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Concertos literários

Autores alertam, emocionam e fazem rir ao falar de política, ciências e escrita na programação da Quatro Cinco Um em Paraty

26nov2023 | Edição #76

Conversas sobre maternidade, luto, racismo, colonialismo científico, inteligência artificial, os riscos do autoritarismo, as escritas de si e do outro. Durante três dias, a Casa da Cultura de Paraty recebeu uma programação literária especial em seu anexo, a Casa da Música, que foi também a casa da literatura durante a 21ᵃ Flip. 

Com curadoria da Quatro Cinco Um, a Casa da Música (e da Literatura) apresentou treze debates com nomes de destaque da literatura e grandes pensadores da atualidade, acompanhados por uma casa repleta de gente. Houve quem ficou de pé, sentou-se na escada e, muitas vezes, uma pequena multidão se aglomerou nas janelas da casa no centro histórico de Paraty para, mesmo sob chuva, ouvir os debates — alto-falantes foram instalados do lado de fora para o público acompanhar as conversas que aconteceram de 23 a 25 de novembro na cidade fluminense.

Na vila, que é patrimônio histórico, a programação começou com uma discussão sobre a ocupação dos centros urbanos. A urbanista Joice Berth, autora de Se a cidade fosse nossa (Paz e Terra) — e participante de uma das mesas mais repercutidas da programação oficial da Flip — e a pesquisadora do Cebrap e do Mecila Bianca Tavolari, que assina a coluna “As Cidades e as Coisas” na revista Quatro Cinco Um e resenhou o livro da urbanista na edição de agosto, abriram os debates com autores na Casa da Música, na manhã da quinta-feira (23).


Joice Berth na mesa "As Cidades e As Coisas" [Luy Albino]

Berth e Tavolari, ambas ativistas pelo direito à cidade, debateram as implicações da proposta contida no título do livro de Berth e como olhar de forma mais abrangente a organização urbana. “Olhando a cidade, dá para entender que o racismo é estrutural. Você vê o racismo acontecer, vê o assédio às mulheres, o pobre ser penalizado no transporte público. A luta de classes se dá na cidade”, disse Berth.

Autocratas e patriarcas

Outros debates sobre política encheram a casa. O mundo continua elegendo autocratas e é preciso estar em vigilância constante, e não apenas em períodos eleitorais, alertaram os pesquisadores Conrado Hübner Mendes e Marina Slhessarenko Barreto, do Laut (Centro de Análise da Liberdade e Autoritarismo), na mesa “O caminho da autocracia”, na tarde de domingo (26). Coautores do livro homônimo, lançado pela Tinta-da-China Brasil e resenhado na revista dos livros pelo jornalista Diego Viana, os dois traçaram um panorama dos riscos e sinais de erosão da democracia, como a eleição de Javier Milei na Argentina, em uma conversa mediada pela jornalista Patrícia Campos Mello.


Marina Slhessarenko Barreto e Conrado Hübner Mendes na mesa "O caminho da autocracia" [Divulgação]

“Temos o desafio de reconstruir a direita, que foi sequestrada, está de joelhos, se rendeu a projetos autoritários”, disse o professor de direito da USP. Segundo Mendes, o livro, resultado de uma pesquisa do Laut, é uma tentativa de manter um alarme soando sobre essas ameaças, não só no período eleitoral. No Brasil, para além da derrota de Bolsonaro nas urnas e da condenação que o tornou inelegível, é preciso punir as diversas ameaças à democracia, como o 8 de janeiro. “O autoritarismo não se constrói só com Bolsonaro, mas com o Congresso, cidadãos, uma rede de grande capilaridade. Esses limites foram estressados sucessivamente”, disse Barreto.

A política apareceu de forma mais indireta na última mesa de quinta-feira. A psicanalista Vera Iaconelli conversou com Beatriz Muylaert, editora da Quatro Cinco Um, sobre as crenças relacionadas à maternidade que subordinam mulheres em uma sociedade patriarcal, desconstruídas em seu livro Manifesto antimaternalista (Zahar/Companhia das Letras) — resenhado pela jornalista Carol Pires na revista dos livros. “Maternalismo é a ideologia na qual se entende que a mulher é acima de tudo mãe e que ter um filho vai satisfazê-la sexualmente, pessoalmente, em tudo”, explicou a psicanalista.


