A Terceira Margem do Reno,

Ep 4. Pôr o coração à prova

A família de Annie Ernaux, Didier Eribon e W. G. Sebald. O sexo e o erotismo de Mário de Andrade. Como se relacionar na modernidade segundo Leif Randt. Poemas sobre amor e sexo de Bertolt Brecht e Heirinch Heine também para entrar no clima

21dez2022

Está no ar o quarto episódio de A Terceira Margem do Reno, o podcast de literatura em língua francesa e alemã, feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.

Ouça o episódio aqui:

Composto por nove episódios publicados quinzenalmente, o podcast narrado por Paulo Werneck, diretor de redação da Quatro Cinco Um, e Paula Carvalho, editora de podcasts da revista dos livros, trata da literatura em língua francesa e alemã e suas pontes com o Brasil. O episódio conta com participações de Ricardo Domeneck, Marília Garcia, Eliane Robert Moraes e André Vallias.

Partimos de um dos rios mais importantes da Europa: o Reno, que faz fronteira com a Alemanha e a França, para tratar de temas importantes para o mundo e a literatura. O rio é um ser sem fronteiras, e por isso não vamos nos limitar a elas. Aqui, autores clássicos convivem com os mais contemporâneos, e a única pátria é a língua, a alemã e a francesa, não importando as fronteiras dos Estados nacionais. 

Inspirado pelo título do conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras estórias, de 1962 (hoje no catálogo da editora Global), o podcast é guiado pela pergunta: onde será que fica A Terceira Margem do Reno? Para além das fronteiras nacionais, temporais e geográficas? Poderia estar na literatura? 

Nossa viagem literária aborda neste episódio como a família surge nos livros O lugar, de Annie Ernaux, Retorno a Reims, de Didier Eribon, e Austerlitz, do alemão W. G. Sebald. O sexo e o erotismo surgem em duas obras importantes de Mário de Andrade que têm relação com a cultura alemã: Macunaíma e Amar, verbo intransitivo. O amor e o sexo também vão aparecer com uma faceta bem contemporânea no romance Allegro Pastell, de Leif Randt. Poemas sobre amor e sexo escritos por Bertolt Brecht e Heinrich Heine também surgem ao longo do episódio. 

O lugar da família

O lugar, de Annie Ernaux, traduzido por Marília Garcia e publicado pela editora Fósforo, e Retorno a Reims, de Didier Eribon, traduzido por Cecilia Schuback e publicado pela Âyiné, são livros exemplares do que se tem chamado de romance autoficcional. Muito diferente da proposta de uma biografia que seja fiel às descrições e às passagens da vida do autor, na autoficção o narrador encara a escrita como algo que pode modificar, recriar e inventar a realidade. Quem a narra é o próprio autor ou autora, e, por isso, a história é permeada por questões subjetivas, do inconsciente, uma vez que ele ou ela é testemunha da própria vida. No caso de Ernaux e Eribon, as narrativas se voltam para o período da infância e da adolescência. 

  

Os dois livros, apesar de muito diferentes, têm fortes semelhanças, como a relação com os familiares e, principalmente, a difícil relação com o pai. A família aqui não é exaltada ou homenageada, mas complexificada. É a partir dela que os autores recriam o ambiente das questões que causaram impacto significativo em suas vidas. Não é à toa que vários teóricos da psicanálise, da filosofia e da literatura dedicam tanta importância ao tema da família. É aí, afinal, que nossa jornada começa.

Em O lugar, já abordado no segundo episódio deste podcast, a autora recria o próprio contexto familiar no vilarejo francês de Y…, onde nasceu em 1940. As cenas são revividas, as fotos, detalhadas, e a narrativa vai criando condições para que o leitor identifique os problemas da relação entre o pai e a mãe, ele e a filha; enquanto isso, o pai assume uma posição diametralmente oposta à ascensão cultural, e, consequentemente, social, da filha. 

Eleito o melhor livro de ficção de 2021 pelos colaboradores da Quatro Cinco Um, O lugar foi resenhado duas vezes na revista: por Natalia Timerman, na edição 52, e por Antonio Mammi, na edição 45

Essa escrita íntima e ao mesmo tempo distanciada inspirou Eribon a compor Retorno a Reims. Ele diz que, em Ernaux, reconhece o que viveu na infância e na adolescência, sobretudo a ascensão de classe que o separou dos pais.

Ao contrário de Ernaux, que se propõe a uma narrativa simples, com frases sem pretensões filosóficas, Eribon traça sua revisão tomando o pano sociológico como base. A sua história vai servir de base para um estudo de classe e de pontos de vista políticos. Homossexual, convivendo com um pai homofóbico, reconhece que ele mesmo tem um sentimento de aversão pelas classes populares representada por seus pais. O sentimento o acompanha com uma carga de culpa e, ao longo do livro (e da própria vida), o autor tenta desvendar suas causas: “como lidar com nossa relação com uma história da qual nos envergonhamos?”. E esse parece ser o gatilho disparador da história nele resgatada.

