A Terceira Margem do Reno,

Ep 7. Como contar histórias

O crítico literário Erich Auerbach e seu estudo sobre grandes romances realistas franceses do século 19. A história de amor entre Anne Wiazemsky e Jean-Luc Godard na Paris de 68. O Japão visto pela poeta Marion Poschmann e o cenário brasileiro dos cursos

01fev2023

Está no ar o sétimo episódio de A Terceira Margem do Reno, o podcast de literatura em língua francesa e alemã, feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.

Ouça o episódio aqui:

Composto por nove episódios publicados quinzenalmente, o podcast narrado por Paulo Werneck, diretor de redação da Quatro Cinco Um, e Paula Carvalho, editora de podcasts da revista dos livros, trata da literatura em língua francesa e alemã e suas pontes com o Brasil. O episódio conta com participações de Vinicius Farjalla, Marcus Mazzari, Marcelo Rondinelli, Julia Simões e Assis Valente.

Partimos de um dos rios mais importantes da Europa: o Reno, que faz fronteira com a Alemanha e a França, para tratar de temas importantes para o mundo e a literatura. O rio é um ser sem fronteiras, e por isso não vamos nos limitar a elas. Aqui, autores clássicos convivem com os mais contemporâneos, e a única pátria é a língua, a alemã e a francesa, não importando as fronteiras dos Estados nacionais. 

Inspirado pelo título do conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras estórias, de 1962 (hoje no catálogo da editora Global), o podcast é guiado pela pergunta: onde será que fica A Terceira Margem do Reno? Para além das fronteiras nacionais, temporais e geográficas? Poderia estar na literatura? 

Seguimos com a nossa exploração literária tentando entender como se conta uma história. É possível aprender a escrever um romance? Como as narrativas são construídas? Para responder a essas perguntas, vamos dar uma olhada no cenário brasileiro dos cursos de escrita, que afirmam que é possível ensinar as pessoas a escrever suas próprias histórias. Depois, vamos viajar para Istambul, na Turquia, e conhecer um pouco da trajetória de um dos maiores nomes da crítica literária de todos os tempos, o alemão Erich Auerbach, que estudou os grandes romances realistas franceses do século 19. Em seguida, vamos para a conturbada e esfuziante Paris de 1968 para acompanhar o narrador-testemunha da francesa Anne Wiazemsky, que conta sobre o seu relacionamento amoroso com o diretor Jean-Luc Godard no livro Um ano depois. E, por fim, vamos para o Japão visto através do olhar da poeta e ficcionista alemã Marion Poschmann na novela As ilhas dos pinheiros.

Aprendizes de escritores

Até meados do século 18, no contexto literário ocidental, quem sonhasse com uma carreira literária não quebraria a cabeça pensando em como responder a essa pergunta. Até então, a dificuldade inicial era decidir que tipo de história contar — quer dizer, qual o gênero da narrativa. Se uma epopeia, uma tragédia ou uma sátira.

Ao longo desse século, uma porção de coisas começa a desmoronar na Europa: o Antigo Regime, o universalismo e, claro, a poética clássica. A burguesia ascendeu, as cidades cresceram e viraram metrópoles e os costumes mudaram. Nesse momento o contexto para a produção e o consumo de obras literárias já não são as cortes aristocráticas, mas a imprensa, os jornais e as revistas. É nesse meio que surge o gênero do romance realista, uma forma anárquica por natureza, sem preceitos nítidos e sem modelos.

Nos últimos vinte anos assistimos no Brasil a uma pequena epidemia dos chamados cursos de criação literária. As oficinas literárias começaram no país nos anos 60 e 70, se popularizaram nas décadas de 80 e 90 e se consolidaram no imaginário brasileiro nos anos 2000. Os principais polos desse fenômeno, pela quantidade de ofertas, a duração das oficinas e sua importância histórica são Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.  Atualmente, é possível contar dezoito programas específicos de escrita criativa no Brasil, incluindo graduações e pós-graduações lato sensu ou stricto sensu

A maioria desses cursos se encontra nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul. A escritora, poeta e pesquisadora Carolina Zuppo Abed estuda o surgimento dos cursos de escrita literária no Brasil e publicou um artigo bacana sobre o assunto, “Presença da escrita criativa no Brasil”, que saiu em 2021 na revista Revera: escritos de criação literária do Instituto Vera Cruz

O romance monumental 

O tema do romance é tratado por uma das obras mais importantes da crítica literária do século 20: a monumental Mimesis, de Erich Auerbach, cujo subtítulo é “a representação da realidade na literatura ocidental”. Uma nova edição do livro foi lançada em 2020 pela editora Perspectiva, com tradução de George Bernard Sperber e equipe da Perspectiva.

