Kalaf Epalanga
Um benguelense em Berlin
Paternidade
Não consigo deixar de me comover ao ver meus filhos começarem a inventar o mundo, tendo-me como companheiro e testemunha de seu deslumbramento
01out2019Nada nos prepara para o acontecimento maravilhoso e absolutamente assustador que é ser pai. Por mais livros que se leia sobre o assunto, por mais aulas que se tenha. Desde o momento em que começam as contrações, no instante em que as águas se rompem e a mãe da tua criança olha para ti com os olhos de espanto, questionando se vão a correr para a maternidade ou se esperam até que as contrações tenham a duração de um minuto e ocorram num intervalo de sete minutos. E tu, tentando manter a calma, pois qualquer sinal de pânico da tua parte é contraproducente, só irias estressar ainda mais a mãe da criança. Lá voltas a visitar os passos ensaiados na derradeira semana. O saco com as roupas e provisões para o hospital. As chaves de casa, a carteira de documentos. E se passares as primeiras horas sem sobressaltos, sem ceder ao nervosismo e sem desesperar com o estado de inutilidade absoluta que se abate sobre ti, durante as horas de dor, suor e agonia por parte da tua parceira, nada te prepara para o momento em que seguras finalmente a tua criança pela primeira vez, um ser minúsculo e indefeso. E quando eles olham fundo para dentro dos teus olhos derretendo o teu coração, finalmente a ficha cai. Foda-se, sou pai! Como explicarei a esse pingo de pessoa como é que o mundo funciona, se eu próprio ainda estou à procura de respostas?
Sinto que fui pai tarde. As circunstâncias em que me encontro hoje são diferentes daquelas que conheci
Por onde começar? Uma vez passado o nascimento e com a mãe e a criança saudáveis, a paternidade é um exercício relativamente simples de pôr em prática. Imagina-te no estado de dependência absoluta em que não dominas o verbo e chorar é a única ferramenta ao teu dispor para manifestar as tuas necessidades. Como gostarias que fosses tratado? Desde que tenha comida, fraldas limpas, temperatura do quarto amena e o ruído ao redor relativamente controlado, não há nada que enganar. A vida é simples. Ser pai passa essencialmente por voltar a reconectar-nos com os nossos instintos mais primários. Já estivemos no lugar do bebê que temos agora nos braços, só não temos é memória desse tempo. Por isso, em momentos de desespero, é só respirar fundo e lembrarmo-nos de que já fomos também esse ser que só chora, come e caga.
Termos tido exemplos ao longo das nossas vidas ajuda a voltar a traçar o caminho de volta a nossa infância. Quanto muito não seja, a gerir melhor as nossas ansiedades. Certa vez, ainda eu longe de me imaginar pai de duas crianças, em Prenzlauer Berg, na zona leste de Berlim, ao observar a forma como um dos meus melhores amigos brincava com as suas crianças, não resisti em colocar-lhe a questão: como aprendera a paternidade? Ele afirmou que tudo o que sabia aprendera com o seu pai. Acrescentou ainda que algumas mulheres adquirem esse conhecimento instintivamente, mas a nós, homens, resta-nos ter a sorte de ter alguém com quem aprender. Alguém que nos mostre coisas elementares como fazer o nó de uma gravata, porque, como se sabe, na hierarquia do estilo um bom fato continua a ser um trunfo para quem o veste. Ganhei interesse por essas peças de vestuário vendo os filmes de Sidney Poitier ou com a forma impecável como o Rat Pack de Frank Sinatra, Dean Martin e Sammy Davis Jr. se apresentava. Nessa altura, desejava que tivesse sido com o meu pai o despertar do gosto por gravatas, botões de punho e fatos de bom corte, imaginava-lhe o orgulho que iria sentir ao ensinar-me a dar o nó Windsor na minha primeira gravata. Contudo, as palavras do meu amigo sobre paternidade ainda hoje ecoam em mim e não foram poucas as vezes em que me questionei se serei um bom pai, principalmente, porque entre o meu progenitor e mim, digamos que existe um relacionamento distante.
A invenção do mundo
Sinto que fui pai tarde. As circunstâncias em que me encontro hoje são diferentes daquelas que conheci quando acordei para a vida, a ponto de parecerem ter ocorrido numa outra encarnação. Não consigo deixar de me comover, sempre que saímos porta fora para explorar os quatro cantos do bairro Winsviertel e ver os meus filhos começarem a inventar o mundo: tendo-me a mim ora como companheiro de aventura, ora como mera testemunha do seu deslumbramento diante da grandeza das coisas. Vê-los começar a inventar a terra úmida depois da geada matinal, a água, as pedras dos canteiros das árvores, seguindo-se a tangerina, o morango e a banana. Depois as bicicletas e os cães e por fim as tílias ainda com a nudez de um dos períodos mais frios do ano, janeiro. Mas sem deixarem de ser belas, erguidas na berma da calçada demarcando a fronteira entre o chão que te é permitido explorar com algumas limitações, como é evidente, e a estrada, esta sim — zona de exploração totalmente interdita.
É claro que a estrada ainda não se chama bem estrada, é apenas um outro país, um outro mundo. Um cheiro anónimo, como todas as coisas proibidas, que só lhes são permitidas explorar carregados ao colo. Esse mundo proibido e cobiçado. Carrega o mesmo nome que muitos dos objectos espalhados pelo apartamento, uma lista extensa que inclui os vinis, a aparelhagem de som, as colunas, as plantas junto à janela, o quadro do Vhils. Todos esses objectos, tal como a estrada, são identificados por uma pequena e única palavra de três letrinhas — Não.
Não tenho respostas absolutas sobre o que é ser pai, apenas a certeza de que estou a aprender a educar dois indivíduos para o mundo
Chegará à altura em que começarão a atribuir significado às palavras. Amor, medo. E, quando isso acontecer, estarei aqui, ajudando-os a navegar por entre o dito e não dito. Ajudá-los a identificar a importância do aceno com que todos os negros se saúdam quando se cruzam em terra estrangeira. Ao contrário dos caucasianos, que se comportam de forma completamente oposta: uma vez em terra estrangeira, tentam ao máximo se distanciar dessa condição, evitando a necessidade de reconhecer ou identificar no outro um sentimento de pertença. Salvo, claro, os australianos, que por terem percorrido um caminho tão longo, sentem a mesma necessidade que os negros, sempre que se cruzam com um compatriota. Enquanto em nós a cor não é apenas um tom de pele, e não me refiro apenas à hecatombe que foi a escravatura, embora esta tenha que ser levada em conta quando afirmamos que a cor negra é uma pátria, uma nacionalidade que todos carregamos, independentemente do sítio onde tenhamos nascido ou da cidade que tenhamos escolhido para morrer. Ser negro é ser africano, é ser daquele continente, ainda que nunca tenhamos posto lá os pés. Por isso acenamos sempre que nos cruzamos com um semelhante.
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Não tenho respostas absolutas sobre o que é ser pai, apenas a certeza de que estou a aprender a educar dois indivíduos para o mundo. Quando estes saírem de casa, espero que carreguem consigo essa coisa nobre de acreditar que para as ideias e para as pessoas não há moeda maior do que a liberdade de existir.
Nota do editor
Kalaf Epalanga é o novo colunista da revista dos livros, onde passa a publicar mensalmente.
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