Literatura, Literatura infantojuvenil,

As criações de Ondjaki

O escritor angolano fala sobre seu novo livro, a importância de conversar sobre melancolia e a vida entre Angola, Portugal e Brasil

24set2021

O escritor angolano Ondjaki, vencedor do Jabuti na categoria Juvenil, está lançando A estória do sol e do rinoceronte, ilustrado pela colombiana Catalina Vásquez, e outros quatro livros de poesia e ensaio pela Pallas Editora: os inéditos no Brasil Materiais para confecção de um espanador de tristezas, coletânea de poesia lançada originalmente em 2009, e Verbetes para um dicionário afetivo, coautoria com Ana Paula Tavares, Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, e os relançamentos de Os da minha rua e Há prendisajens com o xão (o segredo húmido da lesma & outras descoisas).

Em entrevista à Quatro Cinco Um, Ondjaki falou sobre gêneros literários, a vida entre Angola, Portugal e Brasil, suas inspirações e por que abordar temas menos óbvios com crianças.

Você navega entre diversos gêneros literários — poesia, contos, romances e livros infantojuvenis. Como surgiu a vontade de escrever para crianças?
Eu gosto de pensar que escrevo para todas as idades. Há livros que parecem mais infantis, mas estão apenas mascarados. São livros que preparo para muitas idades. Os outros eu preparo para todas as idades.

‘Só sei viver assim, olhando o que escuto à minha volta, sentindo o outro lado das coisas e das lesmas’

Em A estória do sol e do rinoceronte há um rinoceronte que carrega uma tristeza dentro de si. De onde surgiu a ideia para essa história? E por que tratar da melancolia?
Justamente por serem temas menos óbvios e menos falados com os jovens e com as crianças. Acho importante falarmos de amor, mas também da morte. Falar de luz e luzes, mas também da tristeza. Não para apresentar soluções ou fórmulas, mas para incorporar na parte normal e quotidiana da humanidade.

Na história, o rinoceronte dialoga com o Sol, e este conta com o “poder dos astros” para dar um presente ao animal. Qual é a sua relação com a fé?
Nenhuma ou quase pouca. O que deixa espaço para todo o resto. Gosto é de pensar que podemos e devemos fazer algo pelos outros, por um, por dois, por alguéns. Tenho fé em que um dia vamos melhorar. Tenho fé em que havemos de ter uma bela surpresa quando aparecerem uma nova geração e políticos que fazem política incorporando as necessidades e os diálogos humanos, sociais, verídicos. 
 


 

Como foi trabalhar com a colombiana Catalina Vásquez, que ilustrou a fábula?
Foi um privilégio, pois ela é uma grande artista e se entregou a um trabalho tão singelo, tão simples, trazendo para a estória escrita o seu olhar de artista e de mulher. Sinto-me muito honrado por ela ter aceitado o desafio. Não nos conhecíamos, contactei-a pelo Instagram e ela aceitou fazer. Desde aqui envio um grande beijinho à senhora Catalina!

Materiais para confecção de um espanador de tristezas, livro de poesia publicado em Portugal em 2009 e inédito no Brasil, é rico em sensações — rasgava a pele, saudades do céu da argélia, gostar do cheiro da fita, mangas com fio — e animais — lesmas, garças, camelos, piolhos. Por que as sensações e os bichos estão tão presentes nos seus versos?
Não em todos os versos, mas nesses sim. Tive sorte, provavelmente. Saíram-me versos simples, às vezes uns mais complicados e menos bons, mas, no total, creio que tive a sorte de não exagerar. Tentei ser feliz e honesto ao escrever esse livro. Escrevi de coração e janelas abertas: chamei a minha mãe a um poema, o meu pai a outro. O resto são os meus dias e os meus olhares. Só sei viver assim, olhando o que escuto à minha volta, sentindo o outro lado das coisas e das lesmas.

Há prendisajens com o xão, seu primeiro livro de poesia publicado no Brasil, que está sendo relançado pela Pallas, inicia com um agradecimento a Manoel de Barros e se encerra com um postal dele, incentivando sua escrita. Como conheceu a obra de Manoel de Barros? Quais são outras referências?
O primeiro contacto foi pelo livro Retrato do artista quando coisa, que me foi oferecido e ofertado pela poeta angolana Ana Paula Tavares. Foi ela que me deu “um Manoel”. A partir daí fui envenenado. Isto seja: fui manoelizado. Mas devagar e lentamente. Outras referências são muitas: as infâncias, as avós, os cheiros das trepadeiras, a minúscula deslocação das lesmas, o harpar das águas-vivas, as canas de pesca do meu avô, os ritmos do mar em Luanda, o choque das nuvens, o choque das chuvas, a voz dos temporais por acontecer. Gosto muito dos fenômenos da natureza antes de acontecerem ou depois de nunca terem acontecido. 

Em 2010, AvóDezanove e o segredo do soviético (Companhia das Letras, 2009) foi o vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria Juvenil. Como se dá a composição entre ficção, realidade e oralidade, presentes nessa obra, no seu processo? 
Eu creio que essa triangulação é um fenomenal engano humano. Não há divisão entre ficção e realidade; não há antes e depois do tempo; o que há é sorriso, dor, lágrima, celebração, nascimento, arrependimento, fulgor, vazio, dor de novo e lenta recuperação. Isto é: a vida se apresenta de modo incontornável e incontrolável. A oralidade vem nas entrelinhas e nas pós-linhas, nas margens do dia a dia, no distraimento, na distraição. Há que olhar para ver o invisível; há que escutar as vozes mais silenciosas que se processam quando nem falamos. Em Angola, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, a realidade está apta a ser pós-ficção. Então nós, escrevinhadores (como diria o Mia Couto), somos meros aprendizes de uma vasta realidade. O resto é sombra e falésia. Com um pouco de sal.

Você nasceu em Luanda, viveu em Lisboa, depois no Rio de Janeiro, e voltou recentemente para Luanda. Como é a sua relação com cada lugar, onde você se sente mais em casa?
Eu me sinto mais em casa quando abraço uma pessoa querida, um familiar, uma criança, ou o mar. Mas para dizer a verdade, e por agora, sinto-me mais em casa quando estou em Angola. Não apenas pelo lugar, mas sobretudo pelas pessoas. Há uma angolanidade nos angolanos que escapa aos outros países e pessoas. É um modo de estar como se fosse performance inacabada e surpresa e anedota e promessa e encantamento, que, eu peço desculpa, mas me encanta mais do que em outros lugares. Mas, claro, a casa de cada um é também o mundo todo. A parte mais bela da palavra “margem” não é que tenha “mar” nela; a parte mais bela é o desconhecido encosto onde a margem adormece. Seja margem de rio, de mundo ou de pessoa. 

Quais histórias mais marcaram a sua infância?
Foram muitas e várias. Não posso revelar aqui porque cometeria o pecado da revelação por escrito. São coisas para serem ditas mais tarde, em formato oral e com pausas de silêncio, que ainda esse dia não chegou. Por enquanto, enquanto o silêncio pleno não chega, vou contando pedaços das coisas de que me lembro ou das coisas que me deram para lembrar.

Como estimular o hábito de leitura entre as crianças?
Com amor e entrega. Com verdade e simplicidade. Não tanto o hábito da leitura, mas a magia de ter lido. É isso que temos que contagiar aos outros. Não só às crianças-crianças, mas aos adultos que têm estado a abandonar as crianças dentro deles.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Beatriz Muylaert

Jornalista e editora executiva da Quatro Cinco Um.