Literatura,

Partir para resistir

Em entrevista, Édouard Louis fala sobre seus dois livros recém-lançados no Brasil e explica por que considera a literatura um ato político

01set2023 | Edição #73

Em meados dos anos 1980, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard ganhou um César — o Oscar francês — pelo conjunto da obra. Ao subir ao palco para receber o prêmio, Godard agradeceu às telefonistas e camareiras do estúdio de cinema, provocando risos na plateia. É a esse episódio que Édouard Louis costuma recorrer ao falar sobre o motivo pelo qual escreve. “Sempre achei essa cena violenta. Se Godard tivesse agradecido ao seu roteirista ou a sua mãe, todos teriam ficado emocionados”, acredita Louis. “Godard estava tentando dizer que, para um filme existir, é preciso de faxineiras para limpar os cenários, os banheiros. Mas aqueles burgueses usando smoking e belos vestidos preferem desprezá-las gargalhando. Por isso, para mim, a literatura é uma forma de resistência. Uma maneira de dar visibilidade às pessoas ignoradas.”

Com essa intenção, Louis transformou os protagonistas do “mundo de sua infância” em personagens de seus livros. Desde a estreia, aos 22 anos, com O fim de Eddy (2014), no qual descreve sua meninice miserável, marcada pela violência e pela homofobia, o autor foi alçado à estrela da literatura francesa. Uma fama que se consolida ao mesmo tempo que cultiva críticas e polêmicas a cada nova publicação: em História da violência (2016), Louis narra sua experiência como vítima de um estupro na véspera de Natal; Quem matou meu pai (2018) responsabiliza as instituições francesas pela decadência do genitor; e Lutas e metamorfoses de uma mulher (2021) consagra as transformações da mãe após o fim de seu casamento. 

   
Quem matou meu pai (2018) responsabiliza as instituições francesas pela decadência do genitor e Lutas e metamorfoses de uma mulher (2021) consagra as transformações da mãe após o fim de seu casamento

Recém-lançados no Brasil pela Todavia, os dois últimos apontam também para uma vontade de explorar diferentes formatos literários, exercício que o atrai não só como maneira de aprimorar a escrita, como também porque “cada destino merece ser contado de um modo diferente”. Em entrevista à Quatro Cinco Um, o escritor fala sobre seu trabalho e o motivo de se dispor a contar sempre a mesma história. A própria história.

Quando se deu conta de que queria contar uma narrativa que é sua e de sua família?
Compreendi que era importante contar essa história quando deixei de fazer parte dela. Fui o primeiro da família a estudar, morar em uma grande cidade, numa região distante. Todas as pessoas ao meu redor nasciam e morriam no mesmo lugar, no norte da França, numa vila muito pobre e desindustrializada. Ao partir, descobri como vivem os privilegiados, as pessoas que vão à escola, têm bons salários… No momento em que me vi entre essas duas realidades, entendi o quanto minha infância foi injusta e revoltante. Esse cotidiano de pobreza, de abandonar os estudos com quatorze, quinze anos para trabalhar na fábrica, ter problemas com alcoolismo, prisão, não atingiu só a mim, como a meus pais, avós e garotos que moravam na minha rua.

A violência era tão naturalizada que parecia quase normal. Era nossa condição. Algo que compartilhamos. Quando fui embora dali, senti na carne que queria contar essa história. 

Seu projeto literário é pautado por dar voz aos excluídos?
Sim. Por meio da literatura, minha intenção é destacar pessoas invisibilizadas pela miséria e exclusão. Quando uso “invisível”, não quer dizer que não nos referimos a elas. Pelo contrário, a pobreza é um tema comum, mas a tratamos de uma maneira tão falsa que, quanto mais falamos sobre essas pessoas, mais as tornamos invisíveis. A pobreza é, na verdade, uma obsessão. Porém, a cada vez que mencionamos os pobres, é para insultá-los — como fazem governos neoliberais, ao afirmar que precisam trabalhar e se esforçar mais, que são um problema, um perigo. Para parte da esquerda e certas áreas da cultura, lutar contra a dominação significa mostrar pobres de uma maneira positiva: bons vivants, pessoas autênticas, generosas e com um coração imenso. No fundo, seja o insulto neoliberal ou a caricatura progressista, ambos reforçam essa invisibilidade.

‘Mencionamos os pobres para insultá-los — como fazem os governos neoliberais’

Tento encontrar um meio-termo em que os dominados não sejam nem gentis nem perigosos. Eles são muitas coisas ao mesmo tempo. Recebo críticas porque em um livro, meu pai é homofóbico e, no outro, vítima de grande sofrimento. O que me interessa é a sobreposição de comportamentos e adversidades, algo muito mais complexo. 

Sua fala me remete ao modo como certos filmes, livros e produções de tv tratam das periferias brasileiras como lugares quase idílicos…
Exato. Na França, no Brasil ou nos Estados Unidos há essa dualidade. Uma maneira antiga de ver os miseráveis, presente também no processo de colonização, que considera os povos originários ora canibais, ora bons selvagens. A mesma lógica da organização classista.  

Além de questões de classe, outro tema importante em sua obra é o que chamamos de masculinidade tóxica. Quanto esse estereótipo faz mal também aos homens?
Existe a violência, mas também há coisas belas na virilidade, como a coreografia dos corpos masculinos, que têm algo de muito erótico, como descrevem Jean Genet e Annie Ernaux — ao falar de um amante superviril que desaparecia após fazer amor. Não se trata de abolir, e sim questionar a sociedade sobre diferentes formas de masculinidade. No universo gay, há homens viris, e que não saem por aí atacando mulheres. Mesmo lésbicas podem desempenhar uma identidade masculina. É uma questão complexa. Para mim, interessa saber até que ponto essa masculinidade está ligada às desigualdades, e se os discursos de resistência a ela impactam as diferenças de classe.  

