Literatura brasileira,

Dualidade criativa

Com quarenta livros publicados, João Anzanello Carrascoza discorre sobre a morte e a vida, o dizer e o silêncio, a solidão e a vida familiar

26ago2019

João Anzanello Carrascoza tem esta memória fundamental: ele, o irmão e o pai rodando as estradas da região de Cravinhos, no norte do estado de São Paulo, onde uma miríade de pequenas cidades — Jardinópolis, Brodowski, Batatais, Jaboticabal — orbita ao redor de Ribeirão Preto, a “capital” local. Eram finais dos anos 1960 e o pai, comerciante, vivia entre um armazém e outro vendendo cereais dos pequenos produtores da região que se espalhavam por ali antes de as grandes fazendas de monocultura se instalarem. Na lembrança do escritor, contudo, o pai não era apenas um intermediário de víveres, mas também um difusor de histórias. Em cada lugar que passava, tinha um causo para contar, fosse sobre a construção de uma ponte, a instalação do primeiro semáforo de uma cidade ou a morte de alguém.

Cravinhos é a explicação para muito da obra de Carrascoza. Se foi lá que ele se encantou pelo dom da palavra do pai, também foi lá que captou seus principais temas. Há a Cravinhos simples, cheia de pequenos acontecimentos, mas há também outra, mais marcante para ele, repleta de dualidade entre vida e morte. Lá, na infância do autor, havia a funerária que passava anunciando os falecimentos em um carro de som; os gêmeos com uma doença congênita que limitava sua expectativa de vida a pouco mais de dez anos; o primo que foi andar de bicicleta na beira da cidade e acabou morto atropelado; aqueles dois adolescentes que saíram para dirigir bêbados e acabaram matando um homem que esperava o ônibus na calçada. E, por fim, o próprio pai, que morreu em um acidente de carro — o mesmo que usava para trabalhar — quando o escritor tinha catorze anos.

Às vezes parece que Carrascoza abre a boca e já não está mais conversando, mas recitando o trecho de um de seus livros, falando dos temas mais profundos de sua obra. De repente, contudo, estanca sua prosa lírica e termina tudo com uma expressão bem prosaica. A linguagem, por exemplo. Por que a palavra, identificada já nas conversas do pai como algo único, é uma obsessão de seus personagens? “Porque ela é um dique, uma represa. Ela, ainda que possa se abrir num caudal, e ainda que eu possa conduzi-la por margens ora estreitas, ora mais largas, ela é aquilo, tem sua limitação, é a primeira queda, como também é o pecado original, ela é apenas palavra, cheia de divisas, ela aproxima e distancia, ela não pode ser outra coisa”, responde.

O modo de encadear ideias em uma entrevista, entremeando lirismo com um jeito despojado, descontraído, talvez sirva como uma boa imagem de Carrascoza. Sua obra, e ele próprio, parece funcionar entre diapasões. Seus temas rondam ideias antagônicas: o dizer e o silêncio, a solidão e a vida familiar, a infância e a idade adulta, o nascimento e a morte. Seu cotidiano também tem disso, dividido entre a prosa poética de sua literatura e a redação publicitária — Carrascoza trabalhou durante trinta anos em agências e ainda dá aulas de publicidade e propaganda na USP e na ESPM. E sua própria aparência, por fim, também carrega essa dualidade: olhos azuis, profundos, meio enigmáticos, enquanto numa orelha repousa um singelo e inseparável brinco de argola.

São essas “águas” opostas ou distantes, diz ele, que se misturam constantemente para formar sua obra. Aos 57 anos, o escritor lançou no começo de abril seu quinto romance, Elegia do irmão. O livro é uma narrativa em dois tempos — mais uma vez os diapasões — que se desenrola entre o antes e o depois da morte prematura de Mara, irmã do protagonista-narrador. Aos trinta anos, a personagem é diagnosticada com câncer em estágio avançado e metastático. Com pouco a ser feito, resta ao irmão, dois anos mais velho, rememorar acontecimentos da vida dos dois. É, de certo modo, um resumo dos assuntos que perpassam a obra do autor. A questão familiar, ao lado da morte, aparece sob outras formas em todos os seus livros, como nos romances Aos 7 e aos 40 e Caderno de um ausente.

Com Elegia do irmão, Carrascoza chega, segundo seus cálculos, ao redor de seu quadragésimo livro, entre infantojuvenis, contos, romances e — de novo o prosaico — manuais de redação publicitária. Em uma aula recente para alunos de graduação da USP, o escritor destrinchava o passo a passo do trabalho de um redator na elaboração de um vídeo publicitário. As mesmas palavras que o escritor associa a temas complexos como o pecado ganham matizes técnicos em seus manuais e nas falas como professor. Para ele, contudo, um trabalho nunca atrapalhou o outro. Escrever literatura e publicidade tem raízes na mesma lembrança de seu pai pingando de cidade em cidade no interior: “Vender e contar histórias, que era o que ele fazia, é o que me levou à publicidade”.

