Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Admirável mundo novo

Ensaios de Antonio Candido refletem sobre a interação do concreto com a literatura e como essa não constitui um acesso direto ao real ou ao histórico

01abr2023 | Edição #68

No clássico As cidades invisíveis, Italo Calvino nos conduz pelos relatos de Marco Polo, jovem mercador veneziano que regressava de uma expedição. A narração de suas aventuras tem um destinatário imediato, Kublai Khan, mas os reais destinatários somos nós. O imperador dos tártaros funciona na estrutura literária como marcador de alteridade em relação a Marco Polo, ponto na triangulação entre a narrativa e os leitores. Khan formula perguntas, pede explicações. Em uma dessas interações, sobre a cidade de Olívia, Marco Polo diz: “Você sabe melhor que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles”.

Não foi só o imperador que ouviu os ensinamentos do explorador com cuidado. Antonio Candido explora às últimas consequências a distinção, elevando-a a título. O discurso e a cidade — livro de Candido lançado em 1993 pela editora Duas Cidades e que agora ganha nova edição, junto das obras completas, pela Todavia — se organiza justamente a partir desses dois elementos e da relação entre eles.

De um lado está o discurso: uma descrição ou relato que conta, necessariamente, com a posição de um narrador. Um discurso que, para Candido, não está restrito ao sentido mais imediato das palavras — é antes uma referência à literatura. Do outro, temos a cidade, que também adquire sentido mais amplo — um referente para a realidade concreta, a um mundo exterior à literatura. A distinção entre os dois registros é fundamental: o discurso sobre uma cidade nos conta mais sobre o dito do que sobre a coisa narrada. Marco Polo nos alerta:

O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, quando você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes.

Planos

A primeira seção de O discurso e a cidade é composta por ensaios sobre narrativas ficcionais que pretenderam descrever a realidade tal como ela é, ou foram lidas na chave naturalista da objetividade. Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, O abatedouro, de Émile Zola, Os Malavoglia, de Giovanni Verga, e O cortiço, de Aluísio Azevedo, são representantes de uma chave de leitura que faz justamente o contrário do conselho de Marco Polo — ou seja, confunde o discurso e a cidade ao pretender que a literatura constitua um acesso direto ao real ou ao histórico. Já a segunda parte traz ensaios sobre romances e poemas que não têm compromisso de fidelidade com o real, mas pretendem transfigurá-lo ao introduzir um conjunto de referências a outras ordens possíveis. Seriam o polo oposto, uma dissociação completa entre o discurso e a cidade, entre o que é narrado e o mundo tal como o conhecemos.

O mundo parece mais real quando reorganizado pela literatura e não por uma fidelidade ao concreto

Se é verdade que Candido se apoia na necessidade premente de não confundir os dois planos, a relação estabelecida entre eles é mais complexa. Quando a realidade do mundo se torna componente central de uma estrutura literária, os elementos do real colaboram para a criação de um mundo novo no registro do discurso. A capacidade de convencimento dos textos em relação ao real está mais em sua própria organização literária do que na referência que fazem ao mundo. Não temos a impressão de acesso à realidade em razão de uma pretensa habilidade perfeita de replicação do que conhecemos, mas porque o mundo exterior é devidamente reordenado pela literatura. Essa reordenação no plano do discurso nos faz sentir melhor a realidade originária. O mundo parece mais real quando reorganizado pela literatura e não por algum tipo de fidelidade na correspondência com os pontos de apoio não literários. Nos termos de Marco Polo, as leis criadas pelo discurso nos dão a impressão de conhecer mais a cidade — e esse não é um simples truque de falseamento, mas justamente um dos poderes da literatura.

Alicerces

O discurso e a cidade tem ensaios fundamentais de Antonio Candido que reorientaram o sentido da crítica literária e as interpretações sobre a sociedade brasileira. Cada texto é uma pequena joia, lapidada com o cuidado de um mestre artesão que não só é excepcional em seu ofício mas que enxerga além. Os textos de Candido revelam uma generosidade sem tamanho; compartilham conosco cada passo do argumento, além de serem absolutamente deliciosos de ler.

