Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Fran de A a Z

Personagem de documentário e de si mesma, a escritora que não escreve faz da idiossincrasia uma arte divertida e cruel

26jan2021 | Edição #42

Fran Lebowitz parece — só parece — talhada para a preguiça de nosso tempo. Uma autora que se pode citar, em rede social ou conversa, sem precisar ler uma linha do (pouco) que escreveu. Protagonista do mais festivo writer’s block de que se tem notícia, muito mais complexa do que supõe a histriônica personagem de si mesma, ela sucumbiu ao que parece ter se tornado um dos destinos inelutáveis da vida cultural: virar série de streaming. Em Faz de conta que NY é uma cidade, Martin Scorsese fatia em sete capítulos a verve inesgotável de sua velha amiga, num documentário tão aleatório quanto este alfabeto, tão idiossincrático quanto as opiniões que fizeram a fama da figuraça que é sua razão de ser.

AUTOCRÍTICA

O nome de Dorothy Parker sempre vem à baila quando se fala em Fran Lebowitz. A comparação, mais do que lisonjeira, lhe parece francamente inadequada. Parker, afinal, é autora de contos memoráveis, poemas divertidíssimos e copiosas críticas de teatro ou literatura que continuam atualizando nossas ideias de crueldade. Já Lebowitz não produz um mísero inédito há pelo menos 25 anos. A autocrítica selvagem é o melhor (para nós) e o pior (para ela) de uma escritora que não escreve. O motivo é surpreendente: no fundo, ela admite nutrir pela palavra escrita uma séria reverência, atitude estranha a tudo que fala e pensa.

BIBLIOGRAFIA

Fran Lebowitz vive entre 11 mil livros e, em cinco décadas de trabalho, escreveu apenas três — Metropolitan Life, Social Studies e Mr. Chas and Lisa Sue Meet the Pandas. Os dois primeiros, de 1978 e 1981, são coletâneas do que publicara na imprensa. O outro, uma incursão extemporânea no universo infantil. Vira e mexe seus livros adultos são reeditados, não propriamente por serem best-sellers — talvez porque, o que não é difícil imaginar, de quando em quando alguém queira conhecer melhor a autora mordaz que pontifica sobre tudo em revistas e jornais, talk shows e palestras. Enquanto espera o original de um romance, longamente prometido e por diversas vezes adiado, seu editor gosta de dizer que tem o emprego mais fácil do mundo. 

CLICHÊ

A primeira e talvez a última vez em que clichê e Fran Lebowitz conviveram numa frase foi quando ela chegou a Nova York, em 1970: era a pessoa certa, no lugar certo, no momento certo. A menina de vinte anos, tímida e ácida, que abandonou a faculdade para viver em Manhattan — a setenta quilômetros e anos-luz distante de Morristown, a cidadezinha de Nova Jersey em que nasceu —, foi motorista de táxi e faxineira e, em pouco tempo, assinava “I cover the waterfront”, coluna que manteve por dez anos na fase heroica da Interview, a revista fundada por Andy Wahrol.

DÂNDI

Fran Lebowitz só usa roupas masculinas. Variações em torno de jeans clássico, botas de caubói, camisa branca, blazers e sobretudos bem cortados, chiquérrimos. No documentário nega publicamente, diante de um auditório, que se possa falar em seu lifestyle, jura que jamais usaria a palavra. A Scorsese, mostra, orgulhosa, abotoaduras desenhadas e confeccionadas pessoalmente por Alexander Calder. E não consta que reclame por ser figurinha fácil nas disputadas listas de “mais bem-vestidos” da Vanity Fair, revista que talvez tenha sido seu último trabalho regular.

ESPORTES
 

Odiar esportes é uma espécie de aberração social — e vos digito essa frase com conhecimento de causa. Ao entrevistar Fran Lebowitz, Spike Lee não se conforma que ela não considere Michael Jordan um gênio da estatura de Michelangelo. A única exceção que ela concede na conversa com o cineasta é seu interesse, como personalidade, por Muhammad Ali. Assistiu em lugar privilegiado ao mitológico enfrentamento de Ali com Joe Frazier. Para ela, a noite do Madison Square Garden, em 1974, foi um evento de moda, cultura e política — desgraçadamente em torno de uma luta de boxe. 
 
