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As lacunas na história

É delirante pedir a volta da ditadura militar, diz autora que escreveu sobre o período

20jul2020

Um livro sobre perdas. É assim que a escritora carioca Claudia Lage define seu livro O corpo interminável, publicado no ano passado pela editora Record. Através da ficção, Lage faz uma crítica à amnésia nacional na trajetória de Daniel, filho de uma guerrilheira torturada e morta durante a ditadura militar brasileira.

Formado por várias vozes, a do protagonista Daniel, da sua noiva Melina, do seu avô e da própria mãe, o livro mostra como as feridas abertas durante esse período da história continuam a reverberar de modo intenso no cotidiano de seus personagens.

Para realizar essas obra, Lage mergulhou em relatos guerrilheiros e guerrilheiras sobre o período e construiu um livro delicado e impactante pelo modo como retrata situações de violência real e simbólica em suas páginas. Assim, a vida individual dos personagens está inexoravelmente ligada à história do Brasil.

“Daniel não sabe a sua origem, a história dos seus pais, especialmente, a da sua mãe, guerrilheira desaparecida. Ele sofre os impactos desse desconhecimento em sua vida pessoal, assim como nós, como nação. Ter parte de uma sociedade clamando pelo retorno à ditadura é sintoma de um país adoecido, desmemoriado, delirante”, reflete Lage em entrevista à Quatro Cinco Um, que ainda afirmou que quando escrevia uma história ficcional ambientada no período não se sentia tão impotente.

“O livro é uma busca das minhas próprias lacunas, como mulher, brasileira, o que esses apagamentos e soterramentos me tiraram e me deram, o que é crescer e se formar num país em contínua amnésia”, continuou ela.

Leia a entrevista completa a seguir.

Como foi o processo de pesquisa para escrever esse livro? Trabalhou com a relação entre memória e história?

Li muitos livros de guerrilheiros e guerrilheiras, relatos, depoimentos, assisti a documentários, entrevistas, percorri basicamente o caminho que Daniel e Melina fazem no livro. Eles tentam se aproximar de uma época que viveram na infância mas da qual quase nada sabiam, pois nada era contado, nem antes, nem depois, assim como eu, que nasci na década de 1970.

Os ensaios de Jeanne Maria Gagnebim e de Roger Chartier foram leituras inspiradoras nessa questão da relação entre memória e história. Uma frase do Chartier me acompanhou por todo o processo criativo: "Desde a época da pedra, do tecido, do pergaminho e agora o papel, a escrita sempre foi uma forma de lutar contra a fatalidade da perda". Mas no caso do livro, a perda não é somente a perda provocada pelo esquecimento e pela ação do tempo, é também a perda provocada pelo silenciamento, pelo gesto bruto de apagamento do próprio ser humano, no caso do livro, a repressão e a ditadura.

E o processo de escrita? Imagino que não tenha sido um livro fácil de escrever.

Não foi fácil, muitas vezes, foi insuportável. Lembro de passagens em que eu parava para tomar ar, literalmente, respirar, porque de repente em meio à escrita, percebia que estava com a respiração suspensa. A imagem do buraco, que está no livro de diversas formas, me acompanhou por todo o processo, como um lugar que inicialmente colocamos a mão e tateamos sem saber o que iremos encontrar, e depois, caímos de corpo inteiro, entregues a uma queda, ao confronto com o que há no fundo, e, neste livro, o que havia no fundo era a nossa memória, a nossa história. E era eu também, porque a gente sempre escreve, acredito, a partir do que vive e do que não vive, a partir das próprias experiências e ausências.

O livro é também uma busca das minhas próprias lacunas, como mulher, brasileira, o que esses apagamentos e soterramentos me tiraram e me deram, o que é crescer e se formar num país em contínua amnésia. Nesse sentido, foi também libertador. Por mais doloroso que tenha sido entrar nesse lugar, nessas memórias, nessas lacunas, acessar toda aquela carga de violência, eu me sentia amparada pela ficção.

A literatura tem essa imensa força, aquela experiência é arrancada do seu lugar na “realidade” e transfigurada, ressignificada, se torna outra coisa, e só assim foi possível suportar. Durante a pesquisa, não conseguia lidar muito tempo com os relatos de tortura, os depoimentos, era muito sofrido, assombroso, olhar o mal tão de perto, constatar que a monstruosidade está ali na esquina, tão fácil de se encontrar em cada um de nós. Mas, na ficção, tudo isso se torna outra coisa, ali eu podia interferir, ressignificar, era possível fazer algo, trazer à tona, apesar de tudo, algum sentido, perspectivas, beleza. Na ficção, não me sentia tão impotente.

