Bibliofilia,

Biblioteca a tiracolo

Recém-instalado em Lisboa, Alberto Manguel prepara a abertura de seu Centro de Estudos da História da Leitura em um palacete pombalino

01fev2021

Alberto Manguel acorda às cinco da manhã para que as tarefas da vida prática não o impeçam de fazer aquilo de que mais gosta e realmente lhe importa: ler. A partir da metade do dia, precisa dividir o tempo entre a leitura e a burocracia que a nova vida trouxe: encomendas que nunca chegam, livros que desaparecem na alfândega, infinitas visitas de técnicos que não são capazes de fazer a internet da casa funcionar e um telefone que resiste a memorizar os números. 

O modo mais lento de viver dos portugueses não o aborrece, isso o escritor até admira, mas sim a falta de praticidade, a dificuldade em resolver problemas. “Cada vez que me enviam algo por correio acontece alguma coisa, como se explica isso? Aqui não é preciso censura, o serviço da Aduana faz o serviço”, brinca. E, mais sério, anuncia: “Enquanto eu não tiver uma pessoa que se encarregue dessas coisas, deixarei de pedir livros”. Mesmo com esses contratempos, o bibliófilo parece feliz e animado com a mudança para Portugal. “Não quero viajar mais, não quero ir embora daqui, realmente quero ficar aqui bem quieto.” 

Nascido na Argentina em 1948, Manguel viveu a primeira infância em Israel — onde foi alfabetizado, em inglês e alemão — e aprendeu castelhano ao voltar para Buenos Aires, aos oito anos. Ainda na adolescência, a paixão pelos livros levou-o a um encontro que marcaria a sua trajetória. Trabalhando como livreiro, acabou por estabelecer amizade com Jorge Luis Borges, um dos ilustres frequentadores da prestigiosa livraria Pygmalion. Durante quatro anos frequentou a casa do escritor para ler em voz alta os livros que a cegueira impedia o autor de O aleph de visitar. 

Trabalhou em vários países e exerceu as funções de editor, jornalista e tradutor, mas prefere ser apresentado como alguém que lê e escreve sobre o que lê. “Os meus livros surgem de outros livros, do esforço de tentar entender as ideias de outros”, costuma dizer. Entre os seus títulos mais traduzidos estão Dicionário de lugares imaginários, Uma história da leitura e A biblioteca à noite (todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras).

No ano 2000, levou os cerca de 35 mil volumes para Mondion, uma aldeia de dez casas no centro-oeste da França, próximo de Poitiers. Nas ruínas de um antigo plesbitério, construiu a sua biblioteca com a ideia de que ali estariam, ele e os livros, até a morte. Não foi assim: em 2014 teve que encaixotá-los e guardá-los no depósito da sua editora no Canadá. 

Em 2016, meses depois de ter se mudado para Nova York, aceitou o convite do então presidente da Argentina, Mauricio Macri, e assumiu a direção da Biblioteca Nacional — posto que o seu mestre, Borges, exerceu por quase vinte anos. Após vários desentendimentos e alegando problemas de saúde, abandonou o cargo. Em visita a Portugal, comentou com a sua editora portuguesa, Bárbara Bulhosa, a dificuldade em encontrar um lugar para os livros. Instituições e governos de alguns países haviam manifestado interesse em acolher a sua biblioteca, mas nenhuma ideia havia avançado. Com a anuência do escritor, Bulhosa fez uma consulta à prefeitura lisboeta. As conversas avançaram e poucos meses depois foi anunciada a criação do Centro de Estudos de História da Leitura, que terá Manguel como diretor e sua biblioteca como principal atrativo. 

Em Embalando a minha biblioteca, Manguel conta sobre a dor que sentiu ao ter que encaixotar os seus livros sem saber se um dia voltaria a vê-los. Agora, seis anos depois, o sonho de reencontrá-los aproxima-se de se concretizar. Os livros já estão em Lisboa e em breve ocuparão os seiscentos metros quadrados do Palacete dos Marqueses de Pombal, edifício destinado a acolher o novo centro. 
Em dezembro, com a casa decorada de luzes de Natal, o ateu Alberto Manguel recebeu a Quatro Cinco Um para esta conversa.

Como andam os trabalhos para a abertura do Centro de Estudos de História da Leitura — há alguma previsão para a inauguração?
De certa forma já está inaugurado, porque o prefeito de Lisboa aceitou a doação dos meus livros e a proposta de criação do centro. Como vai estar alojado em um palácio, foram necessárias intervenções arquitetônicas no espaço. Elas devem durar cerca de dois anos. Enquanto isso, a catalogação dos meus livros, que agora estão depositados em um edifício dos Arquivos Municipais e que são cerca de 40 mil, começa a ser feita.