O que descobriu sobre esse tema?
A masculinidade é central na compreensão da dinâmica de classes. No mundo da minha infância, para ser “homem” era preciso comer muito, cair de bêbado, não ir ao médico e não se submeter aos professores. Por isso meu pai abandonou a escola: era uma prova de que ele era macho. Meu pai foi obrigado a exercer essa masculinidade, pois o mundo ao redor dele não lhe deu alternativa. Isso ocorre com frequência aos homens de camadas sociais populares de todo o mundo, que dispõem de menos chances de ter um diploma do que as mulheres. Por outro lado, se você não é viril o bastante, será destruído e castigado, como eu fui, na infância, por ser gay.  

Você descreve todas essas violências que sofreu no primeiro livro, O fim de Eddy. Conseguiu superar sua própria masculinidade tóxica?
Meu sonho era ser normal, ou seja, viril, mas nunca fui masculino o suficiente. Era meu grande desejo quando era Eddy [nome que tinha antes de adotar Édouard Louis]. As pessoas na escola, minha família, vizinhos diziam: “Você não é como nós; não é macho o bastante; é uma bicha”. Como fracassei na tentativa de ser másculo, tive de partir. Contar a história sob essa perspectiva é uma escolha literária, e também um gesto político.

Um gesto político em que sentido?
Nos depoimentos literários de autores que abandonaram seu meio, temos frequentemente a impressão de que são pessoas sensíveis, inteligentes e corajosas. Sempre achei essa mitologia violenta. É como se houvesse gente mais livre, mais capaz e mais destinada a escapar do que outras. Isso atravessa toda a história da literatura. No início de O vermelho e o negro, de Stendhal, o garoto que deixará sua cidade está lendo em cima de uma árvore, enquanto o pai o procura aos gritos. De imediato, sabemos que esse será um menino maravilhoso. É um pouco como a síndrome de Billy Elliot. E isso acontece tanto na literatura dita séria como na popular: as pessoas não explicam o motivo de estarem partindo. Annie Ernaux, por exemplo, não conta por que abandonou a vila de sua infância. Isso não é uma crítica, ao contrário, eu a admiro muito. É mais uma questão que coloco. No fundo, eu não era diferente. Eram as pessoas que diziam que eu era. Até o momento que a única coisa que eu podia fazer era ser mesmo diferente. Quero dizer que isso é um processo. Não é natural. 

Em Lutas e metamorfoses de uma mulher e Quem matou meu pai você envereda por outros modos de escrever. Quais formatos te interessam?
A cada livro, tenho vontade de experimentar diferentes formas literárias, para encontrar maneiras de dizer mais do que na obra anterior. É por isso que nunca amei os grandes livros da literatura anglo-saxã, sejam ingleses ou norte-americanos. Eles têm sempre a mesma estrutura romanesca, introduzindo novos personagens. Acredito também que cada destino merece o próprio formato. É como na vida: uma declaração de amor não é dita do mesmo modo como um insulto. 

Qual então era a intenção por trás de Quem matou meu pai?
Quando comecei a escrever, eu me questionei sobre o que seria uma literatura engajada e política que não fosse apenas como os textos de [Jean-Paul] Sartre e [Simone de] Beauvoir, mas representasse um enfrentamento. Ou seja, uma leitura que confronta a pessoa com o que ela está lendo. Tenho a impressão de que o papel da literatura mudou, deixando de ser um espaço apenas de informação. Sartre ou [Émile] Zola apresentavam o cotidiano de operários de fábricas, de mineiros.

‘Escrevo sobre uma vida, um destino, para compreender por que as pessoas se tornam violentas’

Hoje, podemos acessar uma quantidade imensa de material na internet, não precisamos mais de um livro para entender o que está acontecendo. Com minha literatura, quero confrontar leitoras e leitores com coisas que já sabem, mas com as quais não querem se comprometer. Em Quem matou meu pai, eu me inspirei na tragédia grega e busquei uma escrita que, por sua violência, brevidade e relação direta com o público, tornasse mais difícil ignorar a história que estou contando. 

E em Lutas e metamorfoses de uma mulher, qual era seu desejo?

Ao contrário de Quem matou meu pai, em que questiono até que ponto a política afeta nossa intimidade, mostrando como os cortes na seguridade social e a política neoliberal destruíram a vida do meu pai, em Lutas e metamorfoses conto a história de uma mulher que, aos 45 anos, colocou as coisas do marido em sacos de lixo, jogou-os pela janela e nunca mais o deixou entrar em casa. Por duas décadas, esse homem disse que ela tinha de cozinhar e cuidar dos filhos, impediu-a de trabalhar, dirigir, usar maquiagem e a humilhava, chamando-a de “vaca gorda”, para fazer as outras pessoas rirem. Essa mulher de baixa renda, que parecia presa a esse destino, um dia conquistou sua liberdade. Para descrever a beleza desse processo, busquei inspiração na poesia, nas canções e em fotos que despertam emoções. Por isso as frases se repetem ao longo do livro, assim como os refrões das músicas que amamos se repetem. 

O que você descobriu ao escrever sobre sua família e seu passado?
Muitas coisas, principalmente o perdão. Escrevo sobre uma vida, um destino, para compreender por que as pessoas se tornam violentas. Para mim, esse é um processo de perdoar. Mesmo que se trate de alguém que cometeu um crime horrendo, como os assassinos de A sangue frio, de Truman Capote, ao fim, sentimos que o autor não pode culpá-los. A literatura me ajudou a entender que toda a violência que detestava em minha infância, a homofobia, o racismo, é um fenômeno coletivo, não apenas da minha família — e que os poderosos são os responsáveis por isso.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.