Quatro Cinco Um,

Cocô com PhD

Especialistas fazem recomendações de leitura sobre um assunto que não sai da cabeça do presidente

16ago2019

Nas últimas semanas, o presidente da República Jair Bolsonaro deixou a nação perplexa com declarações sobre assuntos variados, que tinham sempre o cocô como protagonista.

Ao citar medidas que poderiam ser tomadas para preservar o meio ambiente, sugeriu que os brasileiros passem a defecar dia sim, dia não. Dias depois, afirmou que “cocozinho petrificado de índio” bloqueia o licenciamento de obras. Em visita à cidade de Parnaíba, no Piauí, onde foi para inaugurar uma escola que leva seu nome, Bolsonaro discursou para simpatizantes e disse que vai “acabar com o cocô do Brasil. O cocô é essa raça de corruptos e comunistas”.

A obsessão fecal do presidente tornou-se assunto de analistas políticos, caiu na boca do povo e periga se tornar questão de Estado. Elio Gaspari escreveu em sua coluna publicada na Folha de S.Paulo e no jornal O Globo que Bolsonaro “prefere ver os brasileiros discutindo cocô em vez do cheiro de uma recessão na economia”.

A revista dos livros reuniu aqui algumas obras que, de perspectivas variadas — da fábula à divulgação científica, da literatura europeia à autoajuda — focalizam o cocô e suas metáforas em nossa sociedade. Pedimos perdão, não queremos trazer baixaria para o debate — e sim elevar o nível. E, afinal de contas, alguém tem que fazer o trabalho sujo.

Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela
Werner Holzwart & Wolf Erlbruch
Tradução de Heloisa Jahn
Companhia das Letrinhas. 24 pp. R$ 39,90

Um dos mais sensacionais livros já publicados em todos os tempos, este é um grande hit das bibliotecas infantis. Não é de hoje que o cocô é um tema caro às crianças — o que é de hoje, na verdade, é que ele seja um tema caro ao presidente da República. 

A história está resumida no título: um dia, uma toupeira acorda dentro de sua toca com um vistoso cocô em seu cocuruto. Indignada, ela sai para a superfície e passa a examinar o traseiro de diferentes animais — coelho, cabra, elefante, boi, cavalo… — para saber quem obrou em sua cabeça. Para o leitor, a diversão é comparar os diferentes formatos que a toupeira vê despencar — bolinhas, maçarocas — e também os barulhos que cada um faz, vertidos para o português com maestria pela tarimbada Heloisa Jahn — ra-ta-tá, plumpidiplum, shlump, chlaft, splassht, truque-truque, plinc. 

Mas o livro do alemão Wolf Erlbruch é um clássico que, como tal, admite diferentes leituras. À luz da era que vivemos, a historinha se nos mostra como uma fábula política sobre a indignação a esmo, o desejo de procurar culpados a torto e a direito e a incapacidade de tirar merda da cabeça.

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (‘o caso Dora’) e outros textos
Sigmund Freud
Tradução de Paulo César de Souza
Companhia das Letras. 410 pp. R$ 74,90 

O ensaio do pai da psicanálise é recomendado ao presidente pela psicanalista e colaboradora da Quatro Cinco Um Maria Rita Kehl. “Quem sabe o capitão reformado que tenta presidir o Brasil possa ilustrar seu interesse pelos fenômenos ligados ao cocô com a leitura de pelo menos um trecho de ‘A sexualidade infantil’ de Sigmund Freud”, disse ela à reportagem. “Nesse texto já muito conhecido, não só entre analistas, o criador da psicanálise menciona a fase do desenvolvimento em que as crianças ficam obcecadas por todos os assuntos relacionados à expulsão das fezes. O sintoma mais comum é a retenção, a dificuldade de deixar o cocô ir embora. Não é o que parece, no caso do capitão. Quem sabe ele não sofra de constantes diarreias verbais?”

A psicanalista observa que “ainda há, entre o número decrescente de seus admiradores, quem confunda este sintoma com ‘espontaneidade’. Bem: nem todas as pessoas espontâneas revelam tão imenso repertório escatológico (em bom português: nem todos falam tanta merda)”.

