Literatura israelense,

Narrar para curar feridas

David Grossman fala sobre seu último romance e o conflito em seu Israel natal: “Não me dou o luxo de me desesperar”

01abr2022

Certo dia, David Grossman recebeu um telefonema inesperado. Do outro lado da linha, uma mulher pronunciava o nome dele de maneira curiosa. Soava para o escritor israelense como David Ben-Gurion, mítico fundador do país. Ela contou que tinha nascido em uma família judia na antiga Iugoslávia, que havia lutado contra a ditadura e que tinha sido presa no gulag — campo de concentração soviético — de Goli Otok, ilha situada na atual Croácia.

Eva Panić Nahir voltou a telefonar, fisgando Grossman com sua história. Depois de um tempo, pediu que ele escrevesse um romance sobre sua vida, marcada por traições e escolhas improváveis. Ele reconheceu que a história era intrigante, mas titubeou. “Não sou documentarista. Amo o prazer de inventar”, disse o escritor, em entrevista por vídeo, de sua casa em Israel. Decidiu contar a história, mas do seu jeito: inventando e reescrevendo-a.

O autor, hoje com 68 anos, levou duas décadas para publicar o romance A vida brinca muito comigo, em 2019. Eva tinha morrido pouco antes, aos 96 anos, e nunca pôde ler o texto. O livro chega agora ao Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Paulo Geiger (leia mais aqui). Reconhecido como um dos principais escritores israelenses vivos, Grossman já publicou mais de vinte livros, diversos deles disponíveis em tradução para o português, como Alguém para correr comigo (2005) e A mulher foge (2009). Em 2017, recebeu o International Booker Prize, troféu britânico concedido à melhor obra traduzida para o inglês — e, neste 2022, ao lado do brasileiro Paulo Scott, é um dos semifinalistas do prêmio, que será anunciado em maio, com A vida brinca muito comigo.

Na versão que Grossman inventou, Eva virou Vera. Aparecem também sua filha Nina e sua neta Guili. As três decidem gravar um documentário sobre a história da família e, no processo, desenterram seus segredos. Grossman discute, de certo modo, como o ato de contar uma história transforma os personagens — e o narrador. O livro toca o leitor, em especial, porque não tem vilões, apenas vítimas.

Durante a entrevista aqui reproduzida, Grossman pediu que o repórter não aproveitasse a deixa para perguntar — como tantos outros — sobre a situação dos palestinos. Queria disNarrar para curar feridas David Grossman fala sobre seu último romance e o conflito em seu Israel natal: “Não me dou o luxo de me desesperar” Diogo Bercito cutir seu livro como obra de arte, e não como reflexo no espelho político.

Não é que não goste de falar sobre o fato de que Israel ocupa a Cisjordânia desde a Guerra dos Seis Dias. Pelo contrário. O fim da ocupação é uma causa pela qual milita e que conhece muito bem. Serviu no Exército, trabalhou como jornalista (e foi demitido por atritos com o governo) e até hoje participa de passeatas da oposição. Seu filho Uri morreu em 2006 durante confrontos no sul do Líbano. Na entrevista, ele fala mais sobre seu processo de escrita, conta como a ficção o transformou e critica a nova geração de romancistas de seu país.

Vamos começar com a pergunta simples: qual é a história dessa história?
Um dia uma mulher me telefonou. A maneira como pronunciava meu nome era assustadora. Tinha a voz doBen-Gurion. Queria falar sobre algo que eu tinha escrito. Imediatamente entendi que ela tinha uma história para contar. Ela contou que havia nascido em uma família judia, na Iugoslávia. E de repente parou de falar. Disse que não queria me incomodar. “Você provavelmente tem coisas melhores para fazer”. E eu disse: “Estou muito interessado na história”.

Dois dias depois, ela me ligou e continuamos a conversa. Quando ela chegou ao ponto crucial da história, parou de novo. “Não quero incomodar.” Então eu entendi a estratégia dela. Ela queria que eu contasse a história dela. Eu disse que de fato havia ingredientes muito intrigantes, mas que não sou um documentarista. Amo o prazer de inventar algo. Eu disse que contaria a história dela, mas inventando e reescrevendo. Fantasiando. E ficamos amigos.

