Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Escrito a faca

Em ‘O acontecimento’, Annie Ernaux narra o trauma de um aborto a partir de sua desconcertante voz literária, a um só tempo distanciada e contundente

13jan2022

A imagem que Annie Ernaux usa para definir o que escreve é simples e substantiva como os títulos de seus livros: no lugar da caneta, uma faca. Ao escarafunchar a memória, a autora que só escreve sobre si para melhor falar do outro vê-se rasgando a própria carne e seu entorno, abrindo uma comunicação entre aquilo que lhe é próprio e o mundo. É dessa brecha — ou ferida — que parte sua escrita e é a partir dela que se constrói o ponto de vista desconcertante que resultou nos 24 livros publicados desde a estreia, em 1974, com o romance Les Armoires vides (Os armários vazios, inédito no Brasil).

O acontecimento é publicado pela Fósforo na sequência de Os anos (2008) e O lugar (1983). Lançada em 2000, a narrativa volta ao tema daquele primeiro livro, o aborto feito por Ernaux aos 23 anos, quando havia deixado os horizontes estreitos de Yvetot, a vila da Normandia onde nasceu, para estudar literatura em Rouen. Se na década de 70 a novata se valia do anteparo convencional dos gêneros, dezesseis anos mais tarde explora esse episódio crucial já no domínio de sua invenção literária, que chama de “postura de escrita” e pode ser resumida pela objetividade distanciada com que expõe o entrelaçamento implacável entre privado e público, biografia e história. 

Desorientada pela gravidez indesejada, a protagonista de Les Armoires vides tenta em vão se concentrar nas provas do curso que a tornará professora do ensino médio, profissão que Ernaux manteve até se aposentar. Ela se ressente por não encontrar em Victor Hugo ou Charles Péguy — como de resto em nenhum outro lugar da literatura clássica, escrita sobretudo por homens — uma miserável linha que traduzisse o que vivia. “Não há nada lá para mim sobre minha situação, nenhuma passagem para descrever o que sinto agora, para me ajudar a atravessar meus maus momentos”, diz a narradora. “Deveria existir citações sobre todos os temas, sobre uma moça de vinte anos que recorre a uma fazedora de anjos.” 

Em O acontecimento, Ernaux relembra que determinadas vidas não têm representação na arte porque não a têm, com a devida legitimidade e contundência, na sociedade. E imagina não um poema ou um romance, mas a composição plástica de uma natureza-morta, que reunisse bacia esmaltada, sonda vermelha e uma escova de cabelo — objetos dispostos numa mesa do opressivo apartamento em Paris onde faz o aborto. “Não creio que exista um Ateliê da fazedora de anjos em nenhum museu do mundo”, observa.

Mediada pela literatura, a vida de Ernaux passa a ser a vida de todas as mulheres francesas que até 1974 não tinham o direito de interromper a gravidez com segurança. Só no final daquele ano, Simone Veil, ministra da Justiça, legalizaria o aborto depois de longa luta contra o conservadorismo ainda entranhado num país que sempre se jactou da defesa do igualitarismo. A vida de Annie Ernaux, narrada por ela, é, portanto, a vida de todas as mulheres que na França, no Brasil e em tantos outros lugares se arriscam na clandestinidade para fazer valer um direito tão básico quanto o de legislar sobre o próprio corpo.

Se no registro literário de Les Armoires vides Ernaux ainda buscava o envolvimento tradicional do leitor, na reelaboração de O acontecimento faz valer seu olhar radicalmente político sobre o mundo. As primeiras páginas ambientam-se no final dos anos 90, quando a narradora recebe, com alívio, o resultado negativo de um teste de hiv. “Minha vida se situa, então, entre a tabelinha e o preservativo de um franco vendido nas máquinas. É uma boa maneira de medi-la; mais segura que outras, para dizer a verdade”, escreve, numa sucinta declaração de princípios.

Foi em O lugar, seu quarto livro, que Annie Ernaux se tornou Annie Ernaux. Vencedor do prêmio Renaudot de 1983, o sóbrio acerto de contas com o pai incorporava à escrita uma reflexão até então rara na literatura: emancipar-se, tornar-se quem se quer ser, implica o rompimento com lugares e valores, mas também, ou sobretudo, com os afetos mais essenciais. Ao descrever a concretude da infância, da vida material dos pais, do que ouvia e do que eles falavam Ernaux dizia buscar algo “entre a literatura, a sociologia e a história” para melhor dramatizar o abismo que se abria entre o mundo das classes populares e a vida letrada, entre sua família e o que ela havia se tornado.  