Dialética da malandragem, publicado como artigo pela primeira vez em 1970, continua sendo o principal texto de referência sobre Memórias de um sargento de milícias. O romance foi lido por muito tempo como eminentemente documental, uma espécie de reprodução fiel do Rio de Janeiro joanino e de sua sociedade. No jogo de relações entre o discurso e a cidade, Candido vai inicialmente nos mostrar que essa reprodução ponto a ponto é falsa, como não poderia deixar de ser. Em primeiro lugar, há uma redução geográfica:

O panorama que ele traça não é amplo. Restrito espacialmente, a sua ação decorre no Rio, sobretudo no que hoje são as áreas centrais e naquele tempo constituíam o grosso da cidade. Nenhum personagem deixa o seu âmbito e apenas uma ou duas vezes o autor nos leva ao subúrbio, no episódio do Caboclo do Mangue e na festa campestre da família de Vidinha.

Em segundo, há uma redução social — Memórias está centrado em “um tipo de gente livre e modesta, que hoje chamaríamos de pequena burguesia”. Não há ninguém acima e ninguém abaixo, o que cria um mundo sem elite e sem pessoas escravizadas. Mas Candido não se limita a explicitar a ausência de correspondência, posto que ela é completamente esperada se os planos discursivo e concreto não se confundem. Ao criar essa ordem que suprime o comando e o trabalho, os personagens de Manuel Antônio podem transitar levemente entre hemisférios sociais mais circunscritos, podem balançar entre o lícito e o ilícito, em uma ordem em que não há censura, repressão ou responsabilidade:

Na sua estrutura mais íntima e na sua visão latente das coisas, esse livro exprime a vasta acomodação geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração recíproca dos grupos, das ideias, das atitudes mais díspares, criando uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai ao crime.

Se Memórias suprime as classes mais baixas, O cortiço as posiciona no centro da narrativa. Aluísio Azevedo narra histórias de trabalhadores pobres vivendo na habitação coletiva do cortiço, mas também inclui a presença direta do explorador econômico — a perspectiva de Azevedo é como um negativo da de Manuel Antônio, já que os extremos sociais não só estão presentes, mas estão posicionados socialmente enquanto tais. Para Candido:

A originalidade do romance de Aluísio está nesta coexistência íntima do explorado e do explorador, tornada logicamente possível pela própria natureza elementar da acumulação num país que economicamente ainda era semicolonial.

Azevedo retrata o mecanismo de formação da riqueza individual em detalhes. O português João Romão tem sua trajetória ascendente marcada pela exploração direta “sobre a vida destroçada dos outros, queimados como lenha para a acumulação brutal do seu dinheiro”, sendo a figura de Bertoleza a principal representação da crueza dessa escalada. Mas, apesar disso, os personagens não evocam sentimentos de injustiça social ou de ódio de classe, mas de nacionalismo e xenofobia.

Cada texto é uma pequena joia, lapidada com o cuidado de um mestre artesão que enxerga além

Do ponto de vista dos trabalhadores pobres do cortiço, a elite não é um problema por ser exploradora, mas por ser portuguesa — como se fosse uma batalha entre nacionalidades e, principalmente, raças. O determinismo de Azevedo tem na raça seu componente central — o cortiço é a marca da pobreza e do trabalho, mas também de quem não é branco; mesmo personagens brancas que pertencem a esse mundo, como Rita Baiana, não são lidas como tais. O cortiço não é apenas o lugar de morada dos operários, mas uma sina e um destino de todo o Brasil:

Esboçando já aqui uma visão involuntariamente pejorativa do país, o romancista traduz a mistura de raças e a sua convivência como promiscuidade da habitação coletiva, que deste modo se torna mesmo um Brasil em miniatura, onde brancos, negros e mulatos eram igualmente dominados e explorados por esse bicho-papão dos jacobinos, o português ganhador de dinheiro, que manobra tantos cordéis de ascensão social e econômica nas cidades.

A republicação das obras completas de Candido não poderia ter melhor momento. Os ensaios que compõem O discurso e a cidade foram escritos entre as décadas de 70 e 90, ainda a partir de um paradigma da formação nacional. Revisitá-los é oportuno a qualquer tempo — clássicos só são dignos do nome se nos oferecem miradas para o presente. Mas voltar a eles ganha ainda mais sentido agora que deixamos para trás um dos períodos mais destrutivos e atentadores à nossa democracia. Agora que contabilizamos a destruição e as perdas, em vistas de reconstrução de um país, também o jogo entre representação e sociedade — ou entre discurso e cidade — precisa se transformar.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.