Meio ambiente,

A vida secreta das cerejeiras

De símbolo dos samurais a marcadoras de rituais, as sakuras são hoje referência para identificar mudanças climáticas

01jul2019

Nem sequer três dias
este mundo vê passar —
Cerejeira em flor!

O famoso haicai de Ôshima Ryôta (1716-87) sintetiza a brevidade da floração das cerejeiras do Japão e, ao mesmo tempo, relembra a fugacidade da existência e a precariedade das conquistas terrenas. A vida se esvai num instante, a mortalidade e a impermanência são a essência da condição humana. Esse leitmotiv, recorrente na literatura japonesa, associa a flor da cerejeira aos samurais que lutaram e morreram jovens. Eles eram comparados às flores das sakuras que caem na sua plenitude. Da mesma forma que é difícil acompanhar a derrocada da flor de cerejeira, os samurais desapareceriam sem precisar passar pela implacável deterioração física imposta pela passagem do tempo. 

As sakuras também ensinam sobre a imprevisibilidade da vida. As flores de cerejeira desabrocham uma vez por ano, na primavera, e dura apenas uma semana. Os botões que se abrem vão do branco a várias tonalidades de rosa. O vento faz com que as pétalas voem pelo ar, formando uma espécie de neblina rosada; sob essa chuva, pisa-se sobre um chão que me faz lembrar de carnavais passados — o confete produzido pela própria natureza.

Impossível ficar impassível diante dessas árvores em flor no parque Shinjuku Gyoen, um dos melhores locais de Tóquio para se deslumbrar com as cerejeiras, que na segunda semana de abril ainda estavam carregadas. Mesmo assim, a terra parece estar com frio — a primavera no Japão é mais gelada do que eu imaginava — e, por isso, se resguarda sob um cobertor rosa. 

Arrebatada, saco automaticamente o celular do bolso do casaco para tentar parar o tempo e imortalizar esse momento efêmero em incontáveis imagens. Talvez para provar para mim mesma que não alucinei e que pude testemunhar esse espetáculo sazonal. Dez minutos e cinquenta fotos depois, me dou conta de que até então só vi as sakuras pela tela do celular. Querendo fruir a experiência sem intermediários, guardo o celular e passo a olhar com meus próprios olhos. Casais e grupos de amigos se sentam debaixo das árvores para um calmo piquenique (é proibido entrar com bebidas alcoólicas no parque), turistas do mundo inteiro fazem poses constrangedoras ou tiram selfies ao lado das flores — eu mesma, inclusive. 

Ao longo do caminho, encontro um galhinho contendo três flores de cerejeira. Pego-o do chão, admiro a delicadeza das pétalas e tiro uma foto. Penso que há ao menos uma sakura machucada no parque. Carrego o ramo comigo por alguns passos até ser interceptada por um guarda que se comunica comigo em japonês. Compreendo que o problema são as flores que estão na minha mão. Não se pode encostar nas sakuras

Enquanto ele fala num walkie-talkie, procuro explicar em inglês que o galho já estava no chão, que não era a culpada. Coloco de novo o ramo sobre a terra, ele me olha com uma expressão de interrogação, pega as flores do chão, parece entender o que quero comunicar, inclina-se para a frente me cumprimentando e me libera para continuar meu passeio. Quase sou multada por um ato alheio de vandalismo.

Agradecer a beleza

Em uma encosta de montanha,
Solitária, não acompanhada
Se encontra uma árvore de cerejeira.
Exceto para você, amiga solitária,
Para os outros eu sou desconhecido
.

O poema do abade Gyôson (1055-1135), presente na antologia Ogura Hyakunin Isshu [Cem pessoas, um poema (cada)], compilada por Fujiwara no Teika no ano de 1235, apresenta o ato contemplativo existente na tradição do hanami (literalmente, “ver as flores”), que tem por intuito a simples apreciação da beleza e das cores das cerejeiras em flor. Tentar manter essa prática contemplativa não deixa de ser um desafio para o Japão: estima-se que cerca de 63 milhões de pessoas se desloquem dentro e fora do país para o hanami — movimentando 2,7 bilhões de dólares. 

A festa foi, portanto, apropriada pelo marketing capitalista: de chás a chocolates, passando por refrigerantes, várias marcas se rendem à cor rosa e vendem produtos contendo sakuras na fórmula ou na embalagem. Caminhei ao longo do rio Meguro, também em Tóquio, tomando um espumante rosé barato em uma taça de plástico em meio a barraquinhas vendendo guloseimas e suvenires de primavera. No parque Ueno, japoneses farofeiros faziam piqueniques, com bebidas e — choque! — até música alta, em um país que transmite uma impressão de quietude. 

