que o torna tão interessante para Arasse: ele destoa do todo, “gera uma desordem”; é anormal, inconveniente, inoportuno.

Atenção aos ruídos

Como no anterior, esse texto também se dirige, ficcionalmente, a um especialista. No entanto, diferentemente do primeiro, o especialista aqui não é nomeado, mas tratado por “você”. É a ele que Arasse volta sua acusação: “Você tem sempre uma solução. Sempre a mesma: a iconografia”. Para Arasse, o problema da iconografia está em que, ao responder todas as perguntas sem atenção aos possíveis resíduos e ruídos, ela “aplaca as inquietações” e, assim, elimina o que poderia haver ali de incômodo, como o caracol. Daí afirmar ainda: “Decididamente, os iconógrafos são os bombeiros da história da arte: estão ali para acalmar os ânimos, para apagar o fogo que corria o risco de iluminar esta ou aquela anomalia, pois ela os obrigaria a olhar mais de perto e a constatar que não é tudo tão simples, tão evidente quanto vocês gostariam que fosse”.

O que há de mais admirável no método crítico de Arasse é justamente buscar preservar o incômodo como incômodo: não há apaziguamentos — assim como na arte, que é, desde sempre, inquietação. Talvez por isso, seus textos sejam, antes de tudo, descrições, palavra que ele usa no subtítulo original do livro (na recente edição da 34, substituído por “seis ensaios sobre pintura”). Descrições que partem precisamente do elemento que perturba a ordem do conjunto e que tornam mais complexa a observação e interpretação do todo, produzindo uma nova leitura ou, pelo menos, oferecendo uma nova visão da pintura — e essa proposta inclui pinturas mais do que estudadas. como As meninas, de Velázquez. 

Os textos de Nada se vê assumem, em alguns momentos, formas muito próximas às da ficção. É o caso de “A mulher na arca”, escrito como um diálogo entre dois estudiosos, no qual se discute a Vênus de Urbino, de Ticiano, a partir da provocação de um deles, que compara a representação da deusa a uma pin-up. Não por acaso, esse diálogo já foi adaptado para o teatro, na França, em mais de uma ocasião. Ou, ainda, de “Um olho negro”, em que Arasse imagina um conhecedor indo ver mais uma vez a Adoração dos magos, de Bruegel, na National Gallery, em Londres, e se deixando surpreender pela primeira vez pela figura imponente de Gaspar, o terceiro dos rei magos, negro, cujo modo de representação se diferencia significativamente do dos outros dois. 

A liberdade no procedimento crítico de Arasse não está apenas na aproximação às pinturas e na forma pouco usual que os textos assumem (carta, diálogo ficcional, conversa do narrador com um interlocutor etc.), mas também na maneira despojada e, principalmente, alegre de escrever. É assim, por exemplo, que ele começa o texto sobre a obra-prima de Velázquez: “As meninas! De novo? Não! Não! Tenha dó! Chega de As meninas”. Poderíamos lembrar também a maneira como se refere aos reis Baltazar e Melchior da Adoração dos magos: “Com seus cabelos longos, sujos e despenteados, eles mais parecem velhos hippies desleixados, bichos-grilos desdentados. Parecem ser aquilo que são: velhotes caquéticos”. E, em seguida, acrescenta: “Ao ver a penosa rigidez daquele que está inclinado (lumbago? artrite? ciática?), nos perguntamos como o seu confrade, ainda mais velho, fez para se ajoelhar, e como fará para se levantar”.

Em mais de um momento do livro, Arasse defende que, para ser sério, não é preciso afetar uma seriedade que se julgaria conveniente entre os pesquisadores e historiadores da arte — o que nós aqui chamaríamos de “fazer pose” —, afastando-se do que pode haver de divertido no percurso interpretativo, “como se fosse um dever profissional não rir, nem mesmo sorrir”. Em “Cara Giulia”, ele lembra do provérbio renascentista serio ludere, que quer dizer “brincar seriamente”, e o que essa atitude traz consigo: o “apreço pelo riso e pelo paradoxo”. É para Giulia que Arasse diz: “Dir-se-ia que, para ser séria, você deveria se levar a sério, ser seriosa, e não seria, como vocês dizem em italiano, mostrar suas credenciais aos guardiães de cemitério, que se protegem na pretensa dignidade da disciplina, e que, em nome de um saber triste, querem que a gente nunca ria diante da pintura”. Como Oswald de Andrade, Arasse sabia que a alegria, no fim das contas, é o verdadeiro teste da inteligência. 

Quem escreveu esse texto

Veronica Stigger

Escritora e crítica de arte, é autora de O livro dos sonhos (Arte & Letra).

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.