Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O coach de esquerda

Para os Intelectuais Sem Posição, corrigir os desprezíveis esquerdistas é mais importante do que defender a democracia dos ataques do Planalto

15ago2019

O Intelectual Sem Posição, a quem já homenageei aqui, finalmente encontrou seu lugar no governo de extrema direita: tem ganhado a vida como coach de esquerda. Funciona assim: a cada ignomínia do Planalto, o coach contrapõe uma falta pretérita da esquerda, com o nobre objetivo de orientar o debate no caminho do equilíbrio, desenhar o mapa do Centro para os pobres-diabos que, incorrendo em rude falta histórica, tratam fascista como fascista. E, vez por outra, insistem, desagradáveis, em lembrar a responsabilidade de quem elegeu quem aí está.  

coach de esquerda faz reiterados elogios ao diálogo. Desde que o diálogo aconteça de acordo com as suas regras e nos termos que ele estabelecer. Para ele, é mais importante corrigir os vícios dos desprezíveis esquerdistas do que cerrar fogo contra os ataques do Planalto à democracia. Antes de falar, propõe o coach, a esquerda tem que ajoelhar no milho ideológico.

coach de esquerda fala como quem dá palestra, com pausas — inteligentes. Escreve como quem dá instruções. Frases curtas. E definitivas.

Modesto por conveniência, finge admitir que seu ponto de vista até pode não ser o correto, mas, paciência, é mesmo o mais aceitável. Sempre observa o quão difícil é a conjuntura para mostrar que não só compreendeu esta complexidade como dispõe de indicações, todas equilibradas, sobre as melhores formas de enfrentá-la.

coach de esquerda adora especialistas. Se forem estrangeiros, melhor ainda. Com seu conhecimento wikipédico de história, listam as experiências de regimes de esquerda autoritários — que são vários e inquestionáveis — para sustentar que, por uma espécie de fatalismo, ideias e práticas desse campo já nascem comprometidas. De forma didática, defendem que o capitão, sua família, seus generais e suas milícias, digitais ou não, fazem hoje “com sinal trocado”— anotem essa expressão — o mesmo que os governos de esquerda recentes. 

Para o coach de esquerda, há equivalência plena entre as hostilidades presidenciais e a retórica populista de pobres contra ricos tantas vezes repetida pelos governos de esquerda. Ele sempre explica a seu público, ávido por uma explicação qualquer, que no trololó do “nós” contra “eles” está a raiz das ameaças a jornalistas e às populações indígenas, do nepotismo ostensivo, da incitação múltipla à violência, do elogio a gorilas torturadores, do desprezo pelos “paraíbas” — que recusaram nas urnas uma plataforma de governo abjeta. 

A palavra mágica do coachde esquerda é “autocrítica” — desde que o prefixo reflexivo diga respeito a outros. Por isso, “autocrítica da esquerda” virou um gênero do jornalismo de opinião cultivado por ISPs consagrados e jovens arrivistas. Todos unidos contra o que identificam como uma “superioridade moral” da esquerda, expressão que resume o inextinguível ressentimento pelo prestígio da produção intelectual ligada aos anacrônicos militantes. É preciso, recomendam, ouvir os intelectuais à direita.

coach de esquerda nasce menos da ideologia do que do mercado de ideias. Seu público, em expansão, precisa desesperadamente de indulgência eleitoral. É a turma que em outubro último, diante de uma opção cristalina pela barbárie e outra, imperfeita, mas dentro das regras da civilidade, votou com o umbigo, na orgulhosa afirmação de que não se orientaria por “rótulos”, de que os dois lados, como se diz em boa clicheria despolitizada, “não os representa”. 

São estes que remuneram o coach de esquerda em likes, shares, informações privilegiadas ou convites para palestras que ressaltam a necessidade de, adivinhem?, uma autocrítica da esquerda.

Mais do que a profissão do momento, o coach de esquerda é a profissão do futuro:  afinal, é pela desmobilização que se chega à reeleição.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).