Literatura infantojuvenil,

Rússia para os jovens

Entre textos de fantasia e com preocupação social, coletânea traz contos de nomes como Tolstói, Turguêniev, Tchékhov e Catarina 2ª

24ago2021

Pesquisadora de literatura infantojuvenil russa, Daniela Mountian organizou um livro precioso: Contos russos juvenis, com ilustrações de Fido Nesti e traduções de Irineu Franco Perpetuo, Moissei Mountian e Tatiana Larkina, que está saindo agora pela editora Kalinka como terceiro título da coleção infantojuvenil Bella. Reunindo textos que vão de 1781 a 1928, a antologia traz autores consagrados como Turguêniev, Tolstói e Anton Tchékhov, além de trabalhos das escritoras Lídia Avílova, Lídia Tchárskaia e Catarina 2ª, a Grande (sim, a poderosa tzarina). Em entrevista à Quatro Cinco Um, Mountian fala das particularidades da literatura juvenil russa, seus paralelos com a brasileira e as perspectivas de um novo volume de contos.


Ilustrações de Fido Nesti

Como foram escolhidos os contos dessa obra? 
Procurei incluir histórias que são marcos da literatura russa para a infância e a juventude, como a parábola de Catarina 2ª, a primeira autora a escrever prosa russa para criança, e o conto lúdico de Vladímir Odóievski, texto que virou referência no desenvolvimento das letras russas infantis. Também integrei histórias passadas de geração em geração, aquelas que todo russo sabe de cor, como “Mumu”, de Ivan Turguêniev, “O prisioneiro do Cáucaso”, de Lev Tolstói, e “Vanka”, de Anton Tchékhov. Por fim, queria ainda trazer autores pouco conhecidos no Brasil, como Lídia Avílova e Lídia Tchárskaia, a escritora mais lida pelas russinhas do início do século 20. Os trabalhos de alguns pesquisadores ajudaram na seleção, e, claro, existe sempre um lado subjetivo na escolha, isto é, os textos incluídos me encantam.
 
Quais temas unem essas histórias? 
Pensando de forma concisa, no livro há uma divisão entre textos de viés social e estética realista, e textos voltados para a fantasia e o maravilhoso. Entre os textos que denotam preocupação social, estão os contos de Turguêniev, Tchékhov, Avílova e Kuprin. Entre os mais lúdicos – o conto da viagem hoffmanniana de um menino através de uma caixinha de música (Odóievski), o conto do menino que conversava com animais (Tchórny) e o conto da viagem fantástica de dois russinhos pelo Brasil (Kharms) – prevalece o uso de linguagem mais elaborada e mais próxima do mundo infantil. Há histórias em que animais têm papel relevante no enredo; contos com crianças protagonistas que passam por um processo de amadurecimento, pois têm um embate com uma realidade de injustiças sociais; contos com teor aventuroso; e textos baseados na tradição popular russa. Uma particularidade que vejo na literatura russa para a infância está na importância dada à poesia e à tradição oral, aos contos populares russos (skázki). 

É possível comparar a literatura juvenil russa à brasileira? 
Acho que é possível, sim, mas sem desconsiderar que vieram de contextos político-sociais muito diferentes. Partindo do século 19 – momento em que a literatura infantil se afirmou no mundo de forma mais consistente –, a Rússia contava com a participação de autores consagrados e tinha um cenário editorial mais consolidado do que o Brasil. Mas algumas características presentes nos autores russos também podem ser consideradas nos autores que vieram antes de Monteiro Lobato, por assim dizer, tais como: a relação entre literatura e educação, o conteúdo nacionalista, a ênfase dada a questões humanitárias etc. Já no século 20, com o modernismo, as mudanças políticas, as novas teorias pedagógicas e o desenvolvimento da indústria do livro, o cenário mudou bastante em toda parte. Enquanto no Brasil, nos anos 20, tivemos Lobato definindo nova atividade editorial no país e escrevendo prosa com uma linguagem mais inventiva e próxima dos pequenos, na Rússia os poetas Kornei Tchukóvski (autor infantil mais vendido até hoje lá) e Samuel Marchak trouxeram poemas cheios de humor e musicalidade e foram seguidos por uma geração de artistas. Quanto à influência europeia, foi tão presente na Rússia como no Brasil: muitas traduções povoam ambas as tradições.
 