Auerbach nasceu numa rica família judia de Berlim. Ele se formou, primeiro, em direito e combateu na Primeira Guerra, quando foi ferido no pé. Mais tarde, estudou línguas românicas. Dominava mais de uma dezena de línguas, incluindo o hebreu, o grego e o latim, e escreveu um magistral estudo sobre Dante Alighieri, o que lhe garantiu uma posição na Universidade de Marburg em 1929, substituindo o seu mestre Leo Spitzer, outro grande filólogo e crítico literário do século 20. 

Casado e com um filho, Auerbach passou alguns anos em Marburg. Apesar de os judeus terem sido excluídos do serviço público a partir de 1933, ele pôde continuar lecionando por ser veterano da Primeira Guerra. Mas, em 1935, as Leis de Nuremberg o obrigaram a partir para o exílio. Seguindo mais uma vez os passos de Leo Spitzer, ele foi para Istambul, onde deu aulas por onze anos, até se mudar definitivamente para os Estados Unidos.

Curiosamente, Auerbach quase veio parar no Brasil para lecionar na recém-criada Universidade de São Paulo, mas declinou o convite para continuar em Istambul — e chegou a oferecer a vaga para o amigo Walter Benjamin em carta! Foi no exílio que ele escreveu sua obra-prima, Mimesis, composta entre 1942 e 1945, ou seja, no auge das atrocidades nazistas contra os judeus.


Ilustração de Albert Fourié (1885) para Madame Bovary, de Gustave Flaubert

No livro, Auerbach exalta os franceses, escrevendo que “a literatura francesa do século 19 está muito à frente das literaturas dos outros países europeus quanto à apreensão da realidade contemporânea”. Em resumo, o que Stendhal, Balzac e Flaubert realizam é a invenção do romance moderno. Uma vez estabelecida a forma, por assim dizer, arquetípica do romance moderno — cujo exemplo mais refinado é Madame Bovary —, estava preparado o terreno para os experimentos vanguardistas e visionários do século 20, que vão explodir essa forma em Kafka e Thomas Mann, entre outros, além de muitos experimentos formais romanescos ao longo do século passado.

Os loucos anos 60

Imagine como foi ser jovem na Paris de fins dos anos 60, em meio às manifestações de 1968 e a um cenário político e cultural ao mesmo tempo complexo e esfuziante. O cinema, principalmente, apresentava uma série de revoluções formais que marcaram essa geração, em especial os filmes de Jean-Luc Godard, um dos fundadores da Nouvelle Vague, que não seguia uma linearidade clara na narrativa Ele morreu em setembro de 2022 e é relembrado em texto de Cadão Volpato. Os diretores daquele período buscavam usar a técnica como uma forma de estilo. Para eles, um cineasta era, antes de mais nada, um autor, e o filme deveria desafiar as convenções e desconstruir as bases do cinema, ou seja, a lógica narrativa tradicional e a continuidade do espaço e tempo. 

Agora, imagine ser uma jovem de vinte anos vivendo nessa época. Não qualquer jovem, mas uma atriz que protagonizou um dos principais filmes do período — no caso, A chinesa (1967) — e que depois veio a se casar com Godard. É o que conta Anne Wiazemsky em Um ano depois, lançado pela editora Todavia e traduzido por Julia Simões. 

Wiazemsky era filha de um diplomata naturalizado francês que era um príncipe russo que emigrou para a França fugindo da Revolução Russa. E, por causa do trabalho do pai, ela acabou nascendo em Berlim em 1947. Com o passar dos anos, deixou de lado a carreira de atriz e se dedicou à escrita e a dirigir produções audiovisuais. Em 1988, estreou na literatura com o livro de contos Des filles bien élevées [Meninas bem-comportadas], publicado pela prestigiada editora Gallimard. Sua relação com a literatura vem da própria família. A mãe dela era Claire Mauriac, filha de François Mauriac, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura.

Um ano depois não é bem um romance: é uma espécie de fragmento de autobiografia e de segundo volume das memórias iniciadas com Une année studieuse [Um ano estudioso]. A atriz, que se tornou uma romancista bem-sucedida na França, faz nesse livro uma crônica do seu ano com Godard, com quem se casou em 1967: frequentam os debates políticos da juventude universitária, participam de manifestações, fogem da polícia, encontram-se com toda a nata do cinema francês, viajam para Londres para filmar os Rolling Stones, brigam, fazem as pazes, brigam de novo, choram e, um ano depois, terminam para sempre, apesar de só terem se divorciado oficialmente em 1979. 

Mas essa história é narrada segundo as convenções do romance moderno. É uma autobiografia romanesca: o universo daquele ano de 1968 é recriado ficcionalmente — quer dizer, é reencenado com os recursos da ficção, que superam os da memória. É possível saber mais sobre o livro nesta resenha escrita por João Gabriel de Lima na edição 14 da revista.

