A Feira do Livro, Literatura,

Quem são as escritoras da foto histórica?

Pesquisa realizada a partir do movimento Um Grande Dia em São Paulo mostra que mulheres demoram mais de vinte anos para publicar seu primeiro livro

04out2022

Um momento histórico ocorreu no fim de semana dos dias 11 e 12 de junho deste ano, quando escritoras de várias cidades brasileiras e do exterior se juntaram para fazer uma foto formada só por autoras mulheres. Chamado de Um Grande Dia, o movimento foi iniciado durante A Feira do Livro de São Paulo, por Giovana Madalosso, Natalia Timerman e Paula Carvalho, e se espalhou espontaneamente por mais de quarenta localidades. Foram retratadas quase 1700 escritoras brasileiras espalhadas pelo Brasil e pelo mundo (esses eram os números consolidados no momento de realização da pesquisa; a partir daí, o movimento chegou a cinquenta cidades contando com participação de mais de 2 mil mulheres).

Diante desses números, surge a questão: quem são essas escritoras? O que está por trás dessas imagens? Quem são as autorasbrasileiras, como vivem e sobrevivem? Assim nasceu a pesquisa sociocultural sobre o universo das 1649 escritoras que participaram da foto histórica, a partir de um formulário disponibilizado pela rede de articuladoras. As 393 respostas constituem uma amostra representativa de 24%.

A foto histórica irradiou de São Paulo para Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Macapá, Boa Vista, Cuiabá, Salvador, Manaus, Florianópolis, Recife etc. Participaram ainda pequenos grupos de escritoras brasileiras em Londres, Lisboa e até na Estônia. A região Nordeste foi a região com maior participação (com destaque para Pernambuco, de onde vários municípios do interior aderiram), seguidos de Sudeste e Sul; o Norte também compareceu bem, enquanto o Centro-Oeste foi a região com menos cidades participantes. 

Início na infância

A pesquisa revelou que a maior parte das escritoras (48%) começou a escrever entre oito e quinze anos de idade. A vocação para ser escritora se manifesta ainda na pré-adolescência, apesar de haver também um pequeno pico aos vinte, em idade universitária, e outro aos quarenta (época dos filhos crescidos, talvez?). No entanto, o primeiro livro dessas escritoras só vem mais tarde — para a maior parte, aos 38 anos. Isso sugere um delay de cerca de ao menos 23 anos entre a descoberta do ser escritora e a publicação do primeiro livro, um marco importante.

As escritoras estudam muito para escrever. Quase 73% delas estudaram literatura para ser escritora, ainda que não seja uma profissão regulamentada. A maior parte o fez por meio de cursos informais ou da própria leitura (ler é a escola da escritora), mas 38% fizeram faculdade, 17%, mestrado, e 12%, doutorado na área. A proporção de doutores no Brasil (homens e mulheres) é de 0,2%, e de mestres é de 0,8%, o que significa que elas são muito mais bem formadas que a média brasileira. A proporção de doutores na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico  (OCDE), formada por 35 países, é de 1,1%, e de mestres, 13%. Ou seja, elas fazem um esforço desproporcional para se qualificar, até pelo padrão internacional. 

Quem ensina literatura às escritoras são sobretudo professoras mulheres, provavelmente pelo fato de a maioria ter estudado literatura na escola. O Censo Escolar aponta que 81% dos professores do ensino básico são mulheres. As instituições que apoiaram a educação literária das escritoras são primordialmente entidades públicas (53,8%), seguidas de escolas particulares (46,5%), espaços culturais comunitários e ONGs (25,5%) e o Sesc (15,7%). Merece destaque o papel significativo do terceiro setor no estímulo a essa atividade. 

Antes da publicação do primeiro livro, as escritoras publicam seus textos em antologias, blogs, fanzines, livros artesanais, redes sociais, e-books, revistas (empresariais, de escolas, de bairros ou de universidades), além de textos científicos e dissertações. Mesmo nessas categorias, a primeira publicação ocorre em maior número aos trinta anos, com um pequeno pico aos 22 anos (idade universitária). Ou seja, ainda há um delay de ao menos quinze anos a partir da descoberta da escrita, mesmo que os posts em redes sociais sejam algo acessível. Isso mostra a importância de publicações coletivas e de baixo custo como porta de entrada que devem ser encorajadas. 

Em sua trajetória, a maior parte das escritoras conta com o apoio da família de origem (78%), enquanto outra parte não possui essa ajuda (15%) ou enfrenta a indiferença. Relatos qualitativos descrevem famílias que “nem sabem do que se trata” ou “não se interessam”. A pesquisa tentou ainda entender a diferença entre o apoio da família de origem ao da família constituída: embora não tenha sido possível determinar essa diferenciação ­— houve muitas respostas em branco e respostas como “minha família sou eu”, “não sou casada” ou “minha família são meus amigos” ­—, o apoio na família constituída é maior (86%), com ressalvas como: “Sim, mas eles têm medo de eu morrer pobre” ou “Meu marido sim, mas meu filho não”. 