Os 120 dias de Sodoma
Marquês de Sade
Tradução de Rosa Freire d’Aguiar
Penguin Companhia. 508 pp. R$ 39,90

Escrito na prisão pelo pornógrafo que deu origem à palavra sadismo, durante séculos editado e lido na clandestinidade, o clássico da literatura libertina foi filmado por Pasolini e chegou ao século 21 consagrado, publicado nas mais prestigiosas coleções internacionais, da Pléiade francesa à Penguin Clássicos no Brasil. 

Para uma das maiores especialistas em Sade, a crítica literária Eliane Robert Moraes, no entanto, Bolsonaro “não merece” ler Os 120 dias. Para ela, o presidente usa a escatologia para fazer justamente o contrário do que a obra libertária (e libertina) do marquês promete fazer com o leitor. “Os 120 dias de Sodoma compõem a maior ficção sobre a liberdade humana que jamais existiu. Para compreender esse livro é preciso saber o que é ‘ficção’ e também o que é ‘liberdade’, no sentido mais profundo desses termos. A assustadora falta de cultura de Bolsonaro aliada ao seu horror à liberdade o tornam absolutamente inapto a essa leitura. A bem da verdade, ele não merece mesmo os biscoitos finos da literatura.”

Rosa Freire d’Aguiar resumiu a história do livro em ensaio publicado na Quatro Cinco Um: “Para quem não se lembra do ‘relato mais impuro que jamais foi feito desde que o mundo existe’, Os 120 dias se situa pouco depois da morte de Luís 14, em 1715. O quarteto formado por um duque, seu irmão bispo, um magistrado e um banqueiro instala-se num castelo isolado na Floresta Negra, na companhia de quatro alcoviteiras, oito meninas e oito meninos na adolescência, oito homens ‘dotados de membros monstruosos para as volúpias da sodomia’, e quatro criadas (sim, Sade tem uma curiosa predileção pelos múltiplos de 4)”. 

No livro, come-se, bebe-se e copula-se — e sempre tendo o cocô como uma espécie de mediador. Rosa recorda a experiência: “Traduzir Sade não é para espíritos fracos”, escreveu. “Pela primeira vez senti, ao traduzir, um misto de horror, interesse e repulsa.” 

A tradutora conta que jamais sentiu com tanto realismo a matéria literária que estava traduzida. “Era de imaginar que essa coprofilia empesteasse o castelo hermeticamente fechado durante aqueles 120 dias de inverno. Mas, o meu computador? Pois foi minha impressão. Houve dia em que cogitei uma borrifada de Bom Ar em torno da tela, outro em que pensei em passar no teclado umas gotinhas do Jo Malone: Amber & Lavender. Não estava excluído pedir à editora um adicional de insalubridade.”

O discreto charme do intestino
Giulia Enders
Tradução de Karina Jannini
WMF Martins Fontes. 308 pp. R$$ 44,90

A ciência vem descobrindo nas últimas décadas um paralelo até agora desconhecido entre o cérebro e o intestino: não apenas que as células neuronais estão presentes no órgão digestivo, mas também relações entre doenças neurológicas e a saúde intestinal. A autora afirma que o campo de pesquisas é tão importante quanto o das células-tronco. 

Neste guia que populariza o conhecimento científico sobre o tema, Giulia Enders explica o funcionamento do sistema digestivo e fornece uma série de informações sobre as fezes, como por exemplo a escala de Bristol, que estabelece sete consistências diferentes. 

Se a ciência conseguiu provar que temos no intestino um segundo cérebro, resta testar a hipótese, fornecida pelos políticos brasileiros, segundo a qual o cérebro, em alguns casos, pode ser chamado de segundo intestino. 

Bom, e se essa leitura toda não for suficiente, um lançamento que acaba de chegar às prateleiras traz um conselho curto e grosso já no título: 

Pare com essa merda — Acabe com a autossabotagem e conquiste a sua vida de volta
Gary John Bishop 
Tradução de Luiz Felipe Fonseca
Intrínseca. 208 pp. R$ 34,90   

Pois então, fica o conselho, tá ok, presidente? 

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.