O livro, lançado originalmente em 2015, foi adaptado para o cinema pelo diretor Michel Hazanavicius, em 2017, sob o título Le Redoutable/O Formidável, com Louis Garrel e Stacy Martin nos papéis principais.
 

Nos passos de Bashô

As ilhas dos pinheiros é uma novela breve da poeta e ficcionista alemã Marion Poschmann, lançada originalmente em janeiro de 2017. O livro foi indicado para prêmios internacionais importantes e está ganhando agora uma primeira edição brasileira pela editora Estação Liberdade, que deve lançá-lo em breve.

A obra narra uma pequena aventura de Gilbert Silvester, um acadêmico pouco excepcional que, certa noite, sonha que a mulher o trai. Ele acorda enfurecido, e, embora sem fundamento, a raiva não passa ao longo do dia. Numa decisão súbita, Gilbert compra uma passagem de avião e parte rumo ao Japão, que nunca visitou.

Essa fuga súbita, no fundo, tem pouco a ver com o sonho sobre a hipotética infidelidade da esposa; é uma fuga da insuficiência da própria vida. Mas sem plano. Em Tóquio, Gilbert caminha sem rumo, entra num restaurante, come, vaga por estações de trem. Alguma coisa precisa acontecer. Então, numa plataforma no metrô, vê um rapaz japonês que parece se preparar para pular nos trilhos. Um suicida. É Yosa. Gilbert intervém. E daí, está formada a dupla que vai dar ensejo para o desenvolvimento da novela.


“O poeta Bashô conversando com viajantes sob a lua cheia” (1891), de Tsukioka Yoshitoshi [The Philadelphia Museum of Art/Art Resource/Scala, Florence]

A certa altura, o livro de Poschmann lança mão de um recurso narrativo clássico: uma forma de contar histórias é repetir simbolicamente outra história. Aqui, é a história das peregrinações de Bashô, poeta japonês do século 17, um dos grandes inovadores do haicai. Gilbert, querendo educar e salvar Yosa, convence o jovem suicida a refazer os passos da viagem que Bashô empreendeu, uma viagem espiritual, quando este abandonou a vida mundana, os amigos, os mecenas e a fama de grande poeta, partindo numa jornada de autoaperfeiçoamento até a baía de Matsushima, com suas ilhotas repletas de pinheiros.

Gilbert e Yosa partem de uma situação espiritual bem diferente da de Bashô. Yosa decepcionou os pais não querendo assumir a lojinha da família; decidiu estudar petroquímica, mas está prestes a levar bomba no fim do curso. Envergonhado, decide se suicidar. Na mochila leva um exemplar de um Manual completo para suicidas. Gilbert, por sua vez, é um acadêmico frustrado. Ambos partem, então, da precariedade, não da abundância e da fama, como Bashô.

Para saber mais sobre o poeta, um dos grandes nomes do haicai, é possível ler um texto escrito pelo poeta Leonardo Fróes, para a edição 35 da Quatro Cinco Um.

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A Terceira Margem do Reno é um podcast feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.
Direção geral: Paulo Werneck
Direção executiva: Mariana Shiraiwa
Coordenação geral e tratamento do roteiro: Paula Carvalho
Pesquisa e roteiro: Bianca Tavolari, Marcela Vieira, Odorico Leal, Paula Carvalho, Paulo Werneck e Willian Vieira.
Produção: Ashiley Calvo
Edição, sonorização, trilha sonora, finalização e mixagem: André Whoong
Direção de locução: Tiê
Arte: J. Miguel
Design gráfico: Giovanna Farah e Isadora Bertholdo
Distribuição: Rádio Novelo / Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Comunicação: Gabriela Valdanha
Gravado com o apoio técnico do estúdio Rosa Flamingo.   
Na ordem, foram lidos trechos das seguintes obras: “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, que faz parte do livro Primeiras estórias, que saiu pela editora Global; Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de Erich Auerbach, publicado pela editora Perspectiva com tradução de George Bernard Sperber e equipe da Perspectiva; Um ano depois, de Anne Wiazemsky, lançado pela editora Todavia e traduzido por Julia Simões; e As ilhas dos pinheiros, de Marion Poschmann, que vai ser lançado pela editora Estação Liberdade com tradução de Marcelo Rondinelli.
As informações sobre o cenário dos cursos de escrita criativa no Brasil foram tiradas do artigo “Presença da escrita criativa no Brasil”, da escritora, poeta e pesquisadora Carolina Zuppo Abed, que saiu em 2021 na revista Revera: escritos de criação literária do Instituto Vera Cruz.