Foram vinte anos de amizade, e eu nunca conheci alguém tão extremo como ela. Extrema em relação às suas ideias, à honestidade, às amizades, ao amor. Isso fez com que fosse difícil eu entender algumas de suas escolhas, sua incapacidade de ceder. Foi isso que levou à tragédia da história dela. Ao mesmo tempo, ela era suave… Essas duas qualidades coexistiam nela, e eu me atraía por essa combinação. Ela morreu há sete anos, aos 96. Sinto falta dela. E ela não chegou a ler o romance. Apenas sua filha e sua neta puderam ler.

É um desafio inventar a história de um amigo e se manter fiel aos fatos?
A ficção tem as suas próprias regras. A sua história vira um campo magnético, atraindo materiais específicos e rejeitando outros imediatamente. Pode até ser que você tenha uma ideia maravilhosa e, ainda assim, a história a rejeite. Outras ideias você percebe desde a primeira frase, sabe que vão iluminar sua história.

Qual é a essência dessa história, à qual você se manteve fiel?
Um romance é um mundo. Não quero que se limite a um tópico apenas, para que sirva aos interesses dos estudiosos da literatura. Quero que meu romance seja tão contraditório quanto a vida. Se você quer que eu diga o que me atraiu para a história dela, foi a oportunidade de entender — por meio do amor extremo dela pelo seu marido — o que é o amor extremo. Ele é bom ou ruim? Abre-nos ou nos fecha? O que me atraiu foi o ser humano tão decidido diante da ditadura de seu país, que tentava quebrar seu espírito. Ela não se quebrou. Eu não teria sobrevivido por um dia em um gulag, mas ela sobreviveu.

Como o senhor enxerga esse romance, em termos do conjunto da obra? Há, por exemplo, o elemento de uma mulher em fuga que aparece claramente em Alguém para correr comigo (2005) e A mulher foge (2009).
É o primeiro romance que escrevi baseado tão evidentemente em uma história real, o que é sempre um desafio. Quase todo escritor conta sempre a mesma história da sua vida, as feridas que ele carrega. A questão é: você consegue encontrar outras maneiras convincentes de contar a suahistória? Você é capaz de se libertar? Não é fácil contar a história de pessoas que você conhece. Você precisa ser cruel com elas, iluminá-las a partir de um ponto de vista do qual elas não querem ser vistas.

Em minha defesa, posso dizer que, quando criei personagens com base em pessoas que eu conhecia, elas se beneficiaram disso. Mesmo quando foi doloroso. Algo que era mudo ganhou palavras. Não sei se esse romance tem um lugar específico dentro do conjunto da minha obra. Eu nunca me pergunto essas coisas. Você escreve porque você gosta de escrever, porque ama.

É interessante como o senhor costura a história de três gerações.
Eu estava fascinado com essas três mulheres, esses personagens. Queria escrever sobre mulheres de três eras diferentes. Queria refletir a linguagem delas, sua realidade, seus valores. Vera, a avó, veio de um período em que as ideias eram mais importantes do que as pessoas. Em que as pessoas se sacrificavam por seus ideais. Hoje, você só encontra essa devoção em grupos religiosos. Guili, a neta, tem essa habilidade de se mover para frente e para trás, mudar seu ponto de vista — o que significa que há humor.

Quanto a Nina, a mãe, ela pertence a uma geração própria. É como se estivesse suspensa no ritmo das coisas, da biologia. Ela não tem amigos, não tem relações reais de amor e sexo. Precisa ser ninfomaníaca para se sentir desejada porque a sua história é uma de abandono. Para ela, escolhi uma linguagem especial, ao mesmo tempo cínica e vulnerável. É a personagem mais importante do livro, minha embaixatriz. Ela fugiu para a ilha de Svalbard, o ponto mais ao norte do globo, um lugar fascinante. Estive lá duas vezes e quero voltar. É feio, cruel. A paisagem é dura e violenta.

