Literatura brasileira,

O reconhecimento tardio de Geni Guimarães

Com uma obra que transita entre poesia, prosa e infantojuvenis, a escritora Geni Guimarães relança seu primeiro livro e se dedica à escrita de dois outros

31maio2023 | Edição #70

Às margens de um trecho cristalino do rio Tietê, no interior de São Paulo, o município de Barra Bonita se autoproclama “estância turística” por ser de lá que saem os barcos carregados de viajantes para o vertiginoso passeio na eclusa da hidrelétrica, atração que recebe gente de todos os cantos do país. São excursões que não costumam avançar além da avenida em frente ao rio, onde estão os principais atrativos da cidade: um calçadão, parques infantis, bares de música ao vivo ou tocando funk e trailers vendendo sanduíches, doces e porções gigantes de batata frita.

Não há muito o que fazer no lugar de pouco mais de 36 mil habitantes, que surgiu como um povoado no fim do século 19 e se desenvolveu em torno das lavouras de café, do trabalho nas olarias e da criação de gado — até a cana-de-açúcar e suas malcheirosas usinas se tornarem a atividade dominante, nos anos 40. Pelas casas, é fácil adivinhar quem são os herdeiros de usineiros, fazendeiros, dos muitos descendentes de imigrantes italianos e dos cortadores de cana: há mansões nos bairros abastados, amplas residências de classe média em áreas intermediárias e casinhas simples nas vizinhanças populares.

A tranquilidade, no entanto, não é privilégio de ninguém. Ao entardecer, portas se abrem e cadeiras se espalham nas varandas, onde os moradores se ocupam de acompanhar um movimento que inexiste. Das rotinas de Geni Guimarães, essa é uma das que mais a agrada: todos os dias, por volta de cinco, seis da tarde, a escritora, poeta e professora recebe as vizinhas para uma conversa que dura até as oito da noite. “Saem tantas coisas bonitas desses momentos: tenho amigas analfabetas e, ainda assim, aprendo com elas”, diz Geni. “Às vezes, alguém fala uma frase e imediatamente nasce um poema, que fica queimando na minha cabeça até eu escrevê-lo.”

Essa chama que transborda em versos consome Geni desde que ela aprendeu a ler e escrever, quando percorria a pé, por uma hora e meia, a distância que separava a fazenda onde sua família morava e trabalhava, na área rural de Barra Bonita, da escola — experiência que a poeta descreve em A cor da ternura. Vencedora do prêmio Jabuti de Literatura Juvenil em 1990, a autobiografia publicada pela FTD relata sua trajetória desde o nascimento, em 1947, até as primeiras experiências como professora, profissão que exerceu a vida toda.

Penúltima de nove filhos, Geni foi a única a frequentar a escola, motivo de orgulho a todo o clã. “Lembro de estar com meu pai e o administrador da fazenda dizer a ele: ‘O senhor é tonto de deixar a Geni estudar. Depois ela casa e aí, como fica?’. Meu pai respondeu que o estudo era para mim, não para ele. Meu pai era maravilhoso”, diz ela.

Memórias como essa chegam a Geni em poemas. A cada instante, ela pede licença para interromper a entrevista e buscar nos livros textos que ilustrem o que está dizendo, como quando recita duas estrofes de “Infância acesa”:

De manhã, café minguado,
branquinho, morno, cansado
saltava do velho bule.
Me apossava da brochura,
pés na estrada, terra dura
ia para escola estudar.
Meninos fortes, bonitos,
barrigas fartas, redondas,
cortinas alvas, em pompas,
me mentiam um mundo novo
e me iludiam com igualdades sonhadas

Inspirações

Os parentes — sobretudo Cema, a irmã “especial” que vive com ela — e a experiência da maternidade, de amores e de perdas estão entre as inspirações mais frequentes de contos, poemas e histórias infantojuvenis registrados em suas mais de dez publicações, mas não só. Com um sofisticado uso da língua e domínio criativo da escrita, Geni expõe contundente crítica social e ao racismo, compartilhando uma escrevivência que a aproximou de autores como Cuti e Oswaldo de Camargo, dois dos fundadores do Quilombhoje, coletivo responsável pela publicação dos Cadernos negros — espaço que Geni já ocupou.

“Na primeira vez que participei de um encontro de escritores negros em São Paulo, morri de medo. Além de não estar acostumada com a cidade, com aquela rodoviária lotada, tampouco imaginei estar entre pessoas como Oswaldo e Cuti. Eu achava que não tinha nada a mostrar”, diz ela. Desse episódio — que ela não tem certeza de quando ocorreu, mas possivelmente no fim dos anos 80 —, a poeta tem a lembrança de declamar “Bicho-da-seda”. “Quando terminei, o público aplaudiu de pé e eu pensei: ‘Esse povo só pode estar louco’. Nessa mesma noite, quatro ou cinco editoras me procuraram. Foi assim que lancei A cor da ternura.”

Com sofisticado uso da língua, ela expõe contundente crítica social e ao racismo

Quando o trabalho que projetou seu nome nacionalmente chegou às livrarias, em 1989, a obra de Geni Guimarães incluía um volume de contos e três de poesia. O primeiro deles, Terceiro filho, de 1979, ganhou nova edição pela Malê em 2022, num projeto que inclui inéditos e reedições de outros títulos da autora, como o infantil O pênalti (2019) e Poemas do regresso (2020). Dedicado ao “compadre Cuti”, esse último representou seu retorno após um hiato de mais de uma década. “Fui casada por 26 anos. Quando meu marido [Idevaldo Guimarães] morreu [em 2003], caí numa depressão daquelas de não ter vontade de sair da cama”, lembra ela. Esse foi, no entanto, o único período em que se afastou do papel. “Escrevo porque tenho de escrever. É uma necessidade, uma explosão.”

Recentemente, Geni tem notado uma demanda maior por sua presença em eventos como A Feira do Livro, além de um crescente interesse por suas criações, reflexos do que considera ser um efeito do ativismo antirracista e também um reconhecimento tardio do talento de mulheres negras. Ainda que não possa aceitar todos os convites — ela não gosta de viajar e deixar a irmã com parente —, não deve demorar muito a publicar inéditos. “Estou escrevendo dois livros, um de contos, Contos de lugar comum, e outro de poesia, que por enquanto estou chamando de Via verso”, revela. “Mas nem falei ainda com as editoras. Não quero me sentir pressionada nem ter qualquer obrigação de escrever.”

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.