Repertório 451 MHz,

Relatos de um certo autor Transcrição

Leia a transcrição do episódio #100 do 451 MHz: uma conversa com o escritor Milton Hatoum

04dez2023

Paulo Werneck: Oi! Está começando o centésimo episódio do 451 MHz, o podcast para quem lê até com os ouvidos. É isso aí: episódio número 100! Chegamos hoje a essa marca histórica. Eu sou Paulo Werneck, editor da revista Quatro Cinco Um. Duas vezes por mês, a gente conversa aqui com autores, críticos e leitores sobre os livros mais legais que acabaram de ser publicados no Brasil. 

Milton Hatoum: “Porque essa é a função da literatura, da arte, que é expandir a nossa imaginação, o nosso conhecimento, estimular dúvidas, colocar perguntas de uma forma inquietante… Se a literatura não fizer isso, ela vai ser o quê? Uma tese, uma explicação daquilo que é supostamente politicamente correto”.

Paulo Werneck: Esse é o Milton Hatoum, o escritor que a gente convidou para celebrar a publicação desse episódio número 100. Eu ainda vou falar mais dele, mas antes eu preciso avisar que esse episódio do 451 MHz tem o apoio do Instituto Cultural Vale, por meio da Lei de Incentivo à Cultura.

O Milton não só nasceu em Manaus, como carrega o nome da cidade dele como um apelido entre os amigos mais próximos. Ele é também um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea e da literatura amazônica. A Companhia das Letras está lançando agora novas edições dos livros do Milton, com novas capas e posfácios assinados por críticos literários. Então vamos lá ouvir a entrevista com o Milton.

Paulo Werneck: Seja bem-vindo, Milton, tudo bem com você? 

Milton Hatoum: Tudo bem? Obrigado pelo convite, é um prazer participar deste podcast com você, Paulo. 

Paulo Werneck: Você está relançando a sua obra neste momento em edições novas, né? A Companhia das Letras fez novas capas, e eu queria saber se você mexeu nos textos. Você é conhecido por ser um supercarpinteiro do texto, um autor flaubertiano. Depois de publicado, você volta a mexer, a reler, a retocar, ou uma vez já publicado não tem mais volta, não tem nada que se mexa?

Milton Hatoum: Não, uma vez publicado o livro, ele pertence ao leitor. 

Paulo Werneck: Esquece.

Paulo Werneck: Não esquece totalmente, porque eu estou sempre falando desses livros em palestras, mas eu não releio. Às vezes, leio trechos, mas nunca faço alterações, uma nova impressão ou reedição. O que aconteceu com essas edições é que elas vêm com posfácios de críticos literários. Dois irmãos com um ensaio do Wander Melo Miranda, que é um professor da [Universidade] Federal de Minas Gerais, o Cinzas do Norte também veio com posfácio, e o livro de contos também.

Paulo Werneck: A cidade ilhada, né? 

Milton Hatoum: É, são as três reedições. No começo do ano que vem, vão sair o Órfãos do Eldorado e o Relato de um certo Oriente, que foi o meu primeiro romance.

Paulo Werneck: Certo. Todos eles com posfácios e com novas capas e tal. É isso?

Milton Hatoum: Exato, quer dizer, o Fábio de Souza Andrade, tradutor do Beckett, escreveu o posfácio do Cinzas do Norte e o Lourival de Holanda, que é um professor da [Universidade] Federal de Pernambuco, também escreveu prefácio do livro de contos, A cidade ilhada. Quer dizer, a novidade são esses posfácios, que são ensaios breves, e a capa com as fotos do Luiz Braga, um dos maiores fotógrafos brasileiros, que mora em Belém. Quer dizer, as edições anteriores, algumas já tinham fotos do Luiz Braga, fotos coloridas, e agora ele decidiu fazer tudo em preto e branco. São fotos belíssimas. Enfim, o Relato tinha mais de trinta anos e o Dois irmãos já tem 23 anos, então houve essa renovação. E com a mesma linguagem visual fotográfica. Mas eu nunca mexo no texto, porque, se eu mexo, vai dar vontade de alterar, e também já ficou para trás, aí não faria mais nada.