O nosso colunista Paulo Roberto Pires escreveu sobre a obra de Eribon na edição 37 da revista dos livros. 

Ela recebeu uma adaptação diferente e interessante no documentário Retorno a Reims (Fragmentos), de Jean-Gabriel Périot, lançado em 2021, e recentemente exibido no Brasil na Mostra Ecofalante.

Um dos melhores livros do século 21

Ganhador do prêmio National Book Critics Circle Award e o quinto mais votado, em 2019, como um dos cem melhores livros do século 21, em lista divulgada pelo jornal britânico The Guardian, Austerlitz, de W. G. Sebald, traz como personagem central Jacques Austerlitz, homem solitário e de poucos amigos.

Na obra, traduzida por José Marcos Mariani de Macedo e editada pela Companhia das Letras, o protagonista trava longos diálogos com o narrador anônimo, que aparentemente é um dos seus poucos interlocutores. Os encontros entre ambos acontecem de forma casual. Suas conversas vão se moldando à narrativa de forma indireta. Austerlitz é um personagem cheio de mistério, e que, a princípio, centra os temas de seus longos discursos exclusivamente em observações relativas ao ambiente externo. Essa estratégia é um recurso defensivo para tratar as suas fragilidades psicológicas. 

Aos poucos, com a amizade se estabelecendo com o interlocutor, Austerlitz revela aspectos que o afligem, relativos ao seu passado. Por trás desse mistério temos um personagem angustiado diante de um passado lacunar, pois ele desconhece dados de sua própria história. A busca pela identidade, porém, é ampla, e traz ricas especulações sobre a língua e a linguagem, a razão e a memória, e até mesmo sobre a paisagem e as impressões que ela nos provoca.

Livre de pudores

O escritor Mário de Andrade mostra uma relação com a cultura alemã seja usando trechos inteiros do mito de Makunaimã como registrados pelo viajante alemão Theodor Koch-Grünberg no início do século 20 em seu clássico Macunaíma, de 1928, seja colocando como uma das protagonistas de Amar, verbo intransitivo: idílio a professora de alemão Elza, chamada no livro de Fräulein.

Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, é um personagem complexo, capaz de transmutação, e que se funde a elementos da natureza quando lhe convém. Ele é de uma esperteza e de uma malandragem sem igual, sabendo tirar proveito das situações a seu favor. É uma das figuras mais emblemáticas da literatura brasileira. É também uma figura sem pai.

Diferentemente das obras de Ernaux, Eribon e Sebald, Mário de Andrade constrói um personagem livre de pudores, que goza de uma identidade totalmente desprovida de questões morais. Esse é um traço muito marcante da sua personalidade e que o distingue, por exemplo, dos próprios irmãos. Macunaíma é retratado como alguém com bastante curiosidade pelo universo feminino, tanto que se engraça com as namoradas dos irmãos.

Apesar de ser um dos personagens mais emblemáticos da literatura brasileira, Macunaíma é alvo de várias críticas, especialmente de autores e artistas indígenas, como Cristino Wapichana, que explicou na edição 49 da Quatro Cinco Um como Mário de Andrade reforçou nesse livro o sentimento anti-indígena dos brasileiros, que quase um século depois persiste. 

É possível saber mais sobre a história indígena que inspirou o personagem de Mário de Andrade no livro Makunaimã: o mito através do tempo, publicado pela Elefante, com textos de Taurepang, Macuxi, Wapichana, Marcelo Ariel, Mário de Andrade, Deborah Goldemberg, Theodor Koch-Grünberg e Iara Rennó, dramaturgia de Deborah Goldemberg, contribuições à dramaturgia de Marcelo Ariel e ilustrações de Jaider Esbell. A peça teatral traz as vozes indígenas pemon, taurepang, wapichana e macuxi, povos herdeiros de Makunaimã, que retomam para si o Macunaíma estereotipado de Mário de Andrade, misturando histórias e culturas indígenas diferentes para compreender a formação do povo brasileiro, a partir do nosso sagrado.

Macunaíma também ganhou uma famosa adaptação cinematográfica feita por Joaquim Pedro de Andrade, tendo Grande Otelo e Paulo José no papel de Macunaíma.

Em Amar, verbo intransitivo, de 1927, Sousa contrata Fräulein, uma alemã de 35 anos, para dar aulas de alemão ao filho, um dos protagonistas da obra, que tem quinze anos. Porém, a real intenção dele, que tem o consentimento de Fräulein, é iniciar o filho na arte do amor. Nesse livro, diferente de Macunaíma, Carlos será o tempo todo supervisionado, primeiro pelo pai, e depois pela mãe, que tomará conhecimento, a contragosto, do tipo de serviço que a governanta exerce em sua casa burguesa.