Impedir o turismo predatório é também uma das grandes preocupações dos organizadores da Festa da Cerejeira do Parque do Carmo, em São Paulo. Um dos principais festivais do gênero no Brasil, o evento acontece desde 1978, graças ao imigrante japonês Hisayoshi Kataoka, que plantou a primeira muda das 4 mil cerejeiras do bosque, o mais numeroso do país. Ao longo de três dias, no primeiro fim de semana de agosto, o parque chega a receber 100 mil visitantes na área da festa. 

Os voluntários que trabalham no Parque do Carmo têm, em sua maioria, a função de “educar o público”, explica Roberto Sekiya, da comissão organizadora da festa — realizada pela Federação Sakura e Ipê do Brasil em parceria com a Prefeitura de São Paulo. “O brasileiro gosta de levar um pedaço da árvore para casa. Tem que contemplar, não arrancar as flores, um galho.” 

É um grande desafio prever a floração, pois ela depende das temperaturas do outono e do inverno

O objetivo do evento é arrecadar dinheiro para manter o bosque ao longo do ano: adubação, poda, tratamento de doenças, combate às pragas. Como são árvores de clima frio, o cuidado para a sua preservação deve ser redobrado em um país tropical. “A festa é feita para manter o bosque. Não faz sentido abrir a festa [ao público em geral] para matar o bosque. Tem que respeitar a árvore, ela não deve ser tratada como uma coisa. Ela dá aquela beleza, e você agradece essa beleza”, ensina Sekyia. 

Para garantir que as flores estejam desabrochando exatamente nos dias  da festa, é usada uma técnica que induz à floração, que pode acontecer naturalmente entre julho e setembro. A indução artificial também é essencial para a própria sobrevivência da festa — e consequentemente, do bosque —, mas Sekyia não revela que técnica é essa. “É segredo”, arremata.

Mudança climática

Flores de cerejeira no céu escuro 
E entre elas a melancolia 
Quase a florir 

O haicai do poeta samurai Matsuo Bashô (1644-94) revive a expectativa da chegada desse ritual contemplativo, que data, no mínimo, do século 8. Na origem, o hanami se referia à época do florescimento das árvores de umê (ameixa que pouco antes da floração das cerejeiras dá flores de um rosa mais escuro), vindas da China. À medida que o Japão foi se desvinculando da cultura chinesa, o costume passou a celebrar a chegada das sakuras, o que se consolidou entre os séculos 8 e 12. Primeiro a aristocracia, depois os samurais e a população em geral. A chegada da primavera era marcada por rituais, banquetes e festas sob as árvores, hábito que perdura.

Se as sakuras eram, então, usadas para marcar o início do período das colheitas, tornaram-se referência para observar a mudança climática. Não é trivial prever a floração das cerejeiras, pois ela depende das temperaturas do outono e do inverno precedentes — em geral, fins de março a meados de abril nas regiões centrais da ilha. O registro preciso das datas precisas do fenômeno vem desde o final do século 19, e a partir dos anos 1950 até o final dos anos 2000 a previsão ficou a cargo da Agência Metereológica do Japão. 

Várias empresas privadas se encarregaram da tarefa, como a Japan Metereological Corporation (JMC), que criou um método para realizar esse cálculo com alguma exatidão, com base nos fartos estudos existente sobre o ciclo de vida das cerejeiras. Os botões que vão desabrochar na próxima primavera rebentam no verão do anterior e logo entram em um período de dormência; ao serem expostos ao frio do outono e do inverno, eles “despertam” e crescem, florescendo ao sentir o calor da primavera. 

Quanto mais frio o inverno, mais tarde as flores virão, e quanto mais quentes as temperaturas do inverno, mais cedo as sakuras tingirão de rosa os parques e ruas, num fenômeno que começa no sul do arquipélago e vai subindo até o norte.

Dados de um relatório sobre mudanças climáticas da JMC apontam que as cerejeiras têm florescido mais cedo a cada ano nas últimas seis décadas, com certa tendência de adiantar um dia a cada década. Era comum que o auge da floração acontecesse no início de abril em Tóquio, mas ela vem ocorrendo nas últimas semanas de março. 

Mesmo assim, ninguém desiste de correr atrás das cerejeiras em flor. A jmc lançou o aplicativo Sakura Navi, que segue o desenvolvimento da floração em cerca de mil locais no Japão inteiro. Disponível em japonês, inglês e chinês, ele pode ser baixado no celular por R$ 10,90. 

Uma coisa é previsível: no parque Ueno ou no do Carmo, não desistiremos de perseguir o imprevisível.  

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).