Que evolução é possível ver nos contos, que vão de 1781 a 1928? 
A literatura russa infantojuvenil se consolidou de fato nas primeiras décadas do século 19, com o romantismo. Foi nesse momento que surgiram autores que se dedicaram exclusivamente às crianças e as histórias começaram a ganhar aprofundamento psicológico e dois mundos distintos (fantasia e realidade). Daí em diante, coexistiram tendências: textos edificantes, contos maravilhosos, fábulas, histórias realistas e humanitárias. Com a instauração do governo bolchevique, em 1917, surgiu a ideia da construção de um novo homem e a literatura ocupou oficialmente uma posição estratégica nesse processo. A literatura do velho regime deveria ser abandonada. Era preciso novos escritores e ilustradores e muitos deles vieram das várias correntes artísticas que surgiram no início do século 20. Em nenhum outro lugar houve uma ligação tão intensa entre vanguarda e livro infantil como nos anos 1920 na Rússia. Surgiu, em todo caso, uma nova forma de escrever e de ilustrar livros infantojuvenis, com novos heróis (as máquinas, as profissões, as crianças “pioneiras” etc.), novo temas (a revolução, a guerra civil, os novos feriados), presença do humor e da brincadeira. 

Esse livro faz parte da sua pesquisa. Poderia falar um pouco sobre ele? 
Estou fazendo esta pesquisa desde 2019 no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, na Universidade de São Paulo (USP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp). Ela se concentra na literatura russa infantil produzida nos anos 20 e 30, do ponto de vista literário e do design. Os livros desse período, desenvolvidos por grandes poetas e artistas gráficos, são admirados por colecionadores e designers, fazendo parte de acervos de importantes museus e bibliotecas da Rússia, dos Estados Unidos e da Europa. Depois, comparo essa produção com o que houve no Brasil na mesma época. Além disso, como a literatura russa para a infância foi muito pouco publicada e estudada aqui, a pesquisa tem o objetivo de trazer um breve contexto do que veio antes também, é aí que se insere a publicação de Contos russos juvenis.

         
Tólstoi à esquerda e Tchékhov à direita

Vários escritores russos importantes também escreveram para crianças. A que se deve esse fenômeno?  
Acho que, no século 19, isso pode ser explicado pela função social conferida à literatura na Rússia. Os livros infantis, para críticos como Belínski, tinham a função de criar. Além disso, certos escritores, como Púchkin e Tchékhov, não escreveram exclusivamente para crianças, mas alguns de seus textos entraram no repertório infantojuvenil. Quem se dedicou intencionalmente à educação e à literatura infantojuvenil foi Lev Tolstói. Nem todo mundo sabe, mas Tolstói praticamente dedicou toda a sua vida também aos pequenos, tanto na escola para crianças camponesas que criou em 1859 em Iásnaia Poliana como, principalmente, pela Cartilha que elaborou e que foi, em sua segunda versão, adotada pelas escolas russas, com milhões de exemplares. Uma parte deste material foi publicada no Brasil pela Ateliê Editorial.

O que há de mais surpreendente nesses contos?
Cada história surpreende à sua maneira. O conto que finaliza a coletânea, do vanguardista Daniil Kharms, é uma obra-prima do nonsense, livre de quaisquer moralismos, com uso refinado de técnicas humor. Turguêniev escreve com primor a história comovente do surdo-mudo Guerássim e de sua cachorrinha Mumu. “A mágoa”, de Lídia Avílova, surpreende pela descrição atenta à psicologia infantil feita de Gricha, um menino que se vê diante de seu primeiro dilema ético. E muitos contos são parte inseparável da cultura russa. Já fizeram dois filmes baseados em “O prisioneiro do Cáucaso”, de ritmo contagiante; estão encenando agora no MDT, teatro cultuado de São Petersburgo, uma peça baseada em “Mumu”, e por aí vai.
 
Houve algum texto que foi deixado de lado que gostaria de ter incluído?  
Toda antologia tem lacunas, muitos escritores emblemáticos foram deixados de fora, como Maksim Górki, que tem muitos textos para jovens. Mas para mim o importante era tentar criar um panorama de questões e estilos expressivos do período abarcado (1781-1928), e não incluir todos os autores relevantes dessa história.

Como foi o trabalho com o ilustrador Fido Nesti?  
Foi um privilégio. O Fido, além de um leitor voraz, é um artista extremamente cuidadoso. Fez uma pesquisa apurada para criar as ilustrações do livro (vestuário, objetos específicos, arquitetura etc.). Seu trabalho se comunica bem com o público a que o livro se destina, embora esses textos e essas ilustrações possam tranquilamente ser apreciados por adultos – o traço do Fido transita entre a linguagem artística e a linguagem dos quadrinhos.

Haverá um novo volume como indicado pelo prefácio?  
Vai depender um pouco da recepção do primeiro volume, mas a ideia é continuar, ou seja, organizar um segundo volume contendo histórias russas juvenis produzidas nos séculos 20 e 21, incluindo outros autores da década de 20. Eu adoraria.

Este texto foi feito como apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).