O sr. já disse que o centro será mais do que uma biblioteca pública, que promova encontros, seminários etc. Há alguma atividade já pensada?
A pedido da administração, já comecei a planejar. Teremos colaborações com outras instituições e usaremos outros espaços até que tenhamos o nosso edifício. Várias das pessoas que estão no comitê de honra do centro, como Margaret Atwood, Salman Rushdie e Chico Buarque, já disseram que querem vir participar. Evidentemente, com a Covid-19 as pessoas não podem viajar, mas vamos ser otimistas e apostar que a partir do verão já poderemos fazer algo. Além disso, em 2021 há uma data importante de Dante [setecentos anos de morte], e junto com institutos dantescos da Itália, universidades daqui e a Fundação Gulbenkian, faremos um seminário, patrocinado pelo centro, com leituras de Dante.

‘Penso que uma biblioteca pode ser tudo, menos política, no sentido de política partidária’
 

Por falar em Dante, em algum lugar li que o sr. costumava começar o dia lendo um fragmento d’A divina comédia. Ainda faz isso?
Sim, continuo. Leio um canto a cada manhã. O de hoje foi muito lindo, foi o canto ao final do Paraíso, em que São Bernardo se dirige, com um belíssimo hino, à Virgem Maria, pedindo que ela interceda para que Dante tenha a visão dividida. São Bernardo diz à Virgem: Filha do seu filho. É uma ideia maravilhosa que reflete a trindade incorporando o feminino.

É a sua religião?
Não, eu não sou religioso, não creio em Deus.

Digo, a literatura é a sua religião? Há quem pela manhã leia a Bíblia, o sr. lê A divina comédia
Eu não leria a Bíblia pela manhã porque acho muito sanguinária… Dante me satisfaz de maneira muito íntima. E agora, depois de um canto, leio literatura portuguesa. Acabo de terminar Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, e Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, que se lê como um livro de aventura.

O convite para dirigir a Biblioteca Nacional, até pela relação que o cargo tem com Borges, parece ter sido irrecusável. Mas o sr. teve muitos problemas lá, enfrentamentos públicos, reclamou da falta de recursos. Se arrepende de ter aceitado?
Não, ao contrário. Eu tinha muito medo porque não sou um bibliotecário e além disso sabia que estaria sob a sombra de Borges. Mas tinha claro que poderia fazer o meu trabalho como diretor sendo um administrador, confiando no trabalho que as pessoas sabem fazer. O problema é que na Argentina o posto de diretor da Biblioteca é político, e eu não queria ser identificado com algum partido político, porque penso que uma biblioteca pode ser tudo, menos política, no sentido de política partidária. 

Pelo risco de, ao mudar o partido que está no poder, perder-se o trabalho feito?
Elimina-se tudo o que foi feito. Procurei recuperar algumas coisas da administração anterior, embora ela fosse um desastre, continuei outras já iniciadas. Durante os dois anos e pouco em que estive lá, tentei que a Biblioteca fosse universal no sentido que Borges queria, que fosse internacional, que tivéssemos acordos com entidades fora da Argentina, e isso agora foi totalmente cortado. Volta a ser o que era antes, com uma ideia de nacionalidade em tudo, o que está além da fronteira argentina não existe. É a mentalidade que levou, por exemplo, o júri do Prêmio Nacional a premiar um escritor, hoje esquecido, que falava sobre os gaúchos, e não a Borges, com o seu livro Ficções, porque Borges não lhes parecia argentino. É uma doença, não só argentina, mas de muitos países, mas acho que não encontrarei isso em Portugal. 

Acho que em Portugal há um orgulho com a questão da literatura; inclusive falam, em tom meio pejorativo, que é um país de 10 milhões de poetas. No Brasil somos 200 milhões de técnicos de futebol.
Isso se manifestou na Argentina com a morte de Maradona, quando foi declarado luto nacional de três dias. Quando morreu Borges, quando morreram os prêmios Nobel de ciência, nada. Alguém me disse que Borges nunca marcou um gol na vida e por isso não teve luto [risos]. Aqui em Portugal, quando morreu o filósofo Eduardo Lourenço, foi declarado um dia de luto. É essa a diferença de identidade, de posição diante do mundo.