As escritoras da pesquisa escrevem há, em média, 22 anos. No universo da amostra, temos 7935 anos de escrita e, em uma projeção para o universo total (incluindo as 1649 mulheres), temos 36278 anos de escrita nas imagens das fotos que vemos mundo afora. São 362 séculos de escrita! Nesse meio tempo, a maior parte publicou um livro (cerca de 30%), 6,5% delas ainda não publicaram e menos da metade segue para uma segunda publicação. A maior parte escreve literatura adulta, seguida de literatura de entretenimento, literatura infantojuvenil e poesia. 

Mais editoras que escritoras 

A pesquisa revela que as escritoras publicam via uma ou mais modalidades de publicação —  68,7% por editoras, 42,1% por autopublicação e 26,6% fazem financiamento coletivo. Um dado alarmante sobre o mercado editorial é que, dentre as que publicaram por editoras, 56,2% participaram de financiamento coletivo — edições pagas ou com compromisso de venda dos livros. Isso revela o baixo apetite do mercado editorial ao risco de publicar essas escritoras. 

Na pergunta sobre quais casas editoriais as publicaram, o número de editoras ultrapassou o número de respondentes: mais de quatrocentas editoras! Algumas dessas “editoras” são gráficas que rodam livros ou “euditoras” (um editor e um sonho). O resultado aponta para a fragmentação e a imaturidade do mercado editorial, além da dificuldade das escritoras em acessarem editoras mais profissionalizadas.

Listo aqui os nomes das editoras que publicaram mais de três escritoras da amostra (chegando a treze) para valorizá-las, pois estas realmente estão apostando em literatura escrita por mulheres. A maioria são editoras de porte médio e atuam em nível estadual, próximo das escritoras, indicando um modelo de sucesso. São elas: Bestiário, Patuá, Urutau, Carlini & Caniato, Metamorfose, 7Letras, Caravana, Penalux, QuilombHoje, Amazon, Record, Quelônio, Autografia, Dublinense, Libertingagem, Concha, Cousa, Autêntica, Venas Abiertas. Essas editoras estão em São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná.

No tema dos profissionais do mundo editorial, a pesquisa aponta que a maioria dos trabalhos foi realizada com editores homens (39,1%), ainda que os feitos com editoras mulheres não fiquem tão atrás (24,2%); a experiência mista, de trabalhar com editores de ambos os gêneros, também é significativa (36,7%). 

No tema de assédio sexual no mercado editorial, 11% das escritoras declaram ter vivido assédio ou insinuação, e 10,4% relataram um “talvez”. A maior parte, 78,6%, não viveu essa experiência, mas dada a baixa dependência financeira das escritoras na atividade, isso pode significar que a incidência média seja mais alta, praticada por pessoas que exploram a necessidade delas de publicar. 

O capítulo sobre venda de livros trouxe surpresas. Foi a pergunta com o maior índice de não respondentes ou “não sei” (30%) e respostas qualitativas do tipo: “Nunca contei”, “Difícil contabilizar”, “Tenho dificuldade em comercializar. Doo bastante”, até “Só editoras tem essa informação”. Isso revela que as escritoras têm baixo envolvimento na gestão comercial de seus livros, talvez por desconhecer os mecanismos ou por não valorizar a própria obra.

Das escritoras que responderam sobre vendas, a média de livros vendidos é 2 mil, mas a grande maioria não chegou a vender nem duzentas unidades. A média alta foi influenciada por uma escritora que vendeu 100 mil livros. Sem ela, a média baixa para 1600 exemplares por escritora. Mesmo assim, apenas quinze escritoras na amostra venderam mais de mil livros em seu tempo de escrita (cuja média é de 22 anos). Desponta a tendência de que cerca de 5% das escritoras se destacam no que se pode chamar de “carreira literária”, atuando de forma “profissional”.

Vejamos outros dados que corroboram essa tendência: aprofundando a questão de rendimentos, a pesquisa aponta que 9% das escritoras (44 mulheres) já acessaram compras governamentais. Sabemos que isso é um processo complexo, que exige conhecimento e investimento. Dentre essas, 67,7% acessaram editais de prefeituras, 40,5% editais estaduais e 10% editais federais. Além disso, 23% das escritoras (106 respondentes) acessaram editais governamentais variados, como os de produção literária. Os editais que apoiam mulheres escritoras são: Aldir Blanc, municipais, estaduais e Proac. Editais privados (doação direta ou Lei Rouanet) também foram importantes para 5% das escritoras.

Em termos de reconhecimento literário, 23% das escritoras já ganharam prêmios literários e 27,7% já foram finalistas. Os prêmios mais citados são aqueles nacionalmente conhecidos: Jabuti, Biblioteca Nacional, Prêmio Sesc, OFF Flip, Oceanos e Prêmio São Paulo, mas há também prêmios organizados por academias de letras estaduais e prêmios organizados pelos próprios governos estaduais, como os de Minas Gerais e Mato Grosso. Mesmo prêmios organizados por prefeituras, clubes privados ou empresas são listados pelas escritoras e cumprem o papel de incentivar a escrita.