Não possível

Em O acontecimento, é o aborto clandestino que dá concretude a esse descompasso. Interromper a gravidez é uma das formas de afirmar, na prática, os valores da narradora. É o “não” possível, naquele momento, a tudo que acompanharia uma descendência indesejada: o prolongamento de uma relação casual, a perspectiva da vida familiar regida por valores que, nas vésperas das tempestades de maio de 1968, ainda pareciam incontornáveis — como ela mesmo relataria em alguns dos momentos mais duros de Os anos

A vida de Ernaux é a de todas que se arriscam para fazer valer o direito tão básico de legislar sobre o próprio corpo

A expressão literária dessa recusa nada tem de espontânea. Começa a se fermentar aos dezoito anos, no encontro com a Simone de Beauvoir de O segundo sexo. “Eu me lembro dessa experiência de leitura, num abril chuvoso, como uma revelação”, diz ela em L’Écriture comme un couteau, livro de entrevistas com o escritor Pierre-Yves Jeannet. “Tudo o que, nos anos anteriores, vivi na opacidade, o sofrimento, o mal-estar, tornou-se bruscamente claro. Acho que me vem daí a certeza de que a tomada de consciência, que por si só pode não resultar em nada, é o primeiro passo para a libertação, para a ação.” 

Outro momento decisivo na formação de sua escrita foi o festejado lançamento de As coisas (1965). O romance de estreia de George Perec parecia falar diretamente à mulher de 25 anos, recém-casada como os protagonistas do livro e, a exemplo deles, assolada pelos opressivos apelos da sociedade de consumo. As minuciosas descrições, o tom desapaixonado com que o futuro autor de A vida, modo de usar narra o cotidiano de Jérôme e Sylvie — segundo Ernaux, “pessoas sem contornos psicológicos” — teria para ela o valor de “uma revelação”, como escreve num ensaio sobre seus anos de formação: “As coisas operava uma espécie de inversão, não se tratava de falar do geral por meio do particular, como se admite ser próprio da literatura, mas do particular a partir do geral”.    

O impacto das leituras de Pierre Bourdieu também é fundador, sobretudo com o lançamento, em 1979, de A distinção, a que ela se refere como “o meteoro”. As análises, aplicadas a uma pesquisa empírica, de que a relação entre as classes sociais dominantes e as dominadas atravessa a existência, do corpo ao gosto, da vida social ao espírito, pareceram a Ernaux uma chave, encontrada nas ciências sociais, para o que perseguia em termos literários.

“A distinção validava cientificamente o que em mim era lembrança, sensação”, escreveria em 2004. “Mas esse reconhecimento só teria sido um simples momento de empatia se no mesmo movimento não estivesse representado conhecimento, saber: o que eu encontrava não era apenas a explicação de coisas vividas pessoalmente, era também um desvendamento total do mundo social.” Num belo necrológio de Bourdieu, morto em fevereiro de 2002, Ernaux escreveu no Le Monde que seus livros “desfatalizam a existência”. 

Assim como declara dívidas para com seus predecessores, outra geração faz o mesmo em relação a ela. “Reconheci precisamente o que vivia nesse momento ao ler os livros que Annie Ernaux dedicou a seus pais e à ‘distância de classe’ que a separou deles”, escreve Didier Eribon no início de Retorno a Reims, o formidável e influente exercício de “introspecção sociológica” que comentei aqui em agosto de 2020 e é resultado de um sofisticado processamento de livros como O lugar e A vergonha (ainda sem tradução) e do universo conceitual de Bourdieu. Em três capítulos de A sociedade do veredito, que a Âyiné lança neste ano, Eribon destrincha sua relação com a escritora.

E a transmissão não termina por aí. Foi lendo Eribon, e convivendo com ele, que Édouard Louis fez de sua vida uma das obras mais comentadas da literatura francesa contemporânea, sendo O fim de Eddy uma versão radical, por vezes agressiva, da chamada “traição de classe”. Ernaux não é citada no livro, mas não por um acaso, a convite de Louis, abre o livro Pierre Bourdieu: a insubmissão como herança, coletânea de ensaios sobre o sociólogo que ele organizou em 2013. E entre sociologia, ensaio e autobiografia, a “postura de escrita” que resultou em O acontecimento segue cumprindo seu objetivo primeiro, mostrar a emancipação não apenas como desejável mas, antes de tudo, possível.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).