A ideia do corpo, que aparece no título e se faz muito presente (e ausente) na narrativa, tem vários sentidos na narrativa. Dentre eles, um corpo ausente mas que se faz presente nas marcas deixadas nos filhos, nas gerações que virão, da mesma forma que os traumas sofridos pela mãe passam de alguma forma para o corpo do filho. Isso me lembrou a ideia de epigenética (os traumas sofridos por gerações anteriores podem ser passados para os genes das gerações posteriores). Pensou nisso ao escrever o livro?

Sim, o tempo todo. É no corpo que o romance acontece, que tudo acontece. E escrevi boa parte do livro durante a gravidez e amamentação do meu filho. É como se meu corpo estivesse amplificado, e a sensação de continuidade, de geração de vida, de criar uma existência que nasce da minha, que carrega muito do que sou, como eu carrego muito dos meus pais, de formas que nem posso imaginar, como não sabia o que de mim e do meu marido continuavam no nosso filho…

O corpo então, não era apenas o meu, havia outros corpos no processo, e, de algum modo, mais intuitivo do que racional, isso chegou ao livro também, essas fronteiras que se rompem em relação ao outro. A ideia de que é preciso se desarmar, se abrir para que a criação aconteça, se expanda… Os personagens que estão fechados no próprio mundo, como o avô e o pai do Daniel, convivem não apenas com a solidão, mas com a secura, são incapaz de fecundar, de criar…

Na visão da ciência, a epigenética, e também numa visão espiritual, o DNA contém a nossa ancestralidade, não há como existir sem conter e estar contido no outro. São presenças e ausências simultaneamente, porque estão em nós, mas não ao alcance das mãos. Por essas sincronicidades tão comuns num processo criativo, assisti num programa um trecho de um filme do Bergman, O rito, e na cena um personagem fala a outro, “Você não é matéria sólida, é um movimento. Você deságua nos outros, e eles deságuam em você”. Essa é uma das citações que me acompanhou na escrita do romance.

Por outra sincronicidade, a artista visual Marcia de Moraes, cuja obra maravilhosa As cordas (2014) ilustra a capa do livro, citou essa mesma frase do Bergman como referência do seu trabalho. Eu já havia ficado impactada e escolhido a imagem antes de saber disso. Foi outra sincronicidade, outra conexão, que diz muito sobre a criação, a arte e o seu fluxo invisível.

O livro é feito de vários silêncios: os do avô de Daniel, do pai de Melina, do próprio Daniel que diz que não consegue escrever após ver imagens e ler sobre a história da repressão na ditadura… Esses silêncios podem ser vistos como uma metáfora para a história recente brasileira? Lembrei também de “O narrador” do Walter Benjamin, em que comenta que os soldados que voltaram da Primeira Guerra Mundial ficavam mudos quando pediam para descrever suas experiências, pois não haveria palavras para descrever o horror pelo qual passaram.

Sim. Os silêncios no livro são, em uma instância, uma resposta dos personagens ao regime de repressão, ele pode ser uma consequência do trauma, uma incapacidade de falar da própria experiência, como os soldados citados por Benjamin, como também pode ser o silêncio da omissão, da conivência, como o silêncio do avô de Daniel, dos pais de Daniel e Melina. Há também o silêncio herdado, que é a desmemória, o que não foi contado, o que não foi dito. As grandes lacunas em suas histórias e origens que impactaram de forma devastadora as vidas de Daniel e Melina. Ao meu ver, o livro é construído sobre esse alicerce, da história não contada, do passado irrecuperável, e das consequências desse desconhecimento na vida dos personagens e também na vida do país.

Ainda nesse tema, em uma parte do livro, Daniel comenta que ele se sente incomodado em criar representações, transformar em personagens pessoas que foram torturadas e mortas durante a ditadura. Que seria uma forma de minimizar o horror pelo qual essas pessoas passaram. Desse modo, como foi escrever um livro que tem como personagens pessoas que sofreram traumas difíceis de serem narrados? Como é possível representar o horror?

Voltando ao Chartier, se, como ele disse, escrever é uma forma de lutar contra a fatalidade da perda, como escrever diante do vazio? Como escrever quando essa fatalidade da perda já aconteceu? Como narrar traumas tão profundos, que tocam na raiz da vida de tantas pessoas, e na raiz dos problemas de um país também? Não pensei em escrever um livro sobre uma investigação, algo que se reconstitui passo a passo, desde o início era um livro sobre perdas. Acho que a questão: como narrar?, permanece como a grande questão do escritor, e essa pergunta foi estímulo da escrita. As lacunas foram se estabelecendo como estrutura do livro, e ele foi se moldando a partir delas, com a fragmentação, as interrupções, as alternâncias de vozes. A própria incapacidade de representação está presente no texto, essa falta é um elemento que o constitui. 