Com tantas publicações, praticamente uma por ano desde que começou, nos anos 1990, e mais um punhado de prêmios recebidos — Jabuti, São Paulo de Literatura, Biblioteca Nacional —, Carrascoza é um dos autores mais ativos da literatura brasileira contemporânea, embora não dos mais conhecidos. “Sou um publicitário escritor, visto até recentemente como ‘só’ um contista, e ainda por cima de prosa poética. Ocupo um espaço bem específico no mapa das letras”, avalia em seu escritório, no terceiro andar de sua casa, iluminado por uma janela com vista para o raro bairro sem prédios da Vila Sônia, na zona oeste de São Paulo.

Encontro com Aduan

No começo, recém-chegado à capital paulista e já conciliando publicidade e literatura, entrou para a oficina literária Três Rios, no centro da cidade. Novidade na época, davam aulas por lá os escritores Paulo Leminski, Ignácio de Loyola Brandão e João Silvério Trevisan, com quem Carrascoza fez um curso de um ano. A oficina começou com vinte alunos e, no final, devido ao rigor de Trevisan, terminou com cinco. Ali nasceu o Hotel solidão, primeiro livro do autor, que venceu o Prêmio Paraná de Literatura na categoria contos. Foi uma grande estreia, mas, em 1989, com o mercado cultural cambaleante, o livro ficou apenas numa edição limitada da Biblioteca Pública do Paraná.

Nessa mesma época, foi convidado por uma amiga para contar histórias em uma escola. Na primeira vez, ele acabara de voltar do Marrocos, enrolou-se com uns “panos muito loucos” que tinha comprado por lá e cativou as crianças com um enredo que não havia criado. Na segunda, levou algo que tinha escrito. Acabou virando livro. “Minha estreia, de fato, acabou sendo na literatura infantil com As flores do lado de baixo, em 1991. E, para mim, nunca houve grande diferença entre fazer uma literatura e outra”, diz, ainda que, por outro lado, também admita intercalar as produções — uma servindo como respiro para a outra. Seu infantil mais recente é Vamos acordar o dia?, livro de 22 microcontos que tratam de seus temas costumeiros: família, temporalidade, cotidiano, natureza.

“Eu era um garoto chegando a São Paulo e então o Fernando Paixão, que conheci por causa de meu primeiro livro infantil, me deu uma lista de nomes para eu contatar e fazer Hotel solidão circular”, diz Carrascoza. Era 1994 e, algum tempo depois de despachar os exemplares por correio, o telefone tocou na casa do autor. “Minha ex-mulher atendeu e veio me dizer que tinha um tal de ‘Aduan’ na linha querendo falar comigo”, conta. Era Raduan Nassar. “Ele ainda não era a figura conhecida que é hoje, mas sua generosidade já era a mesma. Ele disse que tinha gostado do livro, sentido uma afinidade com algumas tendências rurais que minhas histórias tinham e me chamou para um café.”

A partir daí, Nassar se tornaria leitor crítico de boa parte dos livros de contos que o jovem autor lançaria nos anos seguintes, como O vaso azul, Duas tardes e Dias raros. Mesmo com a distância autoimposta que preserva da imprensa, Nassar enviou por e-mail à reportagem um comentário sucinto (e enfático) sobre o amigo: “João Anzanello Carrascoza é sem dúvida um talento literário excepcional”.

“Ele é alguém que me baliza e já fazia isso desde minha adolescência. Ainda em Cravinhos, eu li Um copo de cólera e lembro de ficar assim: ‘caralho, que coisa é essa?’”, diz Carrascoza. “Quer dizer, eu não sabia que se podia escrever daquele jeito e era exatamente isso que eu queria. Escrever livros daquele jeito: viscerais, não muito grandes, mas com contundência.”

Apesar dos temas densos com que Carrascoza trabalha, vira e mexe alguém aparece dizendo que seus livros são delicados, sutis e leves. Se esses adjetivos são usados, talvez seja mais pelo estilo lírico de seus textos, por suas metáforas que por vezes remetem ao universo rural e pelo fato de que sua ficção sempre parte do particular, e não do externo — não do quadro de violências gerais da vida urbana brasileira. “Ele está interessado em nomear o interior dos personagens, mas não foge aos temas densos. É um lirismo mais para o grave do que para o leve”, diz Fernando Paixão. Num exemplo recente, quando a irmã do narrador-protagonista do novo livro, Elegia do irmão, morre, ele não diz uma vírgula sobre o último suspiro. Resume o fato central da narrativa, a morte de Mara, dizendo apenas que ela se “despalavrou”.

O mundo e a arte estão literais demais hoje para que se entenda a morte como um “despalavramento”? “Talvez, mas quem souber fazer uma boa leitura do que escrevo vai ver que eu tematizo conflitos da ordem do intrínseco, eles são menos sociais e mais individuais, é o que acontece quando nada acontece, mas quando um olha de frente para o outro”, diz. A palavra, a morte, a vida familiar, as lembranças. “É o meu planeta ficcional, não saberia fazer outra coisa, mas é claro, às vezes olho pra mim e penso: ‘puta merda, eu de novo fazendo isso!’”, ri. “Só que esses são os meus temas mais viscerais e acho que talvez a gente esteja no mundo para contar uma história única, ou como a Hannah Arendt dizia: ‘Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história’”.

Quem escreveu esse texto

André de Oliveira

É jornalista.