Um dos episódios de enfrentamentos na Argentina foi quando montaram um campo de futebol no estande do país na Feira do Livro de Bogotá. O sr. pediu desculpas pelo “vergonhoso gesto de populismo”…
O ministro da Cultura nunca me perdoou por esse comentário… Isso é uma besteira porque é confrontar coisas que não precisam ser confrontadas. O esporte é maravilhoso, mas se alguém tiver de dizer quais são os atos humanos que transformam o mundo, um gol não estará entre eles. É algo que diverte, do qual as pessoas gostam, mas não muda o mundo. Uma linha de poesia ou um descobrimento da ciência, sim, mudam o mundo. 

Voltar à Argentina foi difícil?
Quando nasci o meu pai foi nomeado embaixador e nós fomos para Israel. Voltamos quando eu tinha oito anos e fui embora com dezenove. Vivi onze anos na Argentina. Foram anos importantes da minha educação, mas depois eu fui embora e não voltei mais a morar lá. Voltei para visitar, para receber um prêmio, mas vivi no Canadá e na França muito mais tempo do que na Argentina. Portanto, a minha relação, quando voltei, era a de alguém que reconhecia a dívida que tinha pela educação que havia recebido. Não creio em uma nacionalidade imposta por um passaporte. Para mim é como um casamento arranjado, quero me casar por amor, não quero que me imponham uma nação. E foi por isso que me tornei canadense e que talvez, no futuro, me torne português. Até porque não quero viajar mais, não quero ir embora daqui, realmente quero ficar aqui bem quieto. 

Qual foi a primeira coisa que leu escrita em português, o sr. se lembra? 
As primeiras coisas que li em português, traduzido, obviamente, foram livros de Monteiro Lobato. Na Argentina ele era um escritor reconhecido, e eu gostava muito, ainda gosto. No meu livro Monstros fabulosos falo dele. Durante muito tempo li mais literatura brasileira do que portuguesa. E depois descobri Saramago e Lobo Antunes. E os poetas, os poetas portugueses. 

Em Embalando a minha biblioteca, o sr. escreve: “O único método que leva comprovadamente ao nascimento de um leitor não foi, tanto quanto sei, ainda descoberto”. Não acredita em planos de leitura, em políticas públicas de leitura? 
A leitura é uma atividade que forma parte das atividades humanas de uma sociedade. E por isso é afetada pelos valores que essa sociedade propõe. Você não pode fazer com que as pessoas comam menos açúcar se toda a publicidade que se vincula é sobre Coca-Cola, chocolates e doces. A mesma coisa acontece com a leitura, que é uma atividade que é pausada, tem o seu próprio ritmo e é difícil. Difícil no sentido meritório da dificuldade, porque é algo que temos que encontrar estratégias para enfrentar. Eu diria que quanto melhor for um texto, mais níveis ele vai ter e mais trabalho vai requerer. E tudo o que a sociedade hoje em dia nos propõe é o contrário: é o rápido e o fácil. Você não vai vender um produto dizendo: isto é difícil e lento. Ninguém vai comprar. Então, os programas de fomento à leitura são hipócritas ou, no melhor dos casos, inocentes, porque estão propondo uma atividade que todo o resto da sociedade contradiz. O que fazer? Bom, uma revolução [risos], eliminar o sistema capitalista. Mas isso não vai acontecer amanhã. 

E o que podemos fazer?
Bom, podemos talvez dar o exemplo da paixão pela leitura. Um professor, uma professora, um pai que é apaixonado por ler talvez consigam transmitir essa paixão para os mais jovens. Mas isso não é uma regra: há adultos que leem muito e que se relacionam com jovens que não leem, e vice-versa.
 
Em Notas para uma definição do leitor ideal, que acaba de sair no Brasil, o sr. lista, com bom humor, as características do leitor ideal. Mas, se me permite, há uma que o sr. não menciona e que acho importante: o leitor ideal anota nos livros a lápis, nunca à caneta, não é?
Você anota nos livros?

Anoto, sempre a lápis.
Está bem isso… A lápis ou até à caneta, não sou um fetichista dos livros. Gosto do objeto livro, mas acho que uma pessoa deve estabelecer uma conversa com o livro, escrever nele. Gosto muito de comprar livros usados e encontrar os comentários de outros leitores.

É curioso reler livros e encontrar notas que a gente deixou. É como voltar no tempo e visitar a quem era no passado. 
E pensar: que estranho que eu pensava tal coisa. Por que grifei tal frase? Nós nos transformamos em leitores distintos conforme passam os dias. 

Por isso pode-se ler o Quixote infinitas vezes…
Sim, além disso eu tenho várias edições do Quixote e em cada uma delas tenho muitas anotações. A que tenho agora, que é uma edição de bolso, está cheia de anotações.

