Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Cidades segregadas

Joice Berth convida a olhar para o chão para ver as bases da sociedade que fundamentam a divisão na metrópole

31jul2023 | Edição #72

As cidades são o chão onde todas as ideologias segregacionistas e negacionistas se sustentam, se materializam e ganham forma. Que forma? De prédios, de parques e avenidas, de mapas da divisão do espaço, de calçadas conservadas ou abandonadas, de monumentos, bustos e obeliscos, entre outros símbolos que a cidade comporta. Ou seja, pensamos e articulamos no nível social, mas é no chão que as cidades se erguem — e onde todas as ideias e práticas opressoras se erguem conjuntamente.

Em Se a cidade fosse nossa, Joice Berth nos convida a olhar atentamente para o solo em que pisamos. Tanto do ponto de vista do espaço construído — inspecionar o chão nada mais é do que perceber os caminhos,e os padrões espaciais que se formam — quanto de outros dois: das relações subalternas, materializadas no território, e da segregação social e urbana, refletidas no terreno. Na cidade, as desigualdades e clivagens sociais ganham materialidade. E olhar para o chão é também olhar para a base da sociedade: Berth fala a partir do compromisso histórico e político com todos que carregam no corpo as marcas da segregação social e urbana, a partir dos múltiplos dispositivos de opressão.

A autora mostra como a segregação urbana impede encontros e o conhecimento do outro

Cidades divididas estão há muito no centro dos estudos urbanos. A pergunta sobre como se articulam cisões sociais e território orienta diferentes diagnósticos sobre os arranjos e cristalizações das nossas desigualdades. Para a autora, arquiteta e urbanista, é necessário reestruturar os alicerces que fundamentam a segregação:

Há uma lógica excludente na configuração espacial que compõe as cidades. Mas esse diagnóstico não foi aprofundado o bastante para apontar as raízes dessa dinâmica que estão totalmente interligadas à questão racial, primordialmente. O racismo se fortalece quando a existência do lugar social da negritude está bem marcado nas áreas favelizadas e nas periferias em geral.

Ainda que a desigualdade racial seja a pedra de toque — Berth defende que o racismo age, com o capital, como urbanista de São Paulo —, trata-se de uma triangulação entre raça, classe e gênero:

Se raça é a maneira que vivemos a classe e isso é comprovado pela maior quantidade de pessoas negras inseridas na categoria de baixa renda, e gênero é a maneira como vivemos a raça, já que mulheres são as que têm menos acesso à posse da terra e, por consequência — sobretudo mulheres negras — são as que estão em maior número no âmbito da segurança habitacional, não faz mais sentido analisar a questão da moradia excluindo sua função primordial oculta que é caracterizar a triangulação entre raça, classe e gênero.

Para evitar o que a autora chama de um urbanismo daltônico — que está na raiz da eugenia —, ela sugere que processos de gentrificação sejam analisados a partir da ótica do embranquecimento de bairros negros e que políticas públicas habitacionais incluam a reparação histórica a pessoas negras como critério de acesso, com subsídios e condições específicas de financiamento. Essa seria uma tentativa de mitigar parte da herança escravista que sistematicamente impede os caminhos para o acesso à propriedade.

Desconforto

Berth também alia o urbanismo à psicanálise para tratar de como a segregação urbana impede encontros e cerceia o conhecimento do outro — e aqui o território também é fonte de ansiedade e angústia. A ostentação de prédios altos que rompem a paisagem é entendida na chave do falocentrismo, símbolo de uma sociedade que evoca a supremacia masculina e patriarcal. Nessa parte, a autora é bem-sucedida em retirar o leitor de qualquer lugar de conforto.

Em outras passagens, potenciais desconfortos não têm origem na desestabilização radical de conceitos, mas no fato de que mereceriam maior aprofundamento. Ao falar das diferenças estéticas que marcam centro e periferia e que fazem com que os espaços periféricos sejam lidos como feios, Berth defende separar picho e grafite: “Não acho que o picho seja algo a ser incentivado, pois, além de inconveniente é esteticamente pouco agradável”. A frase tem contexto: nem toda arte deve ser cômoda ou apreciada, e “o picho recoloca essas existências aniquiladas que mudam a forma das cidades”. Berth vai além e sugere que a pichação deixaria de existir se as desigualdades estruturais urbanas fossem enfrentadas.


Em Se a cidade fosse nossa, Joice Berth nos convida a olhar atentamente para o solo em que pisamos

Ao tratar das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), instrumento previsto em planos diretores para garantir que parcelas do território sejam destinadas à habitação para famílias vulneráveis, a autora defende que sua falha decorre da ausência de incorporação da perspectiva racial: “As Zeis, na prática, vêm perpetuando a divisão racial do espaço, uma vez que foram construídas a partir da questão de classe, deixando de lado a questão racial”. Portanto, segundo a autora, seriam criadoras de enclaves segregados na cidade. Mas a posição pressupõe que as Zeis são de fato implementadas, eficazes e cumprem a promessa de abrigar os mais pobres, em sua maioria negros — não é bem o caso. Os retrocessos e as inúmeras disputas para efetivar políticas habitacionais nessas zonas — garantindo que não sejam tomadas de assalto por outros usos e que seus conselhos gestores existam e tenham voz — apontam para outros caminhos de análise.

Berth nos convida a pensar nosso cotidiano em conexão com estruturas sociais que permeiam a configuração do espaço urbano. E também nos convida a perguntar: e se a cidade fosse das pessoas negras? E se a cidade fosse das mulheres? Pertencimento e transformação social caminham juntos, em uma luta que se articula com o direito à cidade. Joice Berth nos convida a olhar para o chão. Aquele em que pisamos todos os dias mas também o chão que materializa nossas desigualdades visivelmente estridentes e aquelas que nos são menos visíveis — ou que ainda insistimos em não ver.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.