Política,

Hino à melancolia

Historiador italiano escreve sobre a tristeza vaga e profunda que sempre assolou a cultura de esquerda

09jan2020

Eis aqui o tempo da melancolia. Para os europeus, a data marcante é 1989, quando o Muro de Berlim caiu e o ideal do comunismo desmoronou definitivamente no meio dos escombros do socialismo “real”. Para os brasileiros, 1989 marca, ao contrário, uma esperança democrática, com a entrada no jogo livre das eleições de um operário metalúrgico — e isso depois de mais de vinte anos de ditadura. Não saberíamos dizer se tal esperança nascida com o lulismo acabou desabando no momento do escândalo do mensalão, dos processos por corrupção, do impeachment de Dilma Rousseff, da prisão de Lula, do fracasso do pt nas últimas eleições — ou, mais profundamente, com a degradação de um projeto político realmente emancipador e igualitário pelo país. Seja como for, a esquerda experimenta hoje uma profunda ressaca. A recente produçao cinematografica do pais é testemunha disso, particularmente o filme de Petra Costa, Democracia em vertigem, que pode ser visto como o sintoma de uma melancolia de esquerda à brasileira.

Melancolia de esquerda nasce de uma aposta desafiadora: fazer do afeto melancólico o motor dos movimentos sociais do presente. Neste livro, lançado originalmente em 2016, na França, o historiador italiano Enzo Traverso mobiliza uma memória revolucionária na qual se acumulam as camadas de esperança de uma outra sociedade, mais justa e solidária. O historiador das ideias recolhe os sonhos de nossos pais e avós, que se concretizaram não somente em discursos e manifestos, em levantes políticos ou reformas sociais, mas também em obras de arte.

Eis o socialismo (ou comunismo) como hipótese, então, na qual as pessoas possuem capacidades emancipadoras que não foram ainda realizadas — não estamos longe de Alain Badiou, o “materialista platônico” que recolocou, com Slavoj Žižek e outros mais, o comunismo na moda. Não se trata, contudo, de uma fidelidade a uma ideia abstrata, a um ideal geométrico em política, mas sim a promessas emancipadoras não cumpridas, a um desejo que ficou parado no passado, a um passado cheio de desejos.

Traverso passa em revista a diversidade dos meios nos quais se cristalizou esse conjunto de imagens-desejo do coletivo, depositadas em obras dispersas no tempo e no espaço. São pinturas, naturalmente, mas também gravuras e cartazes, edifícios e instalações e, sobretudo, filmes. Tal como um fotógrafo na câmara escura, Traverso, também um crítico da cultura, revela a força de uma “tradição escondida” que corre subterraneamente do século 19 ao 21. Causa perplexidade, no entanto, a valorização de um conceito de conotação negativa ou patologizante — a melancolia — como categoria operatória e força inventiva a serviço de um projeto revolucionário. Por que, afinal, “melancolia” de esquerda? A esquerda não necessitaria, antes, de coragem, euforia ou até mesmo de cólera e ebriedade? Do ponto de vista clínico, o melancólico não seria o que se encontra incapaz de fazer o luto, de se desfazer do objeto amado (nesse caso, um ideal de justiça social) para finalmente viver sua vida? Não é verdade que seu desejo de fusão com o objeto idealizado só poderia se realizar verdadeiramente na morte?

Já do ponto de vista político, cabe a pergunta: o melancólico de esquerda não seria esse marxista de retaguarda que se vê ultrapassado pelos movimentos sociais atuais, minorias e revoluções culturais? Não se tornaria a caricatura de si mesmo, eterno nostálgico da boa e velha luta de classes alimentada pela justa consciência operária? Estaria ele limitado a sua posição de homem branco, heterossexual, ocidental, desorientado pela extinção de seu ideal universal? Tornado um melancólico, o revolucionário de outrora não viraria um reacionário, entrando em pânico diante dos assaltos das minorias raciais e sexuais que defendem um militantismo particularizante? Ou, para se salvar com cinismo, ele se transformaria nesse intelectual dândi que estetiza a miséria dos marginalizados (sejam proletários, sejam populações racializadas) para poder melhor vender suas mercadorias, livros, teorias, fotografias e filmes?