Vera Iaconelli e Beatriz Muylaert na mesa "O mito do instinto materno" [Divulgação]

Para uma sala lotada e mais uma pequena multidão aglomerada nas janelas da Casa da Música (e da Literatura), Iaconelli falou que os discursos sobre maternidade vão se transformando e que o modelo atual está em colapso. “Toda geração tem ônus e bônus. A de hoje, atravessada pelo neoliberalismo, vê a maternidade e a parentalidade como performance. É um momento perigoso e para a criança não funciona.”

Colonialismo científico 

Há quanto tempo o ser humano está nas Américas? Com esta pergunta, Bia Guimarães, cocriadora do podcast Ciência 37 Graus, começou a conversa com o jornalista Bernardo Esteves no encontro "Ocupação humana", que abriu a programação de sexta (24).


Bia Guimarães e Bernardo Esteves na mesa "Ocupação humana" [Divulgação]

Esteves, autor de Admirável novo mundo: uma história da ocupação humana nas Américas (Companhia das Letras), disse que a resposta mais garantida é 16 mil anos, mas há pesquisadores que falam em até 40 mil. Ele conta isso em seu ensaio, em que vai contando dessas rotas e disputas da ciência. “É um livro de tretas”, brincou. 

“Na arqueologia há muita briga, puxação de tapete, machismo. E colonialismo científico”, disse Esteves. “A ciência é movida por ceticismo saudável e boa-fé, mas também há críticas extracientíficas. As verdades da ciência são construídas com elementos extracientíficos.”

O monopólio das redes sociais, inteligência artificial, criptomoedas e os crimes escondidos nos recantos obscuros da deep web foram alguns dos assuntos tratados na mesa seguinte por Vinícius Portella e que também estão no seu O inconsciente corporativo e outros contos (DBA). “Grande parte das histórias do livro, as mais malucas, são baseadas em casos reais”, contou o escritor brasiliense, que também é pesquisador de tecnologia, sobre o clima “black mirror” dos contos. 


Iara Biderman e Vinícius Portella na mesa “Black Mirror [Divulgação]

Ao responder uma pergunta da plateia, Portella comentou um caso recente envolvendo a inteligência artificial, em que um dos indicados ao prêmio Jabuti de ilustração, um artista que contou ter usado inteligência artificial na capa de um livro, acabou desclassificado pela comissão julgadora. “Não acho que tem nada de antiético no que ele fez, mesmo não tendo gostado muito da arte”, disse. “É preciso colocar parâmetros claros, não demonizar a ferramenta.”

Crônica para ouvir

Pautas interessantes, apuração rigorosa e muita, muita checagem e revisão até publicar. Parece o dia a dia da redação de um veículo de imprensa tradicional, mas essas são algumas etapas da rotina da equipe do Rádio Novela Apresenta, podcast da Rádio Novelo que a cada quinta-feira apresenta ao público histórias memoráveis, que em geral não se veem no noticiário ou em qualquer outro lugar. 


Bia Guimarães, Victor Hugo Brandalise, Flora Thomson-DeVaux e Puala Scarpin na mesa “Abrindo a cozinha do Rádio Novelo Apresenta” [Luy Albino]

A equipe responsável apresentou um pouco dos bastidores dessa produção na mesa “Abrindo a cozinha do Rádio Novelo Apresenta”, na sexta (24), na maior aglomeração desses dias de Casa da Música (e da Literatura). Eram tantos fãs que alto-falantes foram instalados do lado de fora, levando o coro para a rua chuvosa.

Ao comparar a curadoria do podcast com gêneros literários, Flora Thomson-DeVeaux, uma das diretoras, disse que as histórias contadas no programa encontravam a mesma dificuldade de reconhecimento e prestígio que o conto e a crônica diante do romance: “A gente precisava de um veículo para o conto e a crônica em áudio, numa linguagem narrativa bem consolidada”.