Paulo Werneck: Muito legal você contar isso e contar também do Luiz Braga, que é um fotógrafo que tem uma carreira de certa maneira paralela à sua, em termos de tempo, né? Eu lembro de você falando dele, das primeiras exposições dele em São Paulo na virada do século. Desde então, a Amazônia se transformou num ponto de interesse mundial, do ponto de vista cultural, político, econômico. Embora a gente saiba que é e sempre foi riquíssima e central para o destino do mundo inteiro, essas atenções não estavam tão pronunciadas, né? E as obras de vocês, tanto do Luiz Braga como a sua, prenunciaram um pouco esse foco na Amazônia, né? Esses livros, então, de certo modo são muito atuais, né? Isso te pega de alguma maneira? 

Milton Hatoum: Na verdade, essa destruição mais sistemática da Amazônia data dos anos 70, durante a ditadura. Naquela época, quando eu estudava arquitetura aqui na USP [Universidade de São Paulo], alguns amigos fizeram uma viagem pela Amazônia. Todos eram fotógrafos, fizeram uma exposição na FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP] dessas fotos e me convidaram para escrever um texto. Eu escrevi vários textos, alguns poemas, prosa poética, comentários sobre o livro do Euclides da Cunha, À margem da história. Depois, a gente publicou um livrinho com o título Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas. Isso em 78, por aí. Quer dizer, embora a devastação naquela época ainda fosse pequena — vamos dizer de 3% da Amazônia, no máximo 5% —, já existia um projeto de ocupação da Amazônia, um projeto do governo da ditadura, com as estradas Perimetral Norte, a Transamazônica, a Manaus-Porto Velho, enfim. Toda essa rede de estradas que rasgava a floresta e, evidentemente, invadia territórios indígenas. Desde aquela época, quem estava um pouco ligado já sabia que seria irreversível. Ou, pelo menos, seria uma continuidade dessa devastação um pouco posterior ao grande filme do Bodansky Iracema, uma transa amazônica, que foi um filme proibido no Brasil e exibido na Alemanha, ganhou lá prêmios, e que também quase que prenuncia tudo isso. As pessoas achavam que eu era muito pessimista com esse livrinho porque eu dizia: “Não é bem assim, existe um projeto aí para ocupar a região e desmatar, deslocar os indígenas”. Mas depois eu tratei isso ficcionalmente de outra forma. Eu falei mais da destruição da cidade, do mundo urbano. Isso está no Dois irmãos, no Cinzas do Norte… 

Paulo Werneck: Cidade que era o seu apelido nessa época da FAU, né? Os seus amigos da época te chamavam de Manaus e ainda hoje tem gente que chama?

Milton Hatoum: De vez em quando, os meus amigos arquitetos ainda me chamam de Manaus, porque era tão raro ter um amazonense na FAU, que aí ficou Manaus. Não sei se é um bom apelido, porque Euclides da Cunha, quando se referia a Manaus, ele dizia: “Há uma maldição nesse nome”. 

Paulo Werneck: E por quê? 

Milton Hatoum: Acho que porque, quando ele foi pra Amazônia, no começo de 1905, ele chefiou uma comissão mista brasileira e peruana para delimitar as fronteiras com o Peru. Então, ele foi de Belém a Manaus e subiu o rio Amazonas até as cabeceiras. Mas em Manaus nada deu certo para ele: atrasou, a lancha quebrou, ele ia passar poucos dias, acabou ficando mais de três meses e não gostou de Manaus. Ele gostou muito de Belém e achou Manaus uma cidade comercial insuportável. Percebeu ali o caráter aventureiro e predador da cidade, dos comerciantes, das pessoas que iam lá para ganhar dinheiro sem nenhuma relação mais profunda com a cidade. Quer dizer, eram pessoas que passavam por lá ou que ficavam um tempo para ganhar dinheiro. E isso aconteceu depois com a Zona Franca, né? Que deu empregos, mas a cidade foi destruída, seu centro histórico. Esse é um dos temas desses romances.