De fato, é nesses termos que Freud ou Benjamin poderiam recusar tal projeto. Se Freud reconhece que a identificação com um objeto amado poderia ser também coletiva (podemos estar em luto tanto pela pátria vencida como por um ideal político), ele desqualifica a melancolia como sendo um afeto altamente destrutivo. Quanto a Benjamin, se foi o primeiro a forjar a expressão “melancolia de esquerda”, era para criticar alguns intelectuais que, como Erich Kästner ou os fotógrafos da Nova Objetividade, estetizam a miséria e o povo para se moldar ao ar do tempo e fazer escoar sua mercadoria: uma velha demagogia que não teria levado em conta a radical transformação de seus próprios meios de produção, de sua técnica de criação artística e de sua maneira de compartilhar o mundo sensível.

Desalento produtivo

A cientista política Wendy Brown retomou recentemente essas críticas para entender a impotência de nosso presente, afirmando que uma melancolia de esquerda seria necessariamente conservadora, “incapaz de visão e de espírito crítico”. Freud, no entanto, reconhece em Michelangelo um visionário capaz de sublimar sua melancolia em inovações extraordinárias para a humanidade; e Benjamin reconhece no socialista exaltado Charles Péguy, dotado de uma “fantástica melancolia dominada”, um crítico implacável da ordem estabelecida. Nesse sentido, como produção cultural (e não categoria clínica), a melancolia poderia ser produtiva, reveladora e até revolucionária.

Enzo Traverso não menciona esses exemplos, mas também não ignora as possíveis resistências a seu projeto. De um lado, em diálogo com a psicanálise, ele mostra que não se trata, como no luto bem-sucedido, de se separar do objeto amado para poder viver sem ele, mas de se transformar ao contato da imagem de sua ausência. De outro, em resposta à denúncia da mercantilização da miséria, o autor valoriza a melancolia autêntica (e não estetizante) do filósofo-trapeiro, catador revolucionário que recolhe os sonhos perdidos no asfalto. A melancolia não é uma postura mórbida ou uma demagogia clientelista, mas uma aposta de que a esperança vale mais do que a resignação, a utopia mais do que o cinismo. Trata-se de uma aposta alçada a um nível coletivo: se apostamos na possibilidade (secular) de redenção, temos tudo para ganhar; se nos resignamos a este mundo sem alternativa, rumamos ao desastre.

O livro assinala o marxismo como o grande ausente da virada memorial simultaneamente política e epistemológica do final do século 20. Frente às lembranças das vítimas por muito tempo injustamente esquecidas da Shoah, no Ocidente, do socialismo real, na Europa do Leste, e da escravidão, nos países do Sul, o marxismo como esperança socialista tinha que recuar — ele que fora tão ativo no anticapitalismo e no anti-imperialismo. Os vencidos da história, portadores de outros projetos políticos, desapareceram atrás das vítimas dos Estados opressores, reclamando reparação. Não é a legitimidade de tal reivindicação que Traverso questiona, mas o fato de que a fixação nas políticas reparadoras contribui para a invisibilização de outras trajetórias históricas que foram interrompidas, e que morrem assim uma segunda vez.

Essa morte política é também epistemológica: ante a explosão acadêmica das pesquisas sobre a Shoah, dos balanços sobre o comunismo de Estado e dos estudos sobre gênero e raça, a análise em termos de lógica de classe se perde, e com ela se perde também uma ferramenta valiosa para afrontar as contradições capitalistas, que atingem hoje seu apogeu. Traverso não nega a necessidade de tais estudos, que celebra no livro e com os quais já contribuiu amplamente (como autor de obras sobre antissemitismo e stalinismo, exilados e párias), mas tampouco deixa de criticar as ciências sociais e os ativismos políticos que se tornaram mais cultuais do que combativos, mais preocupados em reparar o passado do que em abrir o futuro — como se um não andasse com o outro.

