Repertório 451 MHz,

A história que só você pode contar

Dois nomes de destaque da literatura brasileira, Socorro Acioli e Stênio Gardel falam da oficina de escrita que deu início a uma grande amizade literária e um romance premiado

24jan2024

Está no ar o 104º episódio do 451 MHz, o podcast da revista dos livros. Neste segundo episódio de 2024, os convidados são os escritores Socorro Acioli e Stênio Gardel — dois destaques da literatura brasileira no ano passado. Neste episódio, os dois falam sobre seus livros e da relação de longa data entre professora e aluno que foi se convertendo numa grande amizade literária e uma interlocução entre dois grandes escritores brasileiros. O episódio foi realizado com apoio da Lei de Incentivo à Cultura.

Percursos

Socorro é jornalista e uma das principais autoras brasileiras contemporâneas. A cabeça do santo, romance que ela publicou pela Companhia das Letras em 2014, foi febre no Brasil, publicado em diversas línguas e está sendo adaptado para o cinema. No ano passado, ela foi estrela da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, como a autora mais vendida de toda a programação com Oração para desaparecer, novo romance também lançado pela Companhia das Letras.

O ano de 2023 também foi especial para Stênio Gardel. Seu livro de estreia, A palavra que resta, também publicado pela Companhia das Letras, teve sua edição em inglês premiada pelo National Book Awards, o prêmio mais importante do mercado editorial norte-americano, na categoria de obra traduzida. Gardel tem uma espécie de vida dupla: ele é especialista em escrita literária — fez, inclusive, cursos com Socorro Acioli —, e trabalha como funcionário público no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. 

Ele percorre o interior ajudando a garantir o direito do voto a todas as pessoas, muitas delas analfabetas. Foi um pouco desse universo que ele trouxe para seu romance publicado em 2021, que vem conquistando cada vez mais leitores mundo afora. A tradução para o inglês premiada foi feita por Bruna Dantas Lobato.

Reconhecimento

“Desde o princípio, só o fato de o livro chegar ao mercado norte-americano, meu primeiro romance, já foi um grande passo e uma surpresa para mim. Em setembro, veio a indicação na lista dos dez semifinalistas do National Book Awards e a trajetória até a premiação foi algo completamente inesperado”, diz Gardel sobre a conquista do prêmio inédito para um autor brasileiro. “Depois, [veio] um sentimento de realização e de muita emoção. Passou a minha vida toda e a do livro lá na frente. E isso apareceu na hora que fiz o discurso chorando, meio fora de controle [risos].”

Socorro Acioli também falou do reconhecimento do mercado norte-americano aos novos autores brasileiros. A cabeça do santo, romance que lançou em 2014 e que está sendo adaptado para o cinema, foi publicado nos Estados Unidos na categoria YA (Young adults) e  foi finalista dos Los Angeles Times Book Prize. “O livro fez uma carreira boa nesse nicho, o que é engraçado porque aqui no Brasil foi publicado como um romance adulto”, disse. “Também saíram teses e dissertações analisando o livro lá.”

      
A palvra que resta, de Stênio Gardel, Oração para desaparecer e A cabeça do santo, de Socorro Acioli

Gardel também refletiu sobre o alcance do seu romance, de como a história de um homem analfabeto que carrega a carta de outro homem por quem se apaixonou no sertão nordestino pode ter chegado a leitores de lugares tão distantes. Para o escritor, essa é a percepção concreta do poder da literatura. 

“Esses personagens, as histórias que eles vivem dizem respeito a tramas muito mais abrangentes do que o mundo deles. É algo que fala de desejos e de sonhos e de frustrações que são comuns a outras pessoas. Eu vivia isso do lado do leitor, mas agora estou podendo perceber isso muito concretamente como autor.’”

À mestra com carinho

Os autores cearenses comentaram a longa ligação entre os dois. Gardel foi aluno de algumas oficinas de escrita da escritora em Fortaleza, durante as quais escreveu a primeira versão do romance. 

“O Stênio tem uma postura de profissional desde que ele era aluno desse curso, em 2013. Ele tem uma postura de autor sério desde que nem sabia se iria publicar. Talvez ele nem acreditasse”, conta Socorro.

“Aprendi demais com a Socorro, não só para os contos e livro que publiquei, mas para minha experiência como autor, aprendi e aprendo demais”, disse Gardel. “O livro foi desenvolvido num dos ateliês que ela fez em Fortaleza, que durou um ano. No final do primeiro módulo, escrevi, durante o primeiro semestre de 2017. O meu projeto foi A palavra que resta. A Socorro foi a primeira pessoa que leu a primeira versão.”

Sobre a origem da história, Gardel conta que em sua atividade no TRE teve a oportunidade de atender eleitores que não sabiam escrever o próprio nome, muitos deles já idosos e idosas. 

“Algo que me marcou muito é que essas pessoas pensavam muito em momentos passados na vida delas, naqueles breves minutos que uma instituição pedia delas um conhecimento que elas não tinham”, disse Gardel. “Foi daí que veio um dos elementos que deu origem à história desse homem que vai aprender a ler depois dos 71 anos para entender uma carta que recebeu cinquenta anos antes.”

