A Terceira Margem do Reno,

Ep 1. Aquele que viaja não deveria ter túmulo

Albert Camus no Brasil, Alexander von Humboldt na América do Sul, Micheliny Verunschk e as crianças indígenas levadas pelos naturalistas Spix e Martius e o retorno de Dany Laferrière ao Haiti

09nov2022

Está no ar o primeiro episódio de A Terceira Margem do Reno, o podcast de literatura em língua francesa e alemã, feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.

Ouça o episódio aqui:

A Terceira Margem do Reno

Composto por nove episódios publicados quinzenalmente, o podcast narrado por Paulo Werneck, diretor de redação da Quatro Cinco Um, e Paula Carvalho, editora de podcasts da revista dos livros, trata da literatura em língua francesa e alemã e suas pontes com o Brasil. O episódio conta com participações de Vinicius Farjalla, Vanessa Massoni, Magdalena Nowinska, Micheliny Verunschk e Luciana Villas Bôas.

Partimos de um dos rios mais importantes da Europa: o Reno, que faz fronteira com a Alemanha e a França, para tratar de temas importantes para o mundo e a literatura. O rio é um ser sem fronteiras, e por isso não vamos nos limitar a elas. Aqui, autores clássicos convivem com os mais contemporâneos, e a única pátria é a língua, a alemã e a francesa, não importando as fronteiras dos Estados nacionais. 

Inspirado pelo título do conto A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras estórias, de 1962 (hoje no catálogo da editora Global), o podcast é guiado pela pergunta: onde será que fica A Terceira Margem do Reno? Para além das fronteiras nacionais, temporais e geográficas? Poderia estar na literatura? 

Começamos nossa exploração literária pelo tema das viagens. Neste primeiro episódio vamos conhecer um pouco da trajetória do cientista alemão Alexander von Humboldt pelos olhos dos escritores contemporâneos alemães Andrea Wulf e Daniel Kehlmann. Da escritora Micheliny Verunschk e das crianças indígenas levadas a Munique, no século 19, pelos naturalistas Johann Spix e Carl von Martius. Das aventuras de Albert Camus no Brasil no fim da década de 40 e do retorno do escritor Dany Laferrière ao seu Haiti natal depois de vinte anos no exílio.

Alexander von Humboldt pelos olhos de Andrea Wulf e Daniel Kehlmann

O cientista Alexander von Humboldt (1769-1859) nasceu em Berlim e foi um dos maiores fenômenos editoriais da história alemã. Ele se tornou talvez o segundo homem mais famoso de seu tempo, atrás apenas de Napoleão. Seus escritos mesclam dados científicos com um viés mais literário, e devemos ao naturalista o conceito atual de natureza. Ele fez viagens à América do Sul, dos Andes às regiões amazônicas, mas não pôde adentrar o território brasileiro por não ter conseguido autorização oficial. 

        
A biografia A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt, de Andrea Wulf, e a biografia ficcionalizada A medida do mundo, de Daniel Kehlmann

A figura de Humboldt continua a fascinar até hoje. Tanto que ele foi tema de dois livros contemporâneos publicados em alemão: o primeiro é a biografia A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt, de Andrea Wulf, traduzido por Renato Marques e lançado por aqui pelo selo Crítica da editora Planeta. O outro é a biografia ficcionalizada A medida do mundo, de Daniel Kehlmann, traduzida por Sonali Bertuol e lançada pela editora Companhia das Letras.

Em 2014, quando todos os diários de Humboldt vieram à tona, a biógrafa Andrea Wulf se apaixonou pelo personagem. E se debruçou sobre as mais de 4 mil páginas de textos e desenhos do naturalista. O que ela encontrou foram descrições de paisagens precisas mas cheias de poesia e causos de viagens dignos de um livro de aventura. Ela escreve que Humboldt viajou para a América do Sul como cientista e retornou como pensador visionário e também como artista. 

A própria escrita de A invenção da natureza, que se tornou um best-seller mundial, foi uma aventura. Andrea Wulf visitou os pontos mais importantes das viagens de Humboldt, inclusive escalando o monte Chimborazo (que hoje fica no Equador). É possível acessar aqui um tuíte de 2018, com uma foto dela, emocionada, vendo pela primeira vez ao vivo os diários, e não a versão digital!

Humboldt também virou personagem de ficção. A medida do mundo, de Daniel Kehlmann, traz, na verdade, o encontro entre ele e o matemático Carl Friedrich Gauss em uma convenção de cientistas, em Berlim. Os dois são completos opostos. Humboldt teve uma educação clássica, vem de uma família aristocrática e ama viajar. Já Gauss é um homem mais provinciano que não suporta a ideia de sair por aí conhecendo o mundo. Apesar disso, um complementa o conhecimento do outro.