FRASE

O frasista é refém de sua verve. Espera-se dele, sempre, nada menos do que a tirada certeira, a inteligência luminosa, a crueldade recreativa. Bernard Shaw e Otto Lara Resende, Millôr Fernandes e Mark Twain são muitas vezes mais citados do que lidos — o que não deixa de ser uma homenagem, o que não está longe de sugerir um certo desprezo pelo escritor.  Fran Lebowitz vive sozinha, cercada por suas frases e sustentada por elas. “Se eu me preocupo por um dia não ter mais nada a dizer? Não. Me preocupo é em um dia não ter mais dinheiro”, diz numa entrevista para promover as entrevistas exibidas na Netflix.

GRANA

A equação é difícil: Fran Lebowitz não gosta de dinheiro. Mas gosta de coisas: móveis, roupas caras, livros a mancheias. Essa conta não costuma fechar. Acha imoral que em Manhattan um apartamento custe 20 milhões de dólares, mas adora frequentá-los. Gostaria de ter um avião particular, como aqueles em que anda de carona. Mas se o tivesse, não convidaria ninguém — afinal, a graça de ter um avião privado é que ele seja privado. Fran Lebowitz é coprodutora do documentário.

HABITAÇÃO

Fran Lebowitz tem certeza de que é a única pessoa que nunca fez bom negócio no obsceno mercado imobiliário de Nova York. Sempre pagou mais do que podia e devia, fechou negócios antes da queda dos preços. Abarrotado de livros, o apartamento em que vive — e que ela não mostra — é sua ideia de paraíso. Sem celular, tablet ou mesmo computador, isolamento para ela é regra, não exceção. Desde que possa falar no telefone (fixo) e pedir comida.

IDIOSSINCRASIA

Idiossincrático é quem pensa coisas inconfessáveis como todo mundo, mas que, como poucos, não só as torna públicas como faz delas fundamentos de sistemas de julgamento incompatíveis com o chamado senso comum. Como o único defeito do senso comum é não ser propriamente “comum”, Fran Lebowitz é a porta-voz mais autorizada da diáspora dos implicantes, encarnação perfeita do esprit de corps dos espíritos de porco.

JAZZ

Fran Lebowitz escreveu para a Changes, revista da pirada Sue Mingus, mulher dele mesmo, Charles Mingus. Um dos maiores músicos do século 20 foi capaz de, por pura implicância com a jovem jornalista, pular do palco do Village Vanguard e persegui-la correndo Sétima Avenida abaixo. O mesmo Mingus, que cultivava contrabaixos e espingardas, a convidaria para um café da manhã em que parecia intimidado como uma criança diante da única pessoa que respeitava, Duke Ellington.

KHOMEINI

“Dei menos festas na vida do que o aiatolá Khomeini”. LEBOWITZ, Fran.

LAW AND ORDER

Acostumada a encenar a própria vida, Fran Lebowitz viveu uma outra, a da juíza Janice Goldberg, em oito temporadas de Law and Order. Só topou o bico de atriz porque estaria sempre sentada, já que se diz incapaz de decorar falas e obedecer a marcas do diretor. Em O lobo de Wall Street faz uma ponta, também como juíza. Sentada, é claro. 

MELANCOLIA

Foi na escola que Fran Lebowitz constatou, pela primeira vez na vida, não ter talento. Até podia tocar violoncelo, como fazia numa orquestra de estudantes, mas deu-se conta de que jamais seria realmente boa. A autocrítica exacerbada cobra seu preço, geralmente mais alto do que é possível pagar. Em meio a gargalhadas, Fran Lebowitz mostra, aqui e ali, uma leve melancolia — que é, afinal, o ônus das dívidas que jamais conseguiremos saldar.

NOSTALGIA

Fran Lebowitz é avessa à nostalgia. Quando perguntam se não sente falta da Nova York dos anos 1970, suja e vibrante, costuma lembrar que, nos anos 1970, jamais se imaginou vivendo quarenta anos antes. A relação que mantém com a cidade é a tal ponto simbiótica e sincera que a impede de parasitar a memória de outros tempos. Facilidade não é mesmo com ela. 

OPINIÃO

Fran Lebowitz boa é a Fran Lebowitz dos outros. Duvido que seria idolatrada por aqui, com o entusiasmo com que se fala do documentário, alguém que defendesse pontos de vista tão impopulares. Entre nós, a regra ao manifestar posicionamento forte e divergente é ouvir a ressalva indignada: “Isso na sua opinião, né?”. Se ainda restar energia para lembrar que o próprio de uma opinião própria é ser, digamos, própria, vem a segunda pergunta: “E quem é você para achar isso?”. 

PREÇO

A plateia de uma casa de leilões ouve, em silêncio, o anúncio do próximo item, um Picasso. Em lances tensos, bate-se o martelo em 160 milhões de dólares. A plateia vibra. A história, verdadeira, de um público que aplaude preços e não artistas é, contada por Fran Lebowitz, a melhor definição que se pode ter do cassino conhecido como mercado de arte.