Bons leitores

Socorro enfatizou a importância de que, assim como Stênio, os candidatos a escritores sejam bons leitores, se aprofundem nos autores e gênero que querem escrever e não se preocupem apenas com outras questões que envolvem a escrita, como ter uma carreira ou obra publicada. 

“O que eu peço que as pessoas façam é: escreva a história que só você pode contar, seja ela qual for. Não tem como se prever uma fórmula que vá funcionar para um grupo de trinta, vinte pessoas. E tem outra coisa: eu não posso fazer nada, nem nenhum professor de escrita do mundo, por uma pessoa que quer escrever, mas não tem repertório”, disse a autora.

Para Gardel, a frase da então professora sobre escrever a história que só ele poderia contar foi um dos seus maiores incentivos a publicar o primeiro romance. “Essa sua frase eu guardo para mim, ela foi meio que libertadora. Capturei essa frase como se me dizendo: ninguém poderia contar as história que eu tenho pra contar a partir das minhas experiências. Isso me fez acreditar e tirou da minha frente comparações. Me fez perceber que meu texto vai ter a minha vida, tudo que eu vivi até ali”, disse.

Troca de experiências

Os dois escritores também falaram sobre Oração para desaparecer, novo romance de Socorro que se tornou o mais vendido durante a Flip. A escritora contou ter compartilhado a primeira versão da história, que se inspirou numa extensa pesquisa a partir da foto de uma igreja enterrada em Almofala, distrito no interior do Ceará, com um grupo de doze ex-alunos, do qual Gardel faz parte. 

Socorro contou ainda que, como autora, gosta de ler tudo que falam sobre seus livros, inclusive as críticas mais negativas. “Achei uma vez uma crítica sobre A cabeça do santo que dizia: ‘Achei fraco. Dias Gomes faria muito melhor.’ E respondi com toda sinceridade: ‘Eu também acho que o Dias Gomes faria melhor, é lógico que faria.’ E aí a pessoa ficou constrangida, achando que eu tinha sido irônica, sarcástica e não era.”

Crítica literária

Ao falar sobre o momento da crítica literária no país, Socorro contou de uma visita que fez à casa do grande crítico literário Antonio Candido, convidada pela filha do autor, quando conheceu boa parte da sua biblioteca de edições originais de clássicos de Guimarães Rosa e Mário de Andrade, entre outros. 


Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido

“Isso me deu a noção de como a figura do Antonio Candido foi importante para compreender a formação dessa literatura — inclusive é o título do livro dele. Esse deveria ser o papel dos críticos: não apenas colocar uma opinião sobre o livro, mas de qual o lugar daquele livro numa esfera mais ampla. É isso que talvez não compreendam e esperam do crítico só uma opinião de bom ou ruim.”

Mais na Quatro Cinco Um

A palavra que resta, de Stênio Gardel, foi tema de resenha escrita pela escritora Natalia Timerman na Quatro Cinco Um em maio de 2021. “A procura pela palavra é tentativa de elaboração e também busca pela identidade e pela própria história, que se descortinam enquanto assimilação das letras. É assim que o narrador em terceira pessoa vai, aos poucos, entre outros tempos e outras vozes, cedendo espaço à primeira: Raimundo aprende a escrever e vai podendo costurar sua narrativa”, diz a autora de Copo vazio

   
A polícia da memória, de Yoko Ogawa, e Memórias de porco-espinho, de Alain Mabanckou

A premiação do escritor cearense e da tradutora Bruna Dantas Lobato com o National Book Awards também foi destaque na revista dos livros em novembro de 2023, em texto de Matheus Lopes Quirino e Giovana Proença que analisa não só a premiação inédita como a boa fase da literatura brasileira no exterior

“Acredito que a história do meu livro e seus temas podem, assim como tem acontecido com a recepção no Brasil, tocar leitores de vários lugares, criar pontes entre experiências que, mesmo distantes geograficamente, se encontram nos seus traços mais íntimos”, disse o autor em entrevista.

Colaboradora de longa data da Quatro Cinco Um, Socorro Acioli já escreveu sobre livros tão diversos quanto o distópico romance A polícia da memória, da japonesa Yoko Ogawa, e  Memórias de porco-espinho, prosa que recorda o realismo fantástico latino-americano do franco-congolês Alain Mabanckou. 

O melhor da literatura LGBTQIA+

O episódio traz uma dica da Zênite Astra, que é travesti, educadora e autora de Vila Mathusa, publicado pela editora Incompleta. A Zênite indica Viagem solitária: a trajetória pioneira de um transexual em busca de reconhecimento e liberdade, de João W. Nery publicado pela editora Leya em 2011.


Viagem solitária — A trajetória pioneira de um transexual em busca de reconhecimento e liberdade, de João W. Nery  

“João foi uma figura importantíssima para a história LGBT+ do Brasil. Ele ficou conhecido por começar o processo de transição durante a ditadura militar e por ter passado por cirurgias afirmativas de gênero numa época em que esses procedimentos eram ilegais. Também teve destaque como pessoa pública e ativista e serviu de referência para uma geração de pessoas transmasculinas”, diz a educadora.

Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+

O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação Quatro Cinco Um.
Apresentação: Paulo Werneck
Coordenação Geral: Évelin Argenta e Paula Scarpin
Produção: Ashiley Calvo
Edição: Luiza Silvestrini
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: Pipoca Sound
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Bia Ribeiro
Para falar com a equipe: [email protected]