Paulo Werneck: Do Relato

Milton Hatoum: No Relato menos, porque Manaus aparece muito pouco, o espaço simbólico é mais centrado na casa que se desfaz. E essa voz da narradora — porque é uma mulher que conta a história, né? Em 89, eu decidi que uma mulher deveria contar essa história.

Paulo Werneck: Hoje seria possível fazer isso? Você assumiria uma voz de mulher para escrever nos dias de hoje? 

Milton Hatoum: Claro, por que não? Tantas escritoras usaram uma voz masculina para escrever seus livros, Virginia Woolf, por exemplo. Com certeza, uma das maiores escritoras do Ocidente e escreveu contos e romances com uma voz masculina. Isso é totalmente possível. A literatura dá essa voz também do outro, do diferente, ela não é presa, não está limitada a uma voz única. 

Paulo Werneck: Acho que talvez até por isso que o Ian McEwan resolveu colocar num feto ainda não nascido o narrador dele daquele livro Enclausurado, né? Talvez até para falar: “Olha, eu posso até mesmo pôr uma pessoa que nem nasceu ainda, posso dar voz a ela”. 

Milton Hatoum: A literatura explora a alteridade. A imaginação de uma pessoa transcende a sua identidade. A identidade nunca é fixa, rígida, cristalizada, ela é também uma escolha, né? Você pode ser muitos, e nós somos muitos e diversos sempre. A literatura fala sobre isso. Quer dizer, um escritor negro não precisa escrever livros apenas sobre negros. Basta ver o grande romance do James Baldwin, O quarto de Giovanni, o protagonista é um americano branco e loiro. Quando ele apresentou esse romance, a editora não queria publicar, porque eles diziam que o público dele é de leitores negros, basicamente. Mas ele não queria escrever um livro sobre o Harlem, ele queria escrever um livro sobre a experiência dele em Paris, sobre a homossexualidade, sobre esse americano que era um jovem rico de uma família abastada e que se apaixona por um italiano. 

Paulo Werneck: Você falou de Virginia Woolf, de James Baldwin. Qual é o momento do dia que você reserva para a leitura? Hoje em dia, inclusive, está tão difícil, a nossa atenção sendo solicitada o tempo todo por WhatsApp, internet, noticiário. Como é que você consegue se refugiar e ler?

Milton Hatoum: Eu tenho um tempo, quase uma disciplina de leitura todos os dias, porque eu leio muito mais do que escrevo. Eu escrevo poucas horas do dia, e o resto do dia, quando eu posso, eu leio. Sinto esse prazer da leitura, que para mim é mais importante do que a escrita. Então, eu acho que dois terços do meu dia eu passo lendo. Eu estou relendo clássicos, relendo coisas que interessam ao romance que eu estou terminando, o terceiro volume da trilogia. E aí eu escrevo duas horas ou duas horas e meia, três horas no máximo por dia. Não fico oito, dez horas escrevendo, meu ritmo sempre foi esse.

Paulo Werneck: Você tem uma meta de escrita por dia?

Milton Hatoum: Não, nunca tive isso. Eu procuro escrever todos os dias. Carpentier dizia que se você não escrever meia hora por dia, você cria uma espécie de anquilose mental. Então é bom você escrever um pouco todos os dias, porque a escrita não é obrigação. O Borges dizia que você não pode ser poeta de oito da manhã às cinco da tarde. E isso eu acho que serve também para a prosa, né? Essa coisa de você fixar horários, tem gente que faz isso. Cada um tem o seu ritmo, mas eu escrevo quando me dá vontade e, às vezes, eu não escrevo nada, não estou bem para lidar com as palavras. E aí passa. Eu vou para a leitura. 

Paulo Werneck: Você escreve antes de ler ou depois de ler?

Milton Hatoum: Eu leio depois. Acordo muito cedo, [mantenho] os hábitos amazônicos, deixo o meu filho na escola. Preparo o café e tal, e aí eu escrevo. Essas primeiras horas [do dia] para mim são mais vivas para escrever. Aí, depois eu vou para os meus livros, para os meus livros de história, romance, enfim. 

Paulo Werneck: Mas aí é leitura de pesquisa? É leitura para o livro?