Em história, há a ideia de que para se formar uma nação é preciso escolher esquecer certos acontecimentos para manter o Estado Nacional unido. No entanto, isso reverbera em histórias individuais. Como você vê essa relação entre o contexto histórico mais amplo e a história individual dos personagens?

Essa é uma questão essencial, porque o Brasil tem a tradição de varrer a sua história para debaixo do tapete e seguir como se a sujeira não se acumulasse, como se um dia não fosse aparecer, transbordar na nossa cara. De forma geral, ainda há a crença, em muitos brasileiros, de que o contexto histórico, passado e presente, não interfere em suas vidas pessoais. Hoje, com a pandemia, vemos o quanto isso é falso e perverso. 

No livro, Daniel sofre as consequências existenciais de não saber a história de sua mãe, uma guerrilheira desaparecida pelo Estado. Melina sofre também por descobrir a omissão dos seus pais durante a ditadura, que aparentemente viviam aquela época como se fosse qualquer outra. No decorrer do livro, o leitor vê que não é bem assim, mas o fato é que eles justificavam de alguma forma o injustificável, naturalizavam o horror. Nesse sentido, é inevitável a relação com o momento presente.

Lendo o livro também lembrei muito do conceito de “memórias subterrâneas” de Michael Pollak, que traz à tona memórias que pretendem ser enterradas pela história oficial. Acha que é possível “esquecer”? Ou essas memórias vêm sempre à tona? E qual o preço que se paga para esquecer? E para relembrar?

Penso que essas memórias se tornam fantasmas. Quando não são lembradas, elas assombram, vêm à tona, de alguma forma, por mais que se tente enterrá-las. Por isso a importância da escrita, a importância do relato. Quando comecei a escrever esse livro, em 2011, eu escrevia como se a ditadura fosse matéria da memória. No decorrer do tempo, foi se tornando uma ameaça real. O livro mudou bastante, por conta dessa aproximação do horror. Lembro que adolescente, eu me perguntava: como não se falava de um trauma tão profundo, que mal tinha acabado? O resultado desse silenciamento é que o brasileiro não conhece a sua história, assim como Daniel, no meu livro, não sabe a sua origem, a história dos seus pais, especialmente, a da sua mãe, guerrilheira desaparecida. Ele sofre os impactos desse desconhecimento em sua vida pessoal, assim como nós, como nação. Ter parte de uma sociedade clamando pelo retorno à ditadura é sintoma de um país adoecido, desmemoriado, delirante.

Acha que a literatura pode ajudar a curar essas feridas do trauma da ditadura brasileira? Seria esse o papel da literatura?

A literatura pode trazer à tona essas memórias, ressignificá-las, pode nos aproximar de nós mesmos, falar de vidas e experiências silenciadas por todos os tipos de repressão, preconceitos, exclusões e visões autoritárias. A literatura pode muito, é imensa a sua liberdade e potência.

Gostaria de fazer algum outro comentário sobre o livro?

Na orelha, A professora da UnB Regina Dalcastagnè fala sobre as mulheres guerrilheiras como o ponto central do livro. Eu também vejo assim. Ao sair de si, ao se abrir para o outro, Daniel é, de certa forma, “invadido” pelas memórias e histórias das guerrilheiras, duplamente silenciadas, pelo Estado e pelo sexismo, porque a atuação política dessas mulheres era menosprezada em prol da imagem de “musa” ou "namorada” dos guerrilheiros. A ditadura no Brasil ocorreu junto com a revolução sexual, o surgimento da pílula, a virgindade questionada, o patriarcado questionado pelas mulheres. Não é à toa que na tortura a sexualidade da mulher sempre era violentada, física ou psicologicamente.

As mesmas mulheres que fizeram a revolução sexual faziam a revolução política, e foram duplamente punidas nos porões. Tem a história de uma militante que estava andando na rua e foi revistada por um policial. Em sua bolsa, não havia armas, panfletos, livros, nada “subversivo”, mas havia uma cartela de anticoncepcional, e ela foi presa e torturada por isso. O meu livro é também um desdobramento, uma amplificação desta cena, e, ao mesmo tempo, uma reação a ela, uma reação a essa violência contra a liberdade, a criação, a alegria, o prazer e o amor.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).