É curioso também como, do ponto de vista da história, ela precisa ir a tal lugar.
A Nina precisa dessa situação extrema. De um lugar em que ninguém a conhece. A esterilidade do lugar a acalma. Ela é uma dessas pessoas que vive em paralelo à sua própria vida, à vida que deveria ter tido. Você deve conhecer alguém assim. Você sente que há uma discrepância entre o que elas são e o que deveriam ser, o que deveriam ter sido. São incapazes de ser felizes. Vivem algo que criaram para protegê-las do extremo, da dor, da vida real. Vivem essa vida paralela. Você sente que há um grito de dor dentro delas, de medo. Você percebe que alguma coisa horrível deve ter acontecido com elas.

A história de Vera é particularmente interessante também. Temos visto outras histórias sobre a maternidade e seus fracassos, como A filha perdida, de Elena Ferrante. Esse era um tema em que você queria tocar?
Não escrevi A vida brinca muito comigo como parte dessa onda de livros sobre mulheres que não querem seus filhos. O que me intrigava era essa escolha que ela tinha sido forçada a fazer. Eu e Eva discutimos muitas vezes sobre isso, ao longo dos vinte anos da nossa amizade. Ela dizia que tomaria a mesma decisão outra vez. Ela dizia: “Você não entende, você pertence a outra geração”. Sei que eu teria feito outra escolha. Mas eu queria criar uma situação em que o leitor se perguntasse como ele teria agido. Quando você se coloca no lugar de uma pessoa de outra época, quando as ideias eram mais importantes do que as pessoas, você começa a entender por que a Eva tomou essa decisão difícil.

‘Quase todo escritor conta sempre a mesma história da sua vida, as feridas que carrega. A questão é: você consegue encontrar outras

O que é interessante, também, é como a filha da Eva se reconciliou com ela na vida real. Como aprenderam a se perdoar. Quão flexíveis as pessoas podem ser. Como podem ser corajosas em relação uma à outra. Havia algo de fascinante nessa história sobre a flexibilidade da humanidade. O perdão é uma dessas palavras que às vezes são abusadas e ridicularizadas. Não acredito que podemos perdoar totalmente alguém que fez algo de terrível para nós. Mas podemos superar a dor que essas pessoas causaram, olhar para ela de um outro ponto de vista. Mudar a ferida de lugar. Assim, nós nos libertamos.

A vida brinca muito comigo trata de uma família fazendo um documentário sobre o seu passado. O que essa história diz sobre o poder da narrativa?
Penso muito no que a arte da narrativa faz com a gente. Todos temos uma história de vida que queremos contar para as pessoas que conhecemos, para que gostem de nós ou tenham pena de nós, dependendo da nossa motivação. Aprendemos a contar nossa narrativa oficial de uma maneira melhor. Viramos os atores das nossas histórias para receber a maior quantidade possível de amor, pena, reconhecimento, desejo.

Depois de alguns anos, conseguimos pensar de novo nessa história com um olhar mais crítico. Será que não precisamos narrá-la dessa maneira? Será que viramos prisioneiros das nossas narrativas? Como já estamos mais fortes, podemos ser mais generosos com os nossos pais, por exemplo. Mudar o ponto de vista, quando contamos nossa história, é um jeito de criar movimento em um músculo que endureceu na nossa cabeça. Libertar-nos.

Dito isso, como a ficção mudou o senhor, depois de décadas de escrita?
A ficção me mudou de muitas maneiras. Deu sentido à minha vida. Ela me deu a habilidade de entender as pessoas por dentro, me deu o privilégio de narrar histórias humanas. Mas eu encorajaria você a não me perguntar sobre as “narrativas” do conflito [entre árabes e israelenses]. “Narrativa” é algo congelado. Meu objetivo é fazer com que sejam mais humanas, derretê-las. Se tiver êxito, se toda pessoa puder virar um ser humano, se eu puder vê-las de novos ângulos… É um modo de enriquecer a si mesmo. Um modo de tocar a vida de um jeito mais apaixonado.