Quando o sr. teve que encaixotar a sua biblioteca, sem saber se voltaria a vê-la, salvou algum livro?
Na verdade não, não quis. Só peguei a minha Alice no País das Maravilhas, porque sempre estou com ela, e trouxe uns outros livros porque precisava para trabalhar. Mas agora estarão todos na biblioteca do centro, que será como uma sala da minha casa. 

E a ideia de que as pessoas irão a essa biblioteca e encontrarão as suas anotações não o incomoda?
É um pouco estranho. Aby Warburg [historiador de arte alemão], que tinha uma biblioteca muito pessoal, organizada segundo a sua forma de pensar e fazer associações, ficou louco quando, convencido por outras pessoas, abriu a biblioteca ao público. Foi levado a um manicômio. Porque é como se alguém entrasse na sua cabeça. Sei que isso vai acontecer, mas já estou no final da vida. Então, se as pessoas encontrarem essas notas minhas e pensarem “que divertido” ou “que idiota”, tudo bem.

‘Se alguém tiver de dizer quais são os atos humanos que transformam o mundo, um gol não estará entre eles’

O sr. diz que toda biblioteca é uma tentativa de controlar o caos da vida. Por quê?
Montar uma biblioteca é, de alguma maneira, colocar ordem no universo. No final das contas, o que é uma biblioteca? São os livros nos quais assentamos as nossas experiências, opiniões e imaginações. Então, eles juntos são um reflexo, parcial, do mundo. Colocá-los em uma biblioteca, em ordem alfabética, temática ou qual seja, é dar uma certa ordem a essa desordem total do universo. 

E acreditar que os livros podem nos trazer algumas respostas, ainda que isso dificilmente aconteça…
Eu não diria respostas, eu diria melhores perguntas. Perguntas formuladas de uma melhor maneira. Uma frase que lembramos de um livro diz, de certo modo e melhor, o que pensamos em dado momento da vida. Isso me comove muito, encontrar os meus pensamentos ditos de melhor maneira por outra pessoa. 

E em um momento como o que estamos vivendo, em que não há certeza de nada, os livros podem ter um papel? De consolo ou de vaticínio? 
Antes do coronavírus pensávamos que mais ou menos sabíamos e entendíamos onde estávamos, qual era o nosso futuro, o que faríamos todos os dias. De repente isso se interrompe, se quebra, e pensamos: meu deus, o que vamos fazer agora? 

Mas não é a primeira vez que isso acontece. Passamos por guerras mundiais, epidemias, crises pessoais, econômicas, emocionais, e cada vez nos parece que é a primeira vez. E para isso estão os livros, para nos dizer que não, que isso já aconteceu. Por exemplo, para saber sobre isolamento? Leia Robinson Crusoé. Sobre a falta de sentido do tempo? Viagem ao redor do meu quarto. A ideia de formar uma identidade parcial? Memórias póstumas de Brás Cubas. Então, tudo já está antes ali, na biblioteca, e isso me consola. 

E os livros podem nos defender dos extremismos?
O livro não é nada mais do que um objeto de papel com manchas de tinta. Quando o abrimos, há dentro dele um texto. Se você, como leitor, pode encontrar nesse texto alguma ideia que te ajude, então o texto te ajuda. Mas veja que, por exemplo, na Argentina, durante a ditadura, alguns dos militares que comandavam o país eram muito instruídos, liam literatura francesa. E isso não servia para nada. A literatura para eles se detinha quando o livro era fechado, e eram torturadores, assassinos…

É perturbador pensar que alguém pode se emocionar com um poema e ser um assassino, não?
Escrevi um romance sobre isso. É o meu primeiro romance, Notícias de um país estrangeiro. E é sobre isso, sobre um homem, um militar muito culto, apaixonado pela sua família, que é um torturador.

Por isso um livro não é suficiente para salvar-nos…
Olha, nas Aventuras de Pinóquio, quando ele não quer ir à escola para não ter que enfrentar os meninos que caçoam dele, há um momento em que um garoto arremessa um manual de matemática na cabeça do outro e o mata. Um livro pode servir como arma, um livro não tem obrigação de nada, somos nós que convertemos esses instrumentos no que são. Podemos usar uma faca para passar manteiga no pão ou para matar alguém; a culpa não é da faca.

Depende de aquele que abrir o livro dar uma utilidade para ele, não?
Sim, de quem o abra e de como o abra. Não há definição dogmática nesse sentido. 

Quem escreveu esse texto

Ricardo Viel

É diretor de comunicação da Fundação José Saramago, em Lisboa