Os eclipses político e metodológico do socialismo e do marxismo têm sido acompanhados por um terceiro, que o livro tenta remediar: o eclipse imaginário que fez desaparecer o conjunto de imagens dos combates do passado em benefício do retrato das violências do terrorismo de Estado. Amparado na história conceitual, Traverso defende que os ganhos de conhecimento histórico não provêm dos vencedores, que se comprazem na celebração teleológica de sua própria honra, mas dos vencidos, cuja pena melancólica é afiada pelo fracasso e pela tristeza dos mundos submersos. A vantagem dos vencidos não se limita à classe operária, com a qual Marx se solidarizou ao escrever sobre o triunfo da burguesia no século 20, mas compreende qualquer derrotado da história.

Por meio de imagens, o livro reintroduz o marxismo na libido mnemônica que domina a ordem do dia. Coleta, primeiramente, as imagens fixas dos lutos coletivos e das lembranças exaltantes, circulando entre fotografias, instalações, gravuras e pinturas, do francês Gustave Courbet ao mexicano Diego Rivera, passando por inúmeros criadores russos e italianos. Depois, faz desfilar as imagens-movimento, reescrevendo uma história surpreendente do cinema conforme o princípio da “tradição escondida”. Sucedem-se, assim, as alegorias dos fracassos da esquerda na visão de Luchino Visconti, os contratempos trágicos da revolta nos irmãos Taviani, os arquivos visuais da efervescência revolucionária da França e da Espanha, com Chris Marker e Ken Loach.

A análise mais exemplar é, provavelmente, a de uma sequência de Um olhar a cada dia (Theo Angelopoulos, 1995), na qual a cabeça cortada de Lênin navega no Danúbio após o desmantelamento do comunismo na Europa do Leste. Contrastando com a cabeça cortada do tsar nos filmes épicos de Serguei Eisenstein do início do século, essa sequência melancólica do cineasta grego assinala, em fins do século 20, o sonho despedaçado de um ideal. À imagem dos homens que se descobrem, silenciosos, diante da passagem do barco, a ideia do socialismo desfila sob o olhar estupefato dos espectadores que somos, permanecidos na margem.

Galeria de revolucionários

O autor reforça esse vaivém entre seu princípio epistemológico e sua galáxia visual construindo, sob o nome de “boêmia”, uma galeria de revolucionários melancólicos. Misturam-se e se olham, num jogo de espelhos, o pintor Courbet, o militante Trótski e o filósofo Benjamin. Se a boêmia era, para a ortodoxia marxista, uma classe ambígua e hesitante que sofria de impureza revolucionária, Traverso a reabilita. Ao armazenar imagens de combates perdidos, a boêmia coloca-as a serviço do evento revolucionário futuro — um modo de continuar a luta sem cair na cilada das ilusões do progresso.

Mesmo falando do passado, Traverso toca frequentemente o presente, e se faz performativo quando parece encenar sua própria melancolia perante os encontros fracassados e as ocasiões perdidas da história. É com talento que encena em particular o desencontro entre o marxismo cultural e o anticolonialismo. Nessa ocasião, toma o exemplo da tentativa de diálogo entre Adorno e C. L. R. James. O primeiro, intelectual judeu emigrado da Alemanha, interpretava as produções culturais a partir de uma teoria crítica inspirada em Marx revisitado por Freud; o segundo, intelectual negro emigrado das Antilhas, aplicava à história colonial um método marxista deslocado por seu olhar estrangeiro. Herbert Marcuse, que organizou a reunião nos efervescentes anos 1960 nos Estados Unidos, esperava muito dessa união para beneficiar os movimentos estudantis e o futuro do marxismo. Lamentavelmente, o encontro entre os autores das duas das maiores obras antitotalitárias do século 20, A dialética da razão (1947) e Marinheiros, renegados e outros párias (1950), deixou só perplexidade e incompreensão.

