Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

A morte de um estádio

Luiz Antonio Simas conta a história do Maracanã — que espelhou as ilusões e os conflitos do Rio de Janeiro — e a destruição da ideia de país que o inspirava

20jan2022 | Edição #54

Uma enorme estrutura de andaimes de madeira que sustentava a cobertura das arquibancadas dava o tom do que certamente estava inacabado. Inaugurado em junho de 1950, para a Copa do Mundo sediada no Brasil, o Maracanã — então chamado de Estádio Municipal — obrigou seus primeiros torcedores a saltarem obstáculos de tijolo sem reboco para assistirem à partida entre a seleção brasileira e a mexicana. Não estava pronto. Ainda assim, era o maior estádio de futebol já construído, uma façanha de escala e técnica. As escoras da marquise de cimento armado foram retiradas às pressas ao final da obra, sem que a laje tivesse muito tempo para assentar. As mesmas madeiras que serviram de apoio ao concreto se transformaram em paredes e teto para casas erguidas na favela do Esqueleto, que alojou boa parte dos operários empregados na construção do estádio.

Essas tensões — a tela de projeção de modernidade inaugurada com as marcas do atraso, a precariedade do trabalho e da moradia que atravessam a construção de um monumento, o estádio e seu entorno, o sagrado e o profano — perpassam todo o livro de Luiz Antonio Simas. Maracanã: quando a cidade era terreiro não é apenas uma história do estádio ou mesmo de sua relação com o espaço urbano do Rio de Janeiro. É muito mais. Simas propõe uma leitura em que o Maracanã e o terreiro se confundem. O terreiro aqui é entendido em sua dimensão imaterial, a partir das mais variadas formas de invenção e transformação de usos na vida cotidiana. Esta encruzilhada entre terreiro e gramado é traçada desde as primeiras décadas do século 20 para então servir de lente para ampliar o olhar e ver os usos propriamente encantados do estádio.

Maracanã: quando a cidade era terreiro, de Luiz Antonio Simas

Seria simples demais dizer que a história do Maracanã se entrelaça com a história da cidade. Este é um ponto de partida de Simas: toda cidade é fruto de disputas, com este estádio não haveria de ser diferente. Não se trata aqui somente da costura de dois elementos tecidos juntos; Simas olha para como a cidade praticou o Maracanã. Porque também é pressuposto que o espaço construído em si mesmo é apenas uma parte desta história: “A arte de disputar a cidade é aquela que torna ainda possível a vida: nas frestas e nas fendas do poder, cabe encantar o mundo. Para os saberes de terreiros, o contrário da vida, afinal, não é a morte: é o desencanto. O contrário da morte não é a vida: é o encantamento”.

O mito de origem

O Estádio Municipal carregou consigo um mito de origem. Um templo para “pessoas de todas as classes” que, a despeito de suas diferenças, uniam-se como parte de uma só torcida, por paixão ao jogo. O estádio supostamente teria a capacidade de equalizar hierarquias e produzir novas sociabilidades impossíveis em outros territórios. Simas mostra que qualquer perspectiva um pouco menos apaixonada já era suficiente para revelar os limites desta imagem: “a geral era destinada aos mais pobres, que assistiriam às partidas de pé, com precária visão do campo, e não seriam protegidos de chuva, sol ou de qualquer coisa que fosse atirada da arquibancada, o setor com maior capacidade de público. As cadeiras especiais, cadeiras comuns e camarotes, acessíveis apenas ao público de maior poder aquisitivo, acabavam revelando, mais que escondendo, as contradições do processo de formação social brasileiro. Era como se o Brasil gritasse à beira do campo: estamos juntos, no mesmo lugar, mas mantendo alguma distância”. 

Era como se cada torcedor tivesse que saber seu devido lugar na sociedade carioca a partir da divisão espacial do Maracanã: juntos e distantes

Era como se cada torcedor tivesse que saber seu devido lugar na sociedade carioca a partir da divisão espacial do Maracanã. Juntos e distantes. Mas, ainda assim, estas hierarquias eram desestabilizadas especialmente na geral, em que começaram as torcidas organizadas, a formação de identidades e marcas da memória coletiva e um exercício peculiar de direito à cidade: “Todo geraldino teve seu dia de gargalhar na cara da miséria e do impossível, já que a geral, um péssimo local em diversos sentidos, era paradoxalmente a fresta pela qual a festa do jogo se potencializava de forma mais vigorosa: como catarse, espírito criativo, performance dramática e sociabilização no perrengue. Torcedores fantasiados, andando de patinete, empunhando cartazes, acendendo velas de joelhos, mascarados, faziam a festa dos geraldinos. Uma festa encantada.” A trinca Didi, Pelé e Garrincha encarnava a ideologia da mestiçagem do Estado nacional ao mesmo tempo em que projetava negros e indígenas como protagonistas de um jogo muito distante do original inglês; uma gira-jogo, nos termos do autor.

O livro narra episódios marcantes da vida do estádio, de suas partidas, brigas em campo e na arquibancada, dos times cariocas; vai além do futebol com os diversos usos feitos do Maracanã, de palco de grandes encontros religiosos (da umbanda à Igreja Universal passando pelas visitas do papa), especiais de Natal com visitas do papai Noel, aos megashows internacionais dos anos 1990. Conta a história de seu projeto arquitetônico, cujo concurso contou com uma proposta perdedora de Oscar Niemeyer; as disputas em torno do terreno que antes havia abrigado o Derby Club, transferido para a zona sul no contexto das reformas urbanas de Pereira Passos.

Termina denunciando o desencanto de um estádio que, ao acabar com sua geral, remover a marquise e se tornar arena, abandonou o ideal de um espaço para todos, mesmo que distantes. Para muitos, as portas do estádio agora estão fechadas, especialmente em razão dos altos valores dos ingressos e do controle estrito das maneiras de torcer, que fecham a fresta entre gramado e terreiro. “O Maracanã foi destruído quando a própria ideia de Brasil que alicerçou sua construção como um patrimônio público foi destruída também.” Em um momento em que a igualdade não é nem mesmo evocada em seu sentido menos substancial, o livro nos convida a encontrar caminhos para que a cidade volte a praticar o estádio.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.