QUIZ

Do Guia Vocacional para Pessoas Realmente Ambiciosas, um dos testes na categoria “Então você quer ser um ditador?”:
“Quando diante de uma multidão de desconhecidos, minha primeira reação é:
1. Me apresentar a qualquer um que pareça interessante.
2. Esperar que venham falar comigo.
3. Sentar num canto e fechar a cara.
4. Começar um expurgo”.
“O emprego”, observa ela num capítulo de Metropolitan Life, “requer estamina, iniciativa e determinação. Não recomendado para os tímidos”.                               

REACIONARISMO

A direita civilizada — e não a excremental, no poder no Brasil e nos Estados Unidos — adora autores como Fran Lebowitz. A fúria desmistificadora e as frases bombásticas, muitas vezes maleáveis a contextos diversos, são ideais como confirmação intelectualmente idônea de suas ideias regressivas. Fran Lebowitz jamais se declarou feminista e, sendo gay, manteve-se longe da militância. Mas não é fácil cooptá-la — como mostra, no documentário, seu elogio ao movimento #MeToo, que encerrou carreira de amigos seus. 

SCORSESE

Em 2010, Martin Scorsese já tinha rodado, para a HBO Public Speaking, 1h24m de pura Fran Lebowitz, falando pelos cotovelos. Faz de conta que NY é uma cidade amplia a conversa para mais de três horas e mostra, em Scorsese, um talento tão espantoso quanto as obras-primas que realizou: a capacidade de entregar-se a delírios de gargalhadas ao ouvir histórias que, provavelmente, conhece faz tempo.

TRANSPORTES

Fran Lebowitz odeia aviões (comerciais) e ama odiar o transporte de Nova York. Faz perguntas boas: por que gastar milhões para reformar estações de metrô, impor a elas obras de arte francamente desnecessárias, se o serviço continua sofrível (para os padrões locais, bem entendido) e os vagões continuam a feder? Por que diabos um motorista de ônibus, que trabalha sempre na mesma linha e a princípio não está ocupado decorando as falas de Ricardo 3º, diz não saber qual ponto fica próximo de tal rua? Por que motoristas de táxi têm o direito de dirigir alucinadamente?

 URBANIDADE

O título e parte importante do que se vê em Faz de conta que NY é uma cidade dizem respeito às muitas preocupações de uma cidadã apaixonada. O individualismo radical de Fran Lebowitz resulta em curiosa preocupação comunitária: uma cidade deve ser funcional e anônima o suficiente para que cada um possa viver de acordo com seus padrões, sem ser submetido ou se impor. Num dos altos momentos de Metropolitan Life, faz um manifesto contra a música indesejada: nos elevadores, na espera do telefone, no supermercado, no aeroporto. “Música boa é a música que eu quero ouvir. Música ruim é a música que não quero ouvir.” Me parece justo. 

VELHICE

Há pouca coisa mais cretina do que definir pessoas, positiva ou negativamente, pela idade que têm. A menos, é claro, que você queira lhes vender algo. Assim falou Fran Lebowitz.

WARHOL

Andy Warhol nunca gostou de Fran Levowitz. A recíproca era verdadeira. Um dia, ela decidiu vender as obras dele que tinha em casa. Foi pouco antes de sua morte. Pouco antes de elas se valorizarem absurdamente. O tino para negócios do mercado imobiliário se repete no mercado da arte. 

X-RATED

Logo que chegou a Nova York, Fran Lebowitz foi ghost-writer de livros pornográficos. Ganharia quinhentos dólares por livro — seu aluguel, na época, era de cem dólares. Organizada, a editora enviava um guia do que devia e do que não podia motivar os personagens. O livro, o único que conseguiu entregar na série, virou uma festa coletiva em que vários amigos, muitos deles chapados, escreviam partes da história. A colaboração de todos foi paga e, para ela, sobraram 40 dólares. Além da certeza de que jamais deveria haver cenas de sexo entre homens. “Eles esperam ser presos para fazer isso”, concluiu. 

YOGA

Jamais passou pela cabeça de Fran Lebowitz praticar yoga. E isso quando ela nem supunha as multidões de pessoas carregando tapetinhos a tiracolo.

ZEN

Como uma sábia tibetana, Fran Lebowitz garante: “Bastaria uma viagem de metrô para que o dalai-lama se tornasse uma pessoa enfurecida e descontrolada”.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.