Segundo o próprio Kehlmann, o livro é uma “sátira agressiva sobre como ser alemão”, e as diferenças entre os dois personagens mostram exatamente isso. Ainda que seja considerado um romance histórico, A medida do mundo é descrito pelo autor, que estudou literatura e filosofia, como um “romance contemporâneo ambientado no passado”. O espírito da narrativa é de como se um historiador respeitado tivesse enlouquecido. O livro fez tanto sucesso que virou filme na Alemanha, em 2012.


Encontros escritos: semântica histórica do Brasil no século 16, de Luciana Villas Bôas

Quer saber mais sobre os relatos de viajantes alemães na história do Brasil? É possível ler Encontros escritos: semântica histórica do Brasil no século 16, de Luciana Villas Bôas (uma das convidadas do episódio), que saiu em 2019 pela Editora da UFRJ e foi resenhado por André Cabral na edição 43 da revista dos livros. 

Iñe-e e Juri

O som do rugido da onça, livro da escritora pernambucana Micheliny Verunschk, lançado em 2021 pela Companhia das Letras, começou com um espanto. Ela estava numa exposição e se deparou com imagens de crianças indígenas — uma da etnia miranha e outra da juri — que a impactaram. 


O som do rugido da onça, livro da escritora pernambucana Micheliny Verunschk

Essas imagens estão na exposição Brasiliana Iconográfica, em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo.


Miranha, de Johann Baptist von Spix e Carl von Martius (1823)


Iuri, de Johann Baptist von Spix e Carl von Martius (1823)

Tocada pelas figuras e sentindo falta de obter mais informações sobre a trajetória dessas crianças, Verunschk fez uma extensa pesquisa histórica e de campo, assim como se valeu da imaginação para pensar na trajetória delas.

Entre 1817 e 1820, o naturalista Carl von Martius viajou por mais de 14 mil quilômetros Brasil adentro na companhia do zoólogo Johann Baptist von Spix. Em três anos, eles recolheram uma grande quantidade de informações, além de minerais e espécimes da fauna e da flora, objetos de várias culturas indígenas e relatos sobre a vida desses povos, que foram enviados para a Europa. Ainda levaram com eles, em um barco para Munique, quatros crianças indígenas: três da etnia Miranha e o pequeno Juri. As crianças tiveram um fim trágico. Duas morreram na travessia de barco, e uma garota miranha e Juri, que não falavam a mesma língua, morreram alguns meses depois de chegarem à Alemanha, de complicações de saúde.

Pouco se sabe sobre o que elas pensaram ao serem tiradas da sua terra e levadas para um mundo completamente diferente. Verunschk se debruçou sobre a história desses viajantes no Brasil e reconstruiu a viagem pelo olhar da garota miranha, que no livro se chama Iñe-e. Na ausência de relatos escritos e de fontes oficiais, com a versão das vítimas sobre os fatos, a escritora recorreu à imaginação para fazer literatura.

Spix e Martius são mais conhecidos no Brasil por publicações como Flora Brasiliensis e Viagem pelo Brasil. A Flora Brasiliensis foi produzida entre 1840 e 1906 por Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, com a participação de 65 especialistas de vários países. A obra, que contém a taxonomia de 22.767 espécies, é formada por quinze volumes, dividida em quarenta partes, com um total de 10.367 páginas. Ela pode ser consultada on-line no site do projeto de digitalização da obra.

Uma edição de 1940 de Viagem pelo Brasil, lançada originalmente em 1817, pode ser baixada no site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, contendo, inclusive, as imagens da garota miranha e do menino juri.

Martius também registrou vocábulos de vários indígenas e compilou-os nos Glossários de diversas línguas e dialetos, que falam os índios no império do Brasil (1863) e na Contribuição para a etnografia e linguística da América, especialmente do Brasil (1867).

Ele ainda foi responsável por influenciar o modo como a história do Brasil é, de alguma forma, contada até hoje, ao dividi-la por “raças”, a branca, a negra e a indígena. Com “Como se deve escrever a História do Brasil”, ganhou o concurso instituído pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), na década de 1840, justamente sobre como se deveria escrever a história do país que tinha se tornado independente havia menos de vinte anos.

“Semana Camus”

Em 1949, Albert Camus, um dos grandes nomes da literatura do século 20, esteve na América do Sul por dois meses, onde visitou Rio de Janeiro, Recife, Olinda, Salvador, São Paulo, Iguape (SP), Porto Alegre, Argentina, Uruguai e Chile. Os diários de sua viagem estão no livro Camus, o viajante, coletânea pela editora Record, com tradução de Sérgio Milliet, Valerie Rumjanek e Clóvis Marques, lançado em 2019 durante a celebração dos cinquenta anos da viagem do autor ao Brasil, reunindo tudo o que ele escreveu sobre o país.


