Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Pária armado, Brasil

O Cala-Boca não só não morreu como atua lépido e fagueiro nos diversos escalões da extrema-direita

20set2022 | Edição #62

Segunda, 12 de setembro

Últimos preparativos para o encontro, na quinta-feira, com Isabel Lucas. Discutiremos, na sede da Secretaria Geral Ibero-Americana, em Madri, Viagem ao país do futuro (Cepe), livro que combina ensaio e reportagem em torno do que de mais importante se escreveu e escreve na literatura brasileira. O convite veio da Embaixada de Portugal na Espanha, que pretende comemorar os 200 anos de Independência formal do Brasil em diálogos entre autores dos dois países. Peço que acrescentem ao material de divulgação o título de meu livro mais recente, Diante do fascismo: crônicas de um país à beira do abismo, publicado pela Tinta-da-China Brasil.

Terça, 13  de setembro

Desembarco numa escala em Amsterdã com o roteiro alinhavado. Nas duas horas de fila para a inspeção de segurança, consigo resgatar no Google a frase de Antonio Candido que, por ironia e precisão, cairia bem na abertura da conversa: “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”. Decido também que mencionarei o alívio de lembrar a Independência por uma das expressões possíveis da autonomia, a criação literária, num momento em que a data nacional foi celebrada, em Brasília e no Rio, entre paradas fascistas e comentários sobre a resiliência erétil do inquilino do Planalto. Ao desembarcar em Madri, Patricia Severino, responsável pelo evento e pelo convite, me diz, pelo telefone, que o encontro foi desmarcado “a pedido” do embaixador brasileiro, Orlando Leite Ribeiro, que não poderia comparecer. Na fila do táxi, repito para ela minha frase favorita nos últimos tempos — “é espantoso, mas não surpreendente” — e fico sabendo que “espantoso”, em espanhol, tem o sentido de assustador, terrível. Risos nervosos.

Quarta, 14 de setembro

A desculpa esfarrapada da diplomacia não se sustenta pela lógica e não resiste a consultas informais feitas em off lá e cá. Era isso mesmo: alguém decidiu que não seria possível a presença de autor de tal livro, mesmo como entrevistador, numa atividade oficial. Firme nas diretrizes olavistas de transformar o Brasil em pária internacional, decidiu-se agir também no miúdo, no que se tem como pouco importante: literatura, cultura, vida intelectual. O silêncio que se seguiria nutre o malefício da dúvida: que o motivo não fique jamais claro, que sempre se possa desmentir o desmando por falta de evidência objetiva, desqualificar o interlocutor. Pela segunda vez de 2018 para cá, o título Diante do fascismo desperta reações, digamos, espantosas.

Quinta, 15 de setembro

Isabel, que ainda pensava ir a Madri, desiste da viagem diante da total falta de perspectivas de uma alternativa à sessão. Ao “aproveite Madri” que recebi como consolo para a viagem fracassada, só consigo ir ao Reina Sofia rever a Guernica. Me emociono à beira das lágrimas e sinto olhares curiosos dos turistas, em sua maioria aborrecidos por não poder fotografar o horror convertido em cartão-postal. “Era só explicar que é brasileiro, todo mundo entenderia”, observou depois uma amiga. No museu, o Brasil brilha na exposição Giro gráfico — Como a hera no muro, assim definida por seus curadores: “uma viagem pelas iniciativas gráficas que, desde a década de 1960 até o presente, enfrentaram contextos de emergências politicamente opressivas na América Latina”. Lá estão delicados bordados do coletivo “Ponto de Luta”, de Belo Horizonte, e a eloquente faixa com que o Coletivo Vão denunciava em uma palavra o conspirador-mor no golpe contra Dilma: “Canalha”. Depois de longa reflexão, vem a necessidade de contar o acontecido nas redes sociais. O fio no Twitter dá início a uma espiral de perguntas, versões, telefonemas e milhares de mensagens que atravessam a madrugada madrilenha.

Sexta 16, de setembro

Tresnoitado, tentei uma vez mais “aproveitar Madri” entre as sombrias Pinturas negras de Goya. Transplantadas das paredes da Quinta del Sordo, onde o pintor viveu na velhice, as quatorze telas expostas no Prado são vislumbres do horror em diversos sentidos, da solidão do Cão semi-afundado ao grotesco Saturno devorando um filho. Em El aquelarre o El gran cabrón, em que o Diabo, como um portentoso bode, fala a uma aglomeração de bruxas, reconheci de imediato uma certa reunião ocorrida em maio de 2020 — de lá para cá, algumas bruxas mudaram, mas o Cabrón é o mesmo. O mesmo que interrompe a imersão no mal simbólico para que eu tenha de lidar com o real das reportagens que se fazem sobre a patuscada. Em off, o cinismo diplomático alcança dimensões portentosas. É mesmo espantoso, no sentido espanhol.

Sábado 17, de setembro

Não há energia nem para aproveitar um resto de Madri. A solidariedade, que vem de toda parte civilizada, é essencial mas insuficiente para dispersar o mau hálito do Cala-Boca, que não só não morreu como atua, lépido e fagueiro, em escalões diversos da extrema-direita. Pouco concentrado, folheio Los nuevos fascismos: manipular el resentimiento, de Alberto González Pascual, e queimo o dia em caminhadas a esmo. Enquanto isso, acompanhado por um líder neopentecostal, o primeiro casal cruza o Atlântico para fazer do esquife de Elizabeth II um banquinho de comício. Querem mostrar assim como o Brasil que destruíram é um sucesso — e talvez o seja mesmo, na ambição de transformá-lo em pária.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.