Milton Hatoum: Em parte, sim, porque são leituras que me auxiliam naquilo que eu estou escrevendo e, por outro lado, são também livros que eu gostaria de ler. Eu tento acompanhar [a produção] até para a Quatro Cinco Um… Relendo um romanção do Elias Khoury, Meu nome é Adam, que é um belíssimo romance. E deu trabalho aquilo, é um romance grande, né? Você tem que ler e reler alguns trechos para entender. Não faço muitas resenhas porque dá muito trabalho.

Paulo Werneck: Mas você não sabe a alegria que é editar o Milton, como é um luxo e de uma importância enorme ter um escritor como você colaborando, fazendo o trabalho crítico também. Para nós é muito importante, e para o leitor também, com certeza. 

Milton Hatoum: Obrigado! Mas, às vezes, você não tem tempo. Eu já recusei muitas resenhas, porque tudo dá trabalho, né? Até escrever um bilhete dá trabalho, como diz Borges. 

Paulo Werneck: Você é desses que capricha no bilhete? Tipo o Fernando Sabino, esses caras que eram ases, reescreviam bilhetes… Eu já vi gente reescrever plaquinha no banheiro para deixar mais sintético. Você tem essa obsessão da escrita do dia a dia também? 

Milton Hatoum: Tenho, é difícil relaxar. 

Paulo Werneck: E diário, você escreve?

Milton Hatoum: Não, não escrevo diário. O que eu andei fazendo durante um tempo foi tomar notas, anotações muito breves de leituras, mas diário mesmo, não. Eu acho que uma parte da minha vida está na ficção de um modo transcendente. O que entra na ficção da nossa vida já não é mais a nossa vida, é a ficção, então nunca fiz realmente um diário. Eu fiz quando eu morava em Brasília, de 68 a 71, e algumas dessas anotações eu guardei. Isso me serviu para escrever A noite da espera, que é o primeiro volume da trilogia. E depois as anotações, os diários dos meus amigos e amigas foram muito importantes para escrever Pontos de fuga, que é o segundo volume.

Paulo Werneck: Eles te emprestaram os escritos deles, então?

Milton Hatoum: Sim, eu tive duas amigas e um amigo da época de Brasília. Aliás, ele saiu comigo de Manaus, fez um documentário lindo, Segredos do Putumayo, o Aurélio Michiles. Ele abriu o baú dele. Não só ele, mas a Tuna Dwek, a Arlene, são amigos que tinham muitas anotações daquela época e de coisas também muito ásperas. Todos foram presos, alguns torturados, e eles me deram tudo. Claro que eu não usei as palavras deles. Eles foram emissores de ideias para compor personagens, também para encontrar uma voz da personagem. Foi muito importante ter lido esses diários com desenhos, alguns com fotos. Isso me alimentou. Por isso que demorou dez anos para escrever a trilogia.

Paulo Werneck: Mas você não precisa se justificar de maneira nenhuma. Eu acompanho a sua escrita desde o comecinho, o seu processo de trabalho é muito generoso, a maneira como você compartilha com os editores e, pelo visto, com os amigos também. Quer dizer, um livro seu não é um bloco do eu sozinho. Muitas vozes confluem para eles, né? Você falou do Euclides da Cunha, e o Mário de Andrade vem sendo alvo de alguns comentários críticos de que teria se apropriado de narrativas indígenas n’O turista aprendiz, que é uma viagem de um paulista meio deslumbrado pela Amazônia. O que você acha d’O turista aprendiz? Vou dar até um spoiler aqui: que eu vou publicar uma edição na Tinta-da-China Brasil, então eu amo esse livro e amo Mário de Andrade. 