Entendemos, então, a melancolia de Traverso ante os desgastes ocasionados por essa separação de dois continentes: uma teoria crítica assombrada pelo inconsciente colonial do Ocidente e ainda incapaz de afrontar os problemas raciais gerados pela globalização capitalista; e os estudos pós-coloniais surdos às perspectivas emancipadoras da crítica cultural, desqualificada por eles como eurocêntrica. Uma tristeza similar parece dominar o historiador no momento de apresentar a correspondência entre Adorno e Benjamin: quando, por razões editoriais e financeiras, a relação entre aluno (Adorno) e mestre (Benjamin) se inverte, é toda uma metodologia antropológica e micrológica que se encontra impedida. Outro diálogo frustrado que poderia ter transformado os métodos e a visão da esquerda radical até hoje.   

É a esses diálogos perdidos que Traverso sustenta outro, post mortem, com o filósofo francês Daniel Bensaïd, ao final do livro. É toda uma geração que se destaca da figura de Bensaïd: essa que, introduzida à política em maio de 68, permaneceu fiel a seus sonhos sem ceder nem às sereias do capital, nem aos encantos da renegação no momento em que a revolta saiu de moda. Bensaïd era mais do que o simples militante que pretendia ser, mais do que o escritor que sua pena deixava adivinhar, mais ainda do que o filósofo das intermitências revolucionárias que se tornou. Era um transmissor entre gerações e correntes de pensamento, que aliava marxismo militante e marxismo cultural, tentando atualizar as novas lentes de leitura, como o pós-estruturalismo, sem perder de vista as coordenadas universais da emancipação. Ele é o exemplo de uma resistência ao discurso autoritário dos anos 1980 para o qual não havia alternativa à economia de mercado. No entanto, não fazia parte dos esquerdistas eternamente prostrados na melancolia, nostálgicos da grandiloquente retórica revolucionária. Tinha por modelo, assim como Benjamin, a melancolia lúcida de Péguy, e espreitava, com uma “lenta impaciência”, o momento no qual os lençóis profundos da memória coletiva poderiam emergir, indo ao encontro da tempestade eletrizante do evento histórico.

Ao fechar o livro, o leitor se surpreende ao cogitar uma nova distinção conceitual que permitiria salvar a melancolia daquilo que a ameaça: seja seu caráter potencialmente autodestrutivo, seja a desqualificação de sua potencial força para um projeto de esquerda. Não se trata, então, da oposição entre uma tristeza fecunda, capaz de fazer o luto e de voltar à vida, e uma melancolia estéril, fixada numa repetição tão mórbida quanto arrogante. Não se trata, tampouco, de opor uma melancolia das profundezas, autenticamente ligada a seu objeto, a uma melancolia de vitrine, disponível para seus compradores no mercado dos afetos. Essas oposições são ainda insuficientes, e o percurso de Traverso sugere outra ainda mais operante, entre pulsão e desejo melancólicos. Deve-se rejeitar, sim, a pulsão melancólica, que goza de seu objeto “perdido”, no qual o sujeito se reconhece narcisicamente (como o apego excessivo a uma ortodoxia fora de moda, incapaz de se aproximar do novo, desconectada do mundo). Mas é preciso defender um desejo melancólico, que tece sua relação com o mundo a partir de um objeto “faltante”, no qual o sujeito reconhece somente a imagem da ausência, aquilo que não teve ainda lugar, como uma série de utopias que o autor recolhe e revela a partir de múltiplas figuras. As imagens recolhidas no livro não seriam nada mais do que a refração indireta desse lugar faltante.

É com essa melancolia desejante que é tecido o livro de Traverso. A travessia da memória dolorida proposta por ele só tem valor porque, ao final, ressuscita uma memória da felicidade. A melancolia de esquerda é enfim menos a expressão de uma tendência mórbida do que de uma saudade, no sentido pleno do termo: a lembrança é tingida de um lamento, mas é ele que retém as horas felizes da ação coletiva. Como a análise das sequências dos filmes de Angelopoulos e Einsenstein faz ver, a tristeza melancólica do primeiro não deixa de evocar a euforia revolucionária do segundo. É nesse sentido que o livroo poderia vir acompanhado por esta frase de Frantz Fanon: “O mergulho no abismo do passado é condição e fonte de liberdade”.

Quem escreveu esse texto

Marc Berdet

Doutor em filosofia e sociologia pela Sorbonne, é autor de Fantasmagories du capital (La Découverte).