Amor líquido

O romance contemporâneo Allegro Pastell, do alemão Leif Randt, autor que é considerado por alguns críticos como um dos melhores de sua geração, foi escrito entre 2018 e 2019 e lançado no Brasil em 2021 pela editora Class, traduzido por Raquel Ribas Meneguzzo e Michael Korfmann. O livro traz temáticas e personagens que falam bastante sobre nossa época. Nele, os jovens Tanja Arnheim e Jerome Daimler vivem uma história de amor à distância, mediada pelas redes sociais e alimentada por e-mail e mensagens de texto via WhatsApp, iMessage e Telegram.

Tanja é uma jovem escritora, de trinta anos, que vive em Berlim. Jerome, de 35 anos, é web designer e vive em Maintal, a cerca de 550 quilômetros da capital alemã. Tudo na vida de Tanja e Jerome parece bem administrado e monitorado com excessiva clareza. As questões psicológicas, a plena consciência de seus próprios comportamentos, as traições — que conseguem justificar para si mesmos com argumentos que tiram qualquer culpa deles —, a vida noturna e o uso de álcool e drogas — enfim, tudo, até o amor, se desenrola dentro de um certo controle.

Allegro Pastell aborda um tempo presente bastante conhecido dos leitores contemporâneos: relacionamentos mediados pelos canais de comunicação, que permitem experimentar uma segunda camada da relação, uma outra natureza do contato, que também é cheia de inseguranças e suposições diante de interpretações do não dito — ou do não respondido, caso o interlocutor demore muito para responder. Porém, essa forma de comunicação do relacionamento não é menos verdadeira que a do contato físico, pois ela existe com seus próprios subentendidos.

Poesia

Os poemas lidos ao longo do episódio são de autoria de Bertolt Brecht e Heinrich Heine. Quem fez a leitura foi André Vallias, que publicou a tradução nas antologias Bertolt Brecht: poesia e Heine hein?: poeta dos contrários pela editora Perspectiva, edições bilíngues desses autores alemães.

   

Vallias foi convidado do podcast 451 MHz, junto com o crítico literário Kelvin Falcão Klein, para falar sobre Bertolt Brecht. O livro de poemas do dramaturgo alemão, traduzido por Vallias, também foi resenhado por Falcão Klein na edição 32.

****

Para colaborar com a realização dos podcasts da Quatro Cinco Umfaça uma assinatura Ouvinte Entusiasta: com R$ 20 por mês, você nos ajuda e em troca recebe acesso completo ao site e ao nosso clube de benefícios.

****

A Terceira Margem do Reno é um podcast feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.
Direção geral: Paulo Werneck
Roteiro: Marcela Vieira
Coordenação geral e tratamento do roteiro: Paula Carvalho
Produção: Ashiley Calvo, com apoio de Mariana Shiraiwa
Edição, sonorização, trilha sonora, finalização e mixagem: André Whoong
Direção de locução: Tiê
Arte: J. Miguel
Coordenação digital: Rádio Novelo, com Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Distribuição: Rádio Novelo
Gravado com o apoio técnico do estúdio Rosa Flamingo.
Na ordem, foram lidos trechos das seguintes obras: “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, que faz parte do livro Primeiras estórias, que saiu pela editora Global; o poema “Acreditava”, de Heinrich Heine, presente em Heine hein?: poeta dos contrários, da editora Perspectiva, traduzido por André Vallias; O lugar, de Annie Ernaux, lançado pela editora Fósforo, com tradução de Marília Garcia; Retorno a Reims, de Didier Eribon, publicado pela editora Âyiné e traduzido por Cecilia Schuback; “O rapaz”, de Heinrich Heine, que está em Heine hein?: poeta dos contrários; Austerlitz, de W. G. Sebald, editado pela Companhia das Letras e traduzido por José Marcos Mariani de Macedo; “Por séculos”, de Heinrich Heine, que se encontra na edição anteriormente citada; “Prefácio inédito escrito imediatamente depois de terminada a primeira versão, 1926”, de Mário de Andrade, presente na edição de 2017 de Macunaíma da editora Ubu; “Soneto número 11 — Do gozo dos homens casados”, em Bertolt Brecht: poesia, da editora Perspectiva, com tradução de André Vallias; Allegro Pastell, de Leif Randt, publicado pela editora Class, com tradução de Raquel Ribas Meneguzzo e Michael Korfmann; e o poema “Canção de amor de um tempo ruim”, de Bertolt Brecht, na edição já mencionada.