Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Desfazendo gênero

Inimigo de consensos e estabilidade, Hilton Als faz de Garotas brancas uma referência no ensaísmo queer

09mar2023 | Edição #68

Hilton Als encarna, sem nostalgia ou reverência, o melhor espírito da New Yorker. Entenda-se por isso o arrojo especulativo, a simplicidade na defesa de pontos de vista complexos e sofisticados e uma voz narrativa tão original quanto indisciplinada. Da tradição da revista ele dispensa, para meu alívio, um certo ar blasé ainda cultivado em páginas assombradas por Eustace Tilley, o dândi que desde 1925 é marca registrada da revista.

Desde 1989 Als vem trazendo à pauta, com radicalidade e empenho provocador raros, as fricções incontornáveis das questões de raça e gênero na produção cultural. Há vinte anos dedica-se sobretudo à crítica de teatro, tendo expandido sua atuação para curadorias que cruzam artes visuais, fotografia, música, cinema e literatura. Em 2017, foi premiado com o Pulitzer na categoria Crítica em reconhecimento ao seu trabalho.

Garotas brancas (Fósforo) chega às livrarias brasileiras pouco depois do lançamento, nos Estados Unidos, de My Pinup: A Paean to Prince, livrinho curto que é uma ode ao criador de “Purple Rain”. Als também assina o prefácio de Vou te dizer o que penso, último livro de Joan Didion, agora traduzido. A escritora, aliás, está no centro da mais recente exposição idealizada por ele, Joan Didion: What She Means, que depois do Hammer Museum, em Los Angeles, segue, em junho próximo, para o Pérez Art Museum, em Miami.

À função tradicional de analista, o crítico cultural alia a atividade de criador: borram-se as fronteiras entre escrita e curadoria, comentário e ação

Essa atividade intensa e variada aponta para algo além da curiosidade intelectual. À função tradicional de analista, o crítico cultural alia aqui a atividade de criador: borram-se as fronteiras entre escrita e curadoria, comentário e ação. E, no mesmo movimento, cai por terra sua posição mercurial: Als está no ponto mais distante possível do opinionismo — e tampouco almeja neutralidade ou equilíbrio. Explora ao máximo a forma aberta própria do ensaio e, especialmente, do ensaio pessoal, subgênero que aponta para o que de melhor e pior se publica hoje.

Apesar de uma “terrível necessidade de confessar”, o crítico está longe de viver encerrado num mundo particular. A experiência de homem negro queer que informa sua escrita é menos marca narcísica do que ponto de vista crítico refletido. Se, como ele observa, os Estados Unidos são “nada mais do que categorias”, sua escrita vai na direção oposta, empenhada em embaralhar todo tipo de categorização.

Noções conflitantes

A chave de Garotas brancas — e, talvez, de sua obra como um todo — está em “Tristes Tropiques”, ensaio que abre o livro e se estende por noventa páginas. Alude não a Lévi-Strauss, mas às origens de sua mãe, nascida em Barbados. Desconcertante, narra a paixão por “Senhor ou Lady”, homem negro como ele, com quem mantem por mais de vinte anos uma relação amorosa em termos pouco usuais. SL tem várias mulheres, não é seu parceiro sexual ou a “metade” que o completa: é, isso sim, um gêmeo por eleição, ideia a princípio paradoxal que vai se acomodando na medida em que Als demole a fixidez dos gêneros. E, de forma ainda mais complexa, implode a estabilidade que se poderia associar a identidades raciais.

“Não sofri de adoração no altar do amor dele por outras mulheres”, escreve. “Na verdade, SL era um devoto da oração que era minha gayzice. Como tal, ele era para além de heterossexual. Vamos chamá-lo de outra coisa”. Eventualmente, SL pode ser até uma “garota branca”, ideia desestabilizadora que condensa noções conflitantes.

Als está no ponto mais distante possível do opinionismo — e tampouco almeja neutralidade e equilíbrio

A “garota branca” que Flannery O’Connor ou Dorothy Parker deveras foram é signo de aceitação no mundo dos brancos, mas também pode indicar sujeição a ele. Pode estar associada a um ideal de beleza das divas do cinema ou ser sinônimo de crueldade, das disputas pelos homens ao exercício brutal do racismo. É a força paradoxal de Truman Capote, que nasce para o mundo literário como “garota branca” na foto de sobrecapa de Other Voices, Other Rooms, seu livro de estreia, e se transforma em “homem” com A sangue frio, passaporte de entrada no clube do Bolinha do new journalism. Michael Jackson, parece evidente, levou ao paroxismo a forma de ser garota branca que Prince, a seu modo, também encarnou.

Se a fluidez de gênero segue longe dos consensos, a instabilidade de uma ideia de raça é ponto ainda mais sensível. A um dado momento da relação, SL se ressente de que o amigo declare uma “fraternidade com outros escritores negros”. “O que interessava a eles”, advertia SL, “era que fatia do bolo preto caberia a mim. Ou que fatia eu tiraria dele. A literatura era um mercado”.

A partir dessas restrições, Als usa tintas fortes para tratar dos cruzamentos da literatura com a militância:

Gente simplesmente deplorável e egocêntrica tentando conseguir mais: mais tempo no palco, mais tempo na TV, mais tempo com os editores. O barulho dos marginais e dos marginalizados ia aumentando porque, em primeiro lugar, eles acreditavam no que os brancos tinham a dizer sobre eles. O fato de eles estarem se insurgindo diante de uma plateia majoritariamente branca — os guardiões estavam abrindo as portas, mas só um pouquinho — significava exatamente isso.

A radicalidade de Als protege tal discurso das costumeiras apropriações pelo campo conservador, sempre em busca de exceções a confirmar as fantasias de totalitarismo que atribuem ao “identitarismo”. De Als não se espera a argumentação reacionária de que raça não importa, mas um juízo ainda mais sutil e complexo:

Não somos, nenhum de nós, mulheres brancas nem homens negros; em vez disso, somos uma série de bocas, e cada boca precisa ser preenchida: com algo úmido ou seco, como o amor, ou desconhecido e picante, como o amor.

Garotas brancas foi publicado originalmente há dez anos — e o tempo só lhe fez bem. Prolífico na crítica cotidiana, Als é relativamente lento nos projetos editoriais. Talvez porque, como neste livro tão importante, busque com afinco nexos críticos entre as reflexões feitas no calor da hora. Uma coerência rigorosa que não se deixa ver de imediato mas que acompanha o ensaio que merece esse nome, ou seja, um exercício de liberdade plena e ousadia crítica.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.