Preciso perguntar: o senhor não gosta que perguntem do conflito?
As pessoas me perguntam bastante sobre política, e eu escrevo bastante sobre o tema. Estive nos territórios ocupados e dediquei muito tempo a isso. É a tragédia das nossas vidas, e não posso me afastar dela. Estou envolvido com esse assunto, quero influenciar o resultado. Quero que minhas ideias sejam compartilhadas pelo maior número possível de pessoas, para que seja o começo de uma mudança. O que quero dizer é que acho que o meu livro A vida brinca muito comigo merece ser discutido como uma obra de arte literária, não como política.

‘Não posso tolerar a ideia de que o meu povo — que eu considero moral — ocupe e oprima um outro povo. Como nos acostumamos a esta situação?’

Fico incomodado que haja tão pouco debate sobre a ocupação, sobre a situação. Os escritores mais jovens não querem tocar nesse tema. Acham que tudo já foi dito. Que estamos presos a essa situação. Essa é a opinião da maior parte das pessoas, em Israel. Por causa da frustração e da violência, as pessoas estão mais desesperadas, menos esperançosas de que as coisas possam mudar. Parece que há uma maldição flutuando em cima da nossa cabeça. Mas eu realmente detesto esse derrotismo. Não me dou o luxo de me desesperar. Vivo aqui. Minha família está aqui. Perdi um filho para a guerra. Não posso tolerar a ideia de que o meu povo — que eu considero moral — ocupe e oprima um outro povo. Como foi que nós nos acostumamos a esta situação?

Pode falar mais sobre essa hesitação dos jovens romancistas?
Muito poucos deles escrevem sobre a ocupação, diretamente. Por desespero. A linguagem já foi gasta, descrevendo esta situação. Ao mesmo tempo, tão pouco foi dito! Estamos ocupando a Palestina há 55 anos [desde a Guerra dos Seis Dias, quando Israel tomou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza]. Quantos livros foram escritos sobre isso? Alguns. A geração do Samech Yizhar, autor de Khirbet Khizeh, escreveu bastante sobre isso. Sobre a situação política, o Holocausto, a vida depois do Holocausto, a absorção de novos migrantes no pequeno país de Israel. Minha geração escreveu menos que eles. A nova geração, ainda menos.

A doença degenerativa de um dos personagens de A vida brinca muito comigo significa que ela perderá todas as suas memórias. Isso é algo que o preocupa? Pergunto porque estamos falando sobre memória.
A memória é importante. É o modo como criamos e formulamos nossa identidade. Nós nos viciamos na nossa memória, e isso nos separa da vida.

A ambientação do livro também toca nesse ponto da memória. O senhor descreve um mundo em declínio, que é a vida nos kibutzim [sociedades agrícolas de inspiração socialista, típicas das primeiras décadas de Israel].
Tudo muda, em todos os países. Muitos dos kibutzim estão caindo aos pedaços. Outros sobreviveram e floresceram. Meu filho mora em um. Mas é claro que é difícil manter a essência do kibutz, sua moralidade, a necessidade de sacrificar sua individualidade pelo bem dos outros. É duro ser de esquerda em uma situação de violência como a nossa. Cria-se um círculo vicioso de ódio, desconfiança, suspeita. Fica difícil falar de valores morais. Fica difícil considerar a opção de ter paz com um inimigo que agiu de maneira tão brutal conosco.

No livro, há uma pequena observação política. Eles estão viajando juntos. Viajam até a ilha em que a Vera foi “reeducada” pela ditadura. A Guili odeia a mãe dela, detesta. E há esse momento em que ela a está fotografando e enxerga a sua fragilidade. E se pergunta: “Eu consigo deixar de odiá-la? Quem sou eu se não a odiar?”. Guili entende que o ódio que sente por Nina é uma pedra angular de sua vida. Podemos ser nós mesmos sem odiar os palestinos? Os palestinos podem ser eles mesmos sem nos odiar? Nós entendemos o custo do ódio, de estar em contato com pesadelos em vez de lidar com a realidade?

Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

Jornalista, publicou Rasga-Mortalhas (Zarabatana, 2016).