Fonte de renda

A pesquisa abordou a relavância da atividade literária na renda das escritoras. Segundo as respostas, 6% das escritoras vivem dessa renda; 94%, não. Das que vivem da renda da literatura (33 respondentes), a grande maioria declarou rendimento de até R$ 600 — como isso não constitui nem meio salário-mínimo, é provável que essas contem com outra fonte de renda na família. Doze escritoras relatam ganhar acima de dois salários-mínimos ao mês e sete escritoras ganham entre um e dois salários-mínimos por mês. Novamente, despontam cerca de vinte mulheres com características de profissionalização. 

Para as que declararam que a literatura funciona como renda complementar, a grande maioria diz que é tão insignificante que nem faz diferença (74,5%), mas algumas (1%) arrecadam  valores acima de dois salários-mínimos ao mês, e, outras (2%), de um a dois salários-mínimos ao mês. Essas não aderiram à pergunta anterior (sobre viver dessa renda) provavelmente porque seu custo de vida é mais alto. Há ainda aquelas (4,4%) que têm renda complementar de até um salário-mínimo ao mês com as atividades literárias — ou seja, novamente, temos uma margem de vinte mulheres com um rendimento significativo advindo da atividade literária. 

Esses dados, em composição, reforçam que há uma margem de até 30% do universo da amostra que tem uma “carreira literária” — no sentido de publicar com editoras mais profissionais, ganhar dinheiro com literatura (ainda que, nesse caso, não chegue a 10% do universo da amostra), concorrer a prêmios e acessar editais governamentais. Se projetarmos o universo da amostra para o universo da foto histórica, estamos falando de 494 escritoras com carreira literária em diversas etapas desse trajeto. 

Por que você escreve?

Concluímos a pesquisa com perguntas qualitativas sobre por que as escritoras escrevem e qual é o sonho delas. Quase unanimemente, as escritoras escrevem por emoção. Os termos que mais surgiram nas respostas foram: “Escrevo porque preciso”, “Por amor”, “Paixão”, “Gosto” ou “Prazer”. Algumas respostas emblemáticas foram: “É a única coisa que amo fazer”, “Porque é minha vida”, “Amo contar histórias”, “Para ser no mundo”, “Para mudar o mundo”. O sonho das escritoras é também quase unânime: “Ser lida (por muitos)”, “Ter reconhecimento”, “Viver de literatura”, “Ajudar as pessoas”, “Ser alguém” e “Publicar”.

No quesito do que faria diferença para elas atingirem seus sonhos como escritora, surgiram sete eixos de demandas. Uma parte tem a ver como questões pessoais, como tempo e recursos para se dedicar à escrita, autoconfiança e foco. Outra parte tem a ver com apoio mercadológico, seja de editores e agentes literários, seja das livrarias ou de publicidade. Finalmente, as escritoras gostariam de ter o apoio de políticas públicas para incentivar o processo de produção e vendas.

Alguns depoimentos sobre o que é ser escritora no Brasil foram o ponto alto da pesquisa. As palavras que mais apareceram nesse sentido foram: “Difícil”, “Luta”, “Desafio”. Destaco aqui três deles:

“Encontrar espaço para expor e falar das nossas obras é quase uma fresta em uma porta de madeira maciça!”

“É um desafio diário, mais uma bola no malabarismo da nossa existência.”

“Não acredito que ser escritora mulher no Brasil é atividade profissional. Aliás, escrever literatura e viver disso, sobretudo em cidades fora do Rio ou São Paulo, é um atestado de invisibilidade.”

Sair da invisibilidade foi o que levou tantas mulheres a participarem da foto histórica. Uma escritora relatou:

“A foto trouxe uma sensação contrária à invisibilidade com a qual convivo enquanto escritora.”

Ao revelar o que estava por trás da foto das mulheres saídas das sombras, a pesquisa tornou possível delinear suas forças e desafios. Ao saberem que há tantas escritoras na mesma situação, quem sabe isso contribua para a sua união em busca de caminhos, juntas, nessa trajetória desafiadora? 

Dados básicos das respondentes

A maioria das escritoras tem entre quarenta e cinquenta anos, seguidas das de trinta-quarenta e cinquenta-sessenta. A maioria das escritoras não tem filhos (43,8%), tem um filho (23,9%) ou dois filhos (21,9%). As escritoras que participaram da amostra são brancas (68,8%), seguidas de 28% negras/pardas e 0,8% indígenas. A maioria se declarou como cis (94%), seguidas de não binárias (1%). Na questão de orientação sexual, 84,5% se autodeclararam heterossexual-afetiva, 12%, bissexual-afetiva, seguida de 2%, homossexual-afetiva. 

Quem escreveu esse texto

Deborah Goldemberg