Milton Hatoum: Mário de Andrade foi um dos maiores intelectuais brasileiros, um intelectual completo. Ele conhecia muito de música, música popular e erudita, foi um grande pensador de música, era apaixonado pelo Brasil. E isso Euclides também foi — outro registo, outra linguagem e com outra formação, mais positivista, mas foi também um apaixonado pelo Brasil, né? Eu acho que o Mário de Andrade seguiu essa trilha, esse empenho, esse desejo de descobrir o país, descobrir uma linguagem mais popular, a arte popular. Essa viagem para o Nordeste e pela Amazônia de O turista aprendiz foi fundamental para ele, até para escrever também o Macunaíma, como foi fundamental a viagem de Euclides pela Amazônia. As observações que o Mário faz sobre as cidades amazônicas são brilhantes, e até hoje são muito pertinentes. Ele estabelece diferenças entre Belém e Manaus, vê de muito perto os indígenas, adquire vocabulário, tenta entender aquilo. Eu acho que ele faz também uma espécie de radiografia da fauna e da flora, tem uma visão, a percepção muito aguda de tudo que está ao redor dele. É um dos livros fundamentais da literatura do Mário e da literatura brasileira. 

Claro que ele se apropriou das narrativas indígenas, mas todo escritor se apropria de alguma coisa. Quando você está lendo um livro de contos do Jorge Luis Borges ou o Grande sertão: veredas, o que você está lendo além do texto? Você está lendo uma biblioteca por trás daquele texto. Você está lendo os autores e as autoras que aqueles escritores e escritoras também leram e que estão de algum modo nesse livro que você está lendo. Quando o Guimarães Rosa, no Grande sertão, cita mais de quinze vezes Dante Alighieri na voz de um jagunço, você está lendo o Dante Alighieri, às vezes sem saber, porque a maioria dos leitores não sabe, só um pesquisador, um crítico que vai lá e tenta iluminar essa biblioteca oculta que está de algum modo no livro que você está lendo. Eu não gosto dessa onda pós-moderna que tenta tirar o valor da obra e apenas classificá-la em jargões, seja identitário, seja racial ou seja literatura. Porque a literatura faz muito mais perguntas do que dá respostas. Então eu acho que se a gente começar a limitar aquilo que a literatura expande — porque essa é a função da literatura, da arte, que é expandir a nossa imaginação, o nosso conhecimento, estimular dúvidas, colocar perguntas de uma forma inquietante… Se a literatura não fizer isso, ela vai ser o quê? Uma tese, uma explicação daquilo que é supostamente politicamente correto.

Paulo Werneck: Você já foi tocando aí num tema que eu queria conversar com você, que é o seu compromisso ético, literário, com a cultura árabe, que é um tema desde o início da sua obra e que a gente agora está vivendo um momento dramático com essa guerra na Palestina e esse massacre que está acontecendo lá em Gaza. Você sempre foi muito ligado a essa questão por ter família [árabe] e por toda a sua biblioteca, que tem a ver com tudo isso. Eu queria que você dissesse um pouco como você está enfrentando essa questão.