Dissidentes

Uma conversa sobre dissidentes de vários tipos, perseguição e resistência foi acompanhada por uma plateia lotada na mesa “Livros e Livres”, que reuniu o editor da seção homônima na Quatro Cinco Um, Renan Quinalha, e o escritor Alexandre Vidal Porto, que lançou este ano o romance Sodomita, pela Companhia das Letras, na quinta. No livro, Porto recria, a partir de documentos históricos e fabulação, a vida de alguns dos perseguidos pela Santa Inquisição no Brasil do período colonial.


Alexandre Vidal Porto e Renan Quinalha na mesa “Livros e Livres” [Luy Albino]

A ideia, segundo o autor, surgiu da sua vontade de tentar recontar a história de personagens que foram silenciados ao longo dos séculos. “Quantos homossexuais chegaram nas caravelas? Não se sabe. Nós que somos dissidentes sexuais sabemos que essa luta não pode acabar. Começa no século 16 e não acaba. A gente tem que gritar, tem que resistir”, disse. 

“Há vários buracos no Brasil a serem preenchidos”, disse a crítica literária Eliane Robert Moraes sobre o pensamento crítico do erotismo na literatura brasileira. Na conversa com a escritora Amara Moira, mediada pelo jornalista e editor Schneider Carpeggiani, no sábado, Moraes preencheu alguns desses buracos. “Vocês são safadinhos, vieram nessa mesa de putaria. Deviam ter mais vergonha”, brincou Moira, para dizer que, mesmo na literatura, há lugares interditados: “A gente entra na cabeça de um assassino em livros como Angústia, de Graciliano Ramos, mas tem coisas que nem na imaginação podemos entrar.”


Schneider Carpeggiani, Eliane Robert Moraes e Amara Moira na mesa “Partes malditas” [Luy Albino]

“Literatura é lugar para se afirmar, mas há uma parte que não pode ser afirmada, está nas sobras, no lixo”, disse Moraes, que lançou A parte maldita brasileira (Tinta-da-China Brasil), ensaio sobre erotismo na literatura nacional que vai de Machado de Assis a Reinaldo Moraes, de Hilda Hilst a Manuel Bandeira — “dos mais limpinhos aos mais escandalosos” — e foi resenhado pelo jornalista Schneider Carpeggiani na revista dos livros

Conexões literárias

O que se escreve quando não se está escrevendo “a grande obra”? A pergunta norteou a mesa da professora, escritora e tradutora Paloma Vidal, autora de Não escrever [com Roland Barthes], publicado pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, na tarde de quinta. No ensaio poético, a autora busca investigar as lacunas do crítico francês, que pesquisa há anos. Em conversa com a editora Mariana Delfini, Vidal contou do seu interesse em escrever sobre essa zona nebulosa na obra do autor a partir do último seminário que apresentou antes de morrer, deixando seu grande romance inacabado.


Paloma Vidal na mesa “Desejo de escrever” [Luy Albino]

“O que me incomoda com a discussão sobre o bloqueio de escrita é uma certa idealização sobre a escrita, sobre o que seria um romance”, disse a autora. “Aprendi que é o contrário, é meio descer do pedestal — o que não significa que a gente não possa continuar escrevendo, a gente acaba indo pelas beiradas, por outros gêneros de escrita. É por aí que quero levar Barthes, dizer pra esquecer esse romance com erre maiúsculo, não fazer com que a coisa se paralise.”

Naquela manhã, a escritora portuguesa Joana Bértholo, autora de Natureza urbana (Dublinense) havia conversado com Paulo Werneck, diretor de redação da Quatro Cinco Um, sobre seus livros e as conexões literárias entre Portugal e Brasil. 