Camus, o viajante reúne diários de Albert Camus escritos durante sua viagem de dois meses pela América do Sul, em 1949

Camus foi recebido com pompa e disputado a tapas por intelectuais brasileiros. Todos queriam um pedaço do grande pensador. Dias após a partida dele, o jornalista Luis Martins publicou no jornal O Estado de S. Paulo uma crítica à recepção brasileira ao escritor. Ele disse que tinha sido ridícula essa espécie de “semana Camus”, com briguinhas de namorados, porque “Fulano quer monopolizar Camus sem deixar nem um tiquinho pra gente”.

Abdias do Nascimento, um dos principais intelectuais brasileiros e fundador do Teatro Experimental do Negro, relembrou, em texto publicado em 29 de maio de 2011 no caderno Ilustríssima da Folha de S.Paulo, o dia em que levou Camus à gafieira Elite, no centro do Rio. “Ele aplaudiu os bailados afro-brasileiros de Mercedes Batista, ensaiou dançar o samba, ouviu a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura e assistiu à Fausta apresentando o frevo pernambucano”, escreveu Abdias. 


O exílio e o reino traz um conto de Camus ambientado no Brasil

Camus também escreveu um conto ambientado no Brasil: “La pierre qui pousse”, traduzido como “A pedra que cresce” por Valerie Rumjanek, que está presente no livro O exílio e o reino, publicado no Brasil pela Record. A história acontece em Iguape, durante os festejos do Bom Jesus, o santo padroeiro da cidade. Ao chegar no local, um engenheiro francês encontra um homem negro pobre, que havia prometido carregar uma enorme pedra com o objetivo de agradecer um milagre recebido do Bom Jesus. 

O Haiti sonhado e o Haiti real

País sem chapéu, do escritor haitiano Dany Laferrière, foi publicado originalmente em francês em 1996, traduzido no Brasil por Heloisa Moreira e lançado pela Editora 34. É um misto de relato de viagem, diário pessoal, caderno de anotações e crônicas cotidianas. É um livro especial, porque trata da viagem de retorno, mais especificamente do retorno do exílio, dividido entre um país sonhado e um país real, em que elementos fantasiosos e reais se misturam. 


País sem chapéu, do escritor haitiano Dany Laferrière, trata da viagem do retorno do exílio, dividido entre um país sonhado e um país real

O autor nasceu no Haiti e aos 23 anos emigrou para o Canadá. Era um exílio: fugia do governo de François Duvalier, conhecido por Papa Doc, o ditador por trás de uma série de assassinatos de opositores, entre eles um grande amigo de Laferrière. À época, ele era um jovem jornalista. O pai, que foi perseguido pela ditadura, já havia se exilado em Nova York. Laferrière até hoje vive em Montreal e, diante dos acontecimentos de 2020 (um terremoto que deixou ao menos 304 mortos e o assassinato do presidente Jovenel Moïse), comentou que “sobre o Haiti não tenho nada a dizer”. Em 2013, aos sessenta anos, foi o mais jovem da história eleito para a Academia Francesa

Um conceito importante para pensar a obra de Laferrière e muitos outros artistas, escritores e intelectuais é o de crioulização, usado por pensadores caribenhos, como o martinicano Édouard Glissant (1928-2011), para abarcar tudo o que não é limitado por barreiras e definições impostas de fora. Tudo o que é poroso, aberto a culturas diversas, a contrastes e contradições, numa lógica que desafia o olhar domesticado do outro. Essa ideia se mostrou presente na 34ª Bienal de Arte de São Paulo, em 2021, que teve Glissant como uma das referências conceituais da exposição, além de expor alguns textos e manuscritos de sua autoria. 

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A Terceira Margem do Reno é um podcast feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.
Direção geral: Paulo Werneck
Roteiro: Willian Vieira
Coordenação geral e tratamento do roteiro: Paula Carvalho
Produção: Ashiley Calvo, com apoio da Mariana Shiraiwa
Edição, sonorização, trilha sonora, finalização e mixagem: André Whoong
Direção de locução: Tiê
Arte: J. Miguel
Coordenação digital: Rádio Novelo, com Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Distribuição: Rádio Novelo
Gravado com o apoio técnico do estúdio Rosa Flamingo.
Na ordem, foram lidos trechos das seguintes obras: “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, que faz parte do livro Primeiras estórias, que saiu pela editora Global; A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander Von Humboldt, de Andrea Wulf, com tradução de Renato Marques e lançado pelo selo Crítica da editora Planeta; A medida do mundo, de Daniel Kehlmann, traduzido por Sonali Bertuol e lançado pela Companhia das Letras; O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, publicado pela Companhia das Letras; Camus, o viajante, coletânea dos textos de Albert Camus sobre suas viagens pelo Brasil da editora Record, com tradução de Sérgio Milliet, Valerie Rumjanek e Clóvis Marques; “Telefonema”, de Oswald de Andrade, publicado no jornal Correio da Manhã de 26 de julho de 1949; e País sem chapéu, de Dany Laferrière, traduzido por Heloisa Moreira e publicado pela Editora 34.