Milton Hatoum: Vários escritores e historiadores, sobretudo historiadores e pensadores da cultura, escreveram livros fundamentais sobre esse assunto. Alguns mais importantes são judeus, que estão vivos ainda e escrevendo sobre isso. Então, quando você lê um livro fundamental do historiador israelense Ilan Pappé, chamado A limpeza étnica da Palestina, você entende que o que está acontecendo hoje já aconteceu em 1948, com massacres e devastações de mais de quinhentas aldeias e cidades palestinas, e isso nunca parou. Ilan Pappé fala com arquivos, as fontes dele são arquivos, inclusive militares, coisas que estão provadas, documentadas. Ele historia esse processo de colonização da Palestina. Foi um massacre já em 48, e isso nunca terminou. A ocupação dos territórios palestinos nunca parou e, depois da guerra de 67, que Israel ganhou, eles ocuparam a Cisjordânia, depois ocuparam Gaza, e estão ocupando até hoje, porque está tudo centrado em Gaza, mas está havendo assassinatos na Cisjordânia por colonos armados. Nem os chamados pais fundadores de Israel escondem isso, né? Porque é preciso tirar um povo dali que estava ali, que convivia pacificamente com os judeus palestinos. Isso é que é importante. O Edward Said fala muito sobre isso também num livro que é fundamental, A questão da Palestina, que foi publicado pela Unesp. E o Said, em 92, diz: “Essa solução de dois Estados é inviável, não há como você criar um Estado palestino contínuo com essas centenas de colônias que foram sendo implantadas a partir de 67”. Ele propõe um Estado binacional, que seja Israel ou Palestina, o nome também não vem ao caso, mas que seja um Estado binacional com direitos iguais para palestinos e judeus. É a utopia do humanista. O Edward Said foi um grande intelectual humanista no sentido mais pleno e verdadeiro, o humanismo com uma criação permanente de possibilidades, de capacidades de processos democráticos, que produz uma mente livre, sabe? Ele sonhava com isso, e ele tinha editores judeus. Ele tinha amigos judeus de revistas que editavam ensaios dele na [Universidade] Columbia, em Nova York. E hoje você está percebendo um crescimento enorme de jovens judeus antissionistas nos Estados Unidos. Houve uma manifestação há poucos dias na Grand Central Station, em Nova York, com milhares de jovens judeus protestando contra o massacre em Gaza e contra o apartheid — alguns até foram presos pela polícia. Então, a gente não pode ver esse massacre terrível que já matou milhares de crianças. É triste, é horrível, né? Se a gente não entender o processo todo, que vem desde o início da fundação desse Estado. Não é uma coisa só pró isso, pró aquilo, você tem que entender a colonização. E aí dizer: “Bom, nunca quiseram paz, os Acordos de Oslo eram uma ‘capturação’, não davam nada para a Palestina. Dava aquela área pequena da Cisjordânia. Aí tinha uma área A, uma área B, que era mista, com a presença do Exército, e uma área C, que está sendo ocupada pelos colonos”. 

Paulo Werneck: Você já esteve lá, Milton? Já visitou Gaza, Israel?

Milton Hatoum: Não, eu visitei os campos de refugiados de Sabra e Chatila, quando houve aquele massacre nos anos 80 que a falange cristã, com a cumplicidade do Exército israelense matou mais de duas mil pessoas, em três dias e noites de carnificina. Eu visitei esses campos de refugiados. São milhares de palestinos na Jordânia, no Líbano, na Síria e no Egito.

Paulo Werneck: E em Israel, inclusive, né? Onde vivem muitos palestinos também. 

Milton Hatoum: Há vários campos de refugiados em Gaza, na Cisjordânia também. Como essas pessoas vão viver? Qual é o futuro dessas pessoas?

Paulo Werneck: E tem uma degradação da região, né? O Líbano também, que é o seu país de origem, da sua família, tem também sofrido não só com esse conflito, como com outras questões também, a guerra da Síria, aí teve aquela explosão no porto, que foi uma tragédia absolutamente devastadora para o país em vários sentidos, uma coisa criminosa que matou gente, que destruiu a economia, uma cidade, que fez um estrago. Acho até que as pessoas não sabem o tamanho do estrago que foi essa explosão lá, né? 

Milton Hatoum: Foi um absurdo, uma loucura. O Líbano também é um Estado que passa por uma disfunção. Eu não concordo também com essa divisão de poderes pela religião, sabe? 

Paulo Werneck: Porque lá eles fatiam todo o poder entre os diferentes. É um Estado plurirreligioso, né? 

Milton Hatoum: Exatamente. Mas você atribuir uma religião a uma função de Estado está errado. Como está errado também Israel ser um Estado só para judeus, porque isso passou no parlamento há alguns anos. Quer dizer, os judeus têm os privilégios da democracia, e sobretudo os judeus brancos, europeus, mas os judeus negros, os palestinos muito menos, não têm todos os acessos às instituições democráticas, como têm judeus brancos de Israel. Então vira uma coisa supremacista, uma coisa segregacionista. E isso não dá certo, a gente já sabe historicamente que isso vai ser um fracasso, né? Hoje eu acho que as pessoas, parece que perderam o medo de criticar essa brutalidade dos dados de Israel. Algumas são mesmo antissemitas, é verdade, não nego isso. E muitas são apenas antissionistas, são contra essa barbárie. E é bom lembrar que Eric Hobsbawm, o grande historiador judeu, já em 81 dizia que essa barbaridade cometida por Israel alimenta o antissemitismo, como tantos historiadores judeus disseram isso. É lamentável, porque são culturas tão próximas, não são primos, são irmãos.

Paulo Werneck: Essa história a gente conhece, de irmãos que têm uma rivalidade dilacerante. E literariamente, Milton, quando foi a última vez que você foi ao Líbano? E queria saber como é que está a circulação da sua obra em árabe. Eu sei que você já foi publicado lá, pelo menos o Relato já foi publicado. Você tem edições em países árabes?

Milton Hatoum: Sim, eu fui a primeira vez em 92, com meu pai, que não visitava os irmãos e parentes havia trinta anos. Quando nós chegamos lá, ele encontrou todos os velhinhos, foi logo depois do fim da guerra civil. Eu nunca tinha visto uma cidade em ruínas, minha ideia de Beirute era aquele clichê…

Paulo Werneck: A Paris do Oriente, todo mundo dizia, né?

Milton Hatoum: Eu fui pra um colóquio de literatura latino-americana na Universidade São José, que é uma universidade católica do Líbano, e voltei dez ou doze anos depois, sozinho, e dei uma palestra na American University de Beirute, que é uma grande universidade, e não voltei mais. 

O meu livro saiu [lá]. O primeiro foi Dois irmãos, há mais de dez anos, com uma bela tradução da Safa Jubran, que traduz nos dois sentidos. E agora foi reeditado por uma nova editora, que está se afirmando em Beirute. Mas no mundo árabe saiu uma nova edição de Dois irmãos, e eles vão publicar o Relato de um certo Oriente e todos os meus livros. Eu recebi um convite para ir no ano que vem com o filme do Marcelo Gomes, que eu acabei de ver numa cabine fechada e é lindo. Um filme falado em três línguas, árabe, português e francês, e em língua indígena também. É um belo recorte que o Marcelo Gomes fez do Relato de um certo Oriente e vai se chamar Retrato de um certo Oriente. Esse filme já foi selecionado no Festival de Roterdã, acho que em Beirute eles querem fazer uma sessão, me convidaram, mas eu não sei o que vai acontecer, a região está muito perturbada, nem é o momento para pensar nisso e viajar para lá. É uma tristeza enorme o que está acontecendo .

Paulo Werneck: Esse trânsito cultural com uma guerra dessa tem um impacto em muitas esferas, né? Mas que boa notícia é essa do filme, Milton, que está a caminho. Sua obra também tem rendido belas adaptações. Teve já no ano passado aquele filme que foi lançado na mostra de cinema, O rio do desejo, na televisão — você também levou as suas histórias para um público muito amplo… Como é que foi furar a bolha do mundinho literário?

Milton Hatoum: É, a minissérie da Globo realmente alcançou um público de milhões e milhões de pessoas, mas poucos leram o romance, né? Claro que atraiu muitos leitores, mas Dois irmãos já tinha muitos leitores antes da minissérie. Naquela época, já tinha mais de duzentos mil leitores, acho que tem o dobro já, nem sei mais quantos. Está no vestibular da Fuvest, quer dizer, um livro que furou a bolha, como você disse, mais que os filmes, no sentido desse leitor fora do âmbito universitário, pessoas que gostam de literatura acabaram lendo, estão lendo. Graças também ao movimento de professoras e professores. Então, é um livro muito adotado em escolas e universidades até hoje. Dois irmãos e o Cinzas do Norte são os dois livros mais lidos da minha obra, que é pequena. Não é uma obra de vinte romances.

Paulo Werneck: Poxa, pequena com muitas aspas, né, Milton? Porque eu acho que tem uma grandeza aí que você vem construindo nesse ritmo seu, que eu nunca vi você atormentado, a não ser pelo tormento da escrita, mas com a ânsia de publicação, com a ânsia de divulgação, isso nunca te moveu, né? E aí tem uma obra das mais sólidas que está popular. Como você falou, você ter um público desse não é brincadeira. Parabéns. 