Paulo Werneck e Joana Bértholo na mesa “Ponte Lusa” [Luy Albino]

Vencedora em 2023 do prêmio literário das fundações Eça de Queiroz e Millennium BCP com A história de Roma (ainda não publicado no Brasil), Bértholo falou sobre o atual movimento de valorizar a escrita de mulheres, que, no Brasil, tem pautado desde festivais literários e premiações até listas de livros para vestibulares. A valorização também é percebida em Portugal. “A minha geração é de mulheres com acesso a prêmios e possibilidades de publicação que outras gerações não tiveram. A poesia é uma exceção, mas até pouco tempo atrás, prosa e ensaio não eram lugar de mulher”, contou. 

Gargalhadas e lágrimas

Na manhã de sábado (25), em uma das mesas mais disputadas da programação, houve choro e gargalhadas. “Sábado na Flip é como terça-feira de Carnaval”, disse o jornalista Fernando Luna, colunista da Quatro Cinco Um, na abertura da mesa “Sobre si (e mim mesma)”, com as escritoras Natalia Timerman e Tati Bernardi. A pedido do mediador da conversa, as autoras leram trechos de seus livros descrevendo a hora do parto. Durante suas leituras, Timerman emocionou e Bernardi chorou — como muitos na plateia. 


Fernando Luna, Natalia Timerman e Tati Bernardi na mesa “Sobre si (e mim também)” [Divulgação]

“Gravidez é a primeira coisa que criei na vida que não veio da minha cabeça. Filho não é uma ideia; todo o resto é”, disse a autora. Para Timerman, a gravidez deu vontade de falar de sua mãe, sua avó: “Quando escrevo sobre mulheres que vieram antes de mim, estamos falando de mulheres que não ocupavam o espaço público. Isso é importante. Mulher escrevendo sobre si mesma é um ato político”. Em seu livro mais recente, As pequenas chances (Todavia), Timerman escreve sobre o luto e as dores de quem fica após perder o pai — resenhado pela editora Maria Stockler Carvalhosa na revista dos livros.

A autoficção e a memória como fontes primordiais da literatura foram ainda o tema da conversa “Fragmentos familiares” entre o advogado Eduardo Muylaert e o escritor Felipe Charbel, a última da programação de sexta. Os dois lançaram neste ano livros escritos a partir de fragmentos de histórias encontrados no fundo de armários de casa: fotos da avó de Charbel são a origem dos romance Saia da frente do meu sol — resenhado pelo professor de direito Renan Quinalha na coluna Livros e Livres —, e correspondências recebidas nos anos 70 por Muylaert se transformaram no livro Cartas de Paris, notícias do Brasil, ambos publicados pela Autêntica. 


Felipe Charbel e Eduardo Muylaert na mesa “Fragmentos familiares” [Divulgação]

Muylaert e Charbel conversaram sobre a experiência de tornar públicos escritos pessoais, fotos íntimas. “Na hora que a gente conta a história, a história sai da gente. O tio não é mais seu tio, é o de todos”, refletiu Charbel, que recria a história escondida pela família da sexualidade do tio “esquisitão”. “O que mais escutei desde que o livro saiu: 'puxa, também tive um tio assim.'”

Encantamento

Numa participação emocionante, Cidinha da Silva, uma das principais cronistas do país, conversou com a jornalista Gabriela Mayer sobre os sentidos de uma literatura negra, atualizações do racismo e o encanto das ruas, entre outros temas, na mesa “Perspectiva amefricana”, que encerrou a programação na Casa da Música (e da Literatura). A autora de Exuzilhar (Pallas), reunião de algumas de suas crônicas, contou que um tema que costura as histórias do novo livro são as tecnologias que permitiram que escritores negros chegassem até aqui. “São as tecnologias ancestrais negras e indígenas, nossa capacidade de sonhar, de fazer o Carnaval a despeito do genocídio”, explicou.


Gabriela Mayer e Cidinha da Silva na mesa “Perspectiva Amefricana” [Divulgação]

A escritora mineira também falou sobre seu processo de escrita e da inspiração que vem das ruas, para ela um lugar de transcendência. “O contrário da vida não é a morte, mas a perda do encanto. Isso é sabedoria de terreiro”, disse. “Viver encantada é manter a capacidade de encantar e se encantar — e é fundamental para a gente viver.”

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Amauri Arrais

É jornalista e editor da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.