Milton Hatoum: Muito obrigado, eu não mereço tanto, mas eu acho que você ver seu livro sendo lido e discutido e analisado é sempre bom. Eu sempre falo que o grande prêmio de um escritor, de uma escritora, é o leitor, e como o Tchekhov dizia, é o leitor de qualidade, o leitor que lê o livro e pensa em Manaus, na Amazônia, nas relações familiares, nas relações humanas que compõem a verdade possível da literatura. Eu lembro que muitos jovens gaúchos, catarinenses, quando o livro fazia parte da lista do vestibular, foram para Belém, Manaus, alguns foram para o Acre. Eles escreviam para mim dizendo: “Eu fui para a Amazônia depois da leitura do Dois irmãos”. E para você entender a Amazônia,você precisa ir para lá. Você faz essa viagem da imaginação do romance e depois você vai para lá. E, desses jovens, quantos serão os cientistas, antropólogos, vão se empenhar a conhecer profundamente essa região que é muito falada, mas ainda pouco conhecida…

Paulo Werneck: Pouquíssimo conhecida. Nós, brasileiros, não vamos, né? Não é um destino de férias. É claro que tem aqui e ali o pessoal que vai, mas é ridículo como a gente não conhece. 

Milton Hatoum: Daí a importância do Mário de Andrade. Ele poderia ter ido para Paris, para Londres, qualquer lugar. Ele foi para Iquitos, a única cidade estrangeira que ele pisou. Quer dizer, ele foi pelo Nordeste, foi para Belém, Manaus, e chegou a Iquitos. Essa paixão pelo Brasil, essa paixão pela compreensão da nossa história, sabe? Dos povos que compõem a sociedade brasileira, e nisso acho que ele foi, não diria um pioneiro, mas um grande estudioso, e nós não devemos jamais desmerecer a obra do Mário por conta de cobrança. Cada escritor, intelectual, vive na sua época, né? Não vamos banir Coração das trevas, do [Joseph] Conrad, porque há várias frases preconceituosas que têm que ser ditas. A gente tem que entender isso, mas ele é um escritor de 1900.

Paulo Werneck: Sim, e a literatura é um local onde a violência é representada, ela existe, e até como dizia o Nelson Rodrigues, muita gente deixa de fazer aquilo que a gente às vezes lê na literatura. Ele falava que quando uma Madame Bovary trai, muitas senhoras na vida real deixam de fazer, falando com aquela graça do Nelson. Mas para dizer: “Olha, o terror pode existir na literatura”. É um lugar em que a gente pode experimentá-lo de certa maneira, sem que isso nos comprometa.

Milton Hatoum: Sim, e o terror da colonização belga no Congo já está na obra do Conrad, porque Coração das trevas não se refere apenas ao Congo, se refere também a Londres, que é a metrópole imperialista. Quando Marlon termina o relato dele, está escurecendo no rio Tâmisa, onde ele está contando a história. É o crepúsculo também da Inglaterra e da Europa.

Paulo Werneck: E um rio que está seguindo também, né? Como se o mesmo rio tivesse seu curso do Congo até a Grã-Bretanha…

Milton Hatoum: Exatamente. São águas que estão ligadas, águas encontradas num processo de violência, de usurpação, de brutalidade, que sempre veio dos países da Europa, porque o nazismo surgiu em países cristãos, a gente tem que lembrar disso, da Alemanha cristã protestante, da França católica e protestante, que aderiu ao nazismo, da Áustria do fascismo, da Espanha e de Portugal, a gente não pode esquecer. São esses países que estão lá até hoje. As crianças estão morrendo porque esses países não querem cessar-fogo. Gaza continua o laboratório dessas armas que são fabricadas lá nos Estados Unidos, na Europa, no próprio Israel. Virou um laboratório macabro, o mais terrível que nós estamos vendo neste século 21. 

Paulo Werneck: Eu acho que a gente tá no pior momento do século. Então vamos encerrar aqui a nossa entrevista. Queria passar aqui muito tempo falando de literatura e, também, outros temas com você. Muito obrigado pela ótima conversa. 

Milton Hatoum: Valeu, Paulo, muito obrigado. E obrigado a todos da Quatro Cinco Um. Agradeço aos ouvintes.

